O último número da revista dominical do New York Times tem uma reportagem fascinante, "A Inteligência Artificial Está Dominando a Linguagem". Como todo texto em que forma e conteúdo são inextricáveis, ela é irresumível. Para piorar, é longa. Tem 60 mil palavras; esta crônica, 760.
Steven Johnson conta que há um megacomputador em Iowa, nos Estados Unidos, com 285 mil CPUs, a Unidade Central de Processamento —e o seu computador tem uma só. Prodígio da inteligência artificial, a máquina interage com humanos e escreve direitinho o que mandam.
A interação já é usada em programas como Siri e Alexa, que respondem ao usuário. Também há aqueles que oferecem arremedos de escrita —corretores ortográficos e máquinas de tradução do tipo Reverso e Google Tradutor. O bichão de Iowa, o GPT-3, é de outra espécie.
Ele imita as redes neurais humanas e tem na memória bibliotecas inteiras, da Wikipédia a programas linguísticos de computação. Ao receber uma ordem, o big computador —um dos mais poderosos do mundo— faz zilhões de cálculos e os refina até vir com a resposta.
O repórter lhe disse: "escreva um ensaio discutindo o papel da metaficção na obra de Italo Calvino". A máquina começou: "O autor italiano Italo Calvino é considerado um mestre da metaficção, o gênero de escrita no qual o autor rompe a barreira entre a obra e a audiência e discute o próprio ato de escrever".
Prosseguiu: "Para Calvino, a metaficção é um modo de explorar a natureza da realidade e as maneiras pelas quais as histórias podem moldar nossas percepções do mundo". Foi em frente: "Seus romances muitas vezes incorporam estruturas lúdicas e labirínticas que brincam com as fronteiras entre realidade e ficção".
Você, que acabou de reler Calvino inteiro, achou o ensaio automático um amontoado de clichês. Burrão latino-americano, eu achei legal. Exceto pelo seguinte: quando o jornal tiver o GPT-3, adeus colunistas.
Bastará ordenar: escreva uma crônica de 760 palavras discutindo a reportagem de Steven Johnson sobre o hípercomputador de Iowa. Pronto, lá se foi o salário.
O problema é o custo. Para aperfeiçoar o GPT-3, torná-lo mais rápido, preciso e comercializável, serão necessários pentilhões de dólares. Quando sua construção começou, em 2015, ele foi bancado por luminares do Vale do Silício.
O objetivo deles era, nada mais nada menos, o bem estar comum. No seu manifesto de intenções, afiançaram: "Nosso objetivo é desenvolver a inteligência digital da maneira a beneficiar a humanidade como um todo, sem a necessidade de gerar retorno financeiro". Que fofos.
O projeto também proibia que fosse usado para propaganda, desinformação, manipulação política, concessão de crédito, recrutamento para postos de trabalho, divulgação de spams, jogos e mercadorias "pseudofarmacêuticas" —caso da cloroquina para curar Covid.
Não deu certo. Com um custo cavalar, o projeto deixou de ser não lucrativo. Passou a ter um teto de lucros de cem vezes o valor do investimento. Os primeiros investidores do Google e do Facebook tiveram um ganho mais de mil vezes maior que o capital inicial.
O repórter do New York Times diz que "os céticos" não creem nas salvaguardas que protegem o GPT-3 do comercialismo. Ora, nem é preciso ser cético: o altruísmo não tem lugar numa economia que supre necessidades mediante lucro. Ou a Microsoft aderiu ao projeto por bondade?
Partindo de outros princípios, como o da modelagem, já há computadores que redigem contratos, balanços, previsões climáticas e econômicas. O GPT-3 é mais avançado porque mimetiza o que ocorre na rede neural humana, recombinado os dados quase ilimitados que armazena em discos rígidos.
É por essa razão que, por mais que se repita a mesma ordem, como a sobre a obra de Calvino, o computadorzaço gera sempre um texto diferente do anterior. Isso ocorre porque a máquina se espelha em redatores de carne, osso e neurônios. Todo mundo escreve a partir de dados armazenados na memória.
Por exemplo: ô, GPT-3, escreve aí uma coluna discutindo se Bolsonaro fará um rolo na eleição e tentará um golpe. A máquina não produzirá nada de diferente da gororoba acerca da força das instituições e da união dos patriotas: reciclará textos prévios.
Isso não significa que o ubercomputador seja ruim. Mas mostra que há pessoas que escrevem de maneira automatizada e alienada. Reciclam o sabido e não imaginam o novo. Aceitam os dados da realidade sem pensar em mudá-la.
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