O caso apresentado a seguir parece uma história exótica do interior do "Brasil profundo". Denúncia anônima leva à libertação de uma mulher que há 32 anos faz serviços domésticos em troca de moradia e alimentação em Mossoró (RN). Ela nunca teve salário, não tirava férias, cumpria suas tarefas também nos finais de semana, e relata que, ao longo de dez anos, o marido da casa, um pastor da Assembleia de Deus, a assediou e abusou sexualmente.
Esse tipo de caso, no entanto, está mais próximo das nossas vidas do que a notícia sugere. A experiência da servidão na infância faz parte da história de muitas brasileiras para quem a melhor opção de trabalho ainda é atuar como faxineiras, cozinheiras e babás.
Conheci, como pesquisador, dois caminhos para a mulher aprender a atuar como empregada doméstica. Um acontece dentro da família: a menina, a partir dos 5 anos, ocupa-se de seus irmãos mais novos. Ela cozinha, dá de comer, troca roupa, lava e limpa a casa enquanto a mãe trabalha. O outro modo é quando a criança é oferecida para outra família —também a partir dos 5 anos de idade— para atuar como babá e auxiliar a dona da casa nos serviços domésticos.
Depois de muitos meses vivendo e estabelecendo relações de confiança com os moradores de um bairro pobre da Bahia, percebi - estarrecido - que muitas das mulheres adultas com quem eu convivi passaram por essa experiência de ser entregue a outra família em algum momento da infância ou adolescência. É um tema traumático sobre o qual geralmente não se conversa.
Antes de prosseguir, um pouco de contexto para entender as circunstâncias em que a prática de "dar filhos" acontece. O antropólogo Gilberto Velho classificou o deslocamento de milhares de nordestinos analfabetos principalmente para cidades do Sul e do Sudeste como o evento social mais importante do Brasil no século 20. Em apenas 50 anos esse fenômeno virou de pernas para o ar um país cuja população era 70% rural em 1950 e se tornou 80% urbana em 2000.
Segundo relatos que registrei, "dar o filho" é a solução culturalmente aceita para algumas famílias que, nesse redemoinho de transformações e dificuldades de adaptação causadas pela migração, se veem incapazes de alimentar seus filhos. É nessa situação que os pais começam a assuntar com vizinhos e conhecidos sobre a existência de famílias em condições (relativamente a eles) melhores, como têm casa própria e emprego fixo, portanto, aptas a receber a filha.
O argumento que justifica essa prática considera as "vantagens" para a criança no curto e no longo prazo: a menina terá casa. alimentação e roupas e aprenderá com a dona da casa a realizar tarefas domésticas, o que posteriormente servirá para ela trabalhar e se sustentar.
Para as mulheres que passam por essa experiência, o trauma não têm a ver com a falta de salário ou de liberdade e, sim, com estar longe de casa ainda na infância e ser tratada como ser humano de segunda categoria; ser criança e ser babá de crianças da mesma idade, e estar exposta no espaço privado das casas a situações de violência moral, física e sexual.
As "famílias adotivas" moram em lugares distantes, possivelmente para desencorajar a criança ou a adolescente a fugir. Mas essas fugas acontecem. Algumas meninas reencontram seus parentes, outras ficam nas ruas.
Apenas uma pessoa que conheci, entregue nessas condições, teve um desfecho que pode ser classificado como um final feliz. Apesar da separação familiar, seus "guardiães" eram de classe média e o trabalho dela consistia em fazer companhia para uma idosa que vivia sozinha e que a tratou bem. Ela pôde frequentar a escola e posteriormente se tornou empresária —uma ascensão que nenhum dos seus muitos irmãos biológicos tiveram.
Mas, para a maior parte das "sobreviventes" da experiência de servidão durante a infância, o estágio seguinte como profissional para famílias afluentes, que podem pagar pelo serviço doméstico, incluirá remuneração, mais autonomia, e também em algum momento tratamentos abusivos e humilhações.