sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Sobre jornalismo e coragem, Cristina Serra, FSP

 A carta aberta à direção desta Folha assinada por cerca de 200 jornalistas propõe um debate necessário e fecundo, que ultrapassa as fronteiras do jornalismo. É do interesse de toda a sociedade e da democracia. A carta-manifesto já nasce histórica, num ano decisivo para o futuro do país.

O documento deixa claro que a pluralidade e a defesa intransigente da liberdade de expressão —princípios com os quais os jornalistas concordam— não dispensam o jornal do compromisso com a verdade e com o respeito rigoroso aos fatos históricos.

A pluralidade não pode ser um princípio oco, que se preste a vários tipos de negacionismo. Tem que estar preenchida com a argamassa do discernimento, do espírito crítico, da ética e da honestidade intelectual, essenciais para o exercício do jornalismo.

Estamos vendo as consequências do negacionismo científico. E aí vem o cerne da carta: se a Folha não dá espaço, por exemplo, para a relativização do Holocausto e para o movimento antivacina, por que publicar teses que relativizam o racismo? A seguir nesse caminho, a chegada do homem à Lua será posta em dúvida?

A reflexão sobre falsas equivalências serve a muitas outras escolhas editoriais, não apenas da Folha, mas de boa parte da mídia e, sobretudo, neste ano eleitoral. Propor discussão não é censura nem "cancelamento" de quem quer que seja. O dia que jornalistas não puderem questionar critérios editoriais é porque o jornalismo morreu. Redações devem —ou deveriam— ser lugar de ponto e contraponto, de disputa de argumentos e ideias e de afirmação de valores civilizatórios.

Os 200 jornalistas da Folha ousaram botar o dedo na ferida, fazendo-o por meio de uma carta ponderada e de clareza solar. Devem ser elogiados por isso, não atacados. Sua coragem está à altura do momento histórico que atravessamos e dignifica a luta dos jornalistas por um país mais justo. A esses colegas, minha imensa admiração, respeito e total solidariedade.

Silvio Almeida - Jornalismo suicidário, FSP

 

Em matéria publicada na quarta-feira (19), Suzana Singer trouxe a posição da Direção da Folha acerca das repercussões negativas de textos recentemente publicados e que foram por muitas pessoas —inclusive por este colunista— considerados racistas. Porém, as declarações do diretor do jornal, Sérgio Dávila, revelaram, mais do que falta de autocrítica, uma surpreendente tendência ao autoaniquilamento por parte de um jornal centenário.

Posso estar enganado, mas a matéria parece ter sido usada pela direção desta Folha para advertir os quase 200 jornalistas que assinaram um corajoso manifesto que cobra do jornal um mínimo de respeito à população negra e aos mais de 100 anos de debate cientifico sobre a questão racial no Brasil.

Registro da redação da Folha durante período de pandemia do novo coronavirus - Adriano Vizoni/Folhapress

As declarações do editor-chefe começam com um estranho posicionamento sobre a legitimidade de abaixo-assinados. Segundo Dávila, abaixo-assinados são aceitáveis desde que não firmados por jornalistas que ocupam "cargos de confiança que ali colocaram seu nome".

O aviso foi: diante da tormenta, nenhuma divergência entre os chefes. Péssimo caminho, porque em hora como essa, várias cabeças pensam melhor do que uma, especialmente quando ela assume um rumo suicidário, como me parece ser o caso.

Dávila segue afirmando que, mesmo sendo o abaixo-assinado um instrumento legítimo para "jornalistas sem cargos de confiança", este não seria o caso do manifesto, tendo em vista seu conteúdo. Cito: "O preocupante é o teor do texto, que vai contra um dos pontos basilares e inegociáveis do Projeto Folha: a pluralidade e a defesa intransigente da liberdade de expressão".

Triste do jornal que considera que um manifesto antirracista fere seus princípios basilares, enquanto textos como os de Risério, Narloch e Magnoli, não. O uso da palavra "inegociável" agrava o tom ameaçador, porque aponta para uma total falta de abertura para o diálogo. O que deveria ser "inegociável" para a Folha é o respeito à dignidade da população negra deste país. Como muito bem lembraram os jornalistas que assinaram o manifesto, a Folha não costuma publicar conteúdos que negam ou relativizam o Holocausto.

E terminam com a incômoda pergunta: "por que, então, a prática seria outra quando o tema é o racismo no Brasil?". A resposta possível é que o respeito a negros e indígenas ainda se mantém fora de qualquer pacto civilizatório e, portanto, ofender e vilipendiar estas pessoas não causa prejuízo significativos a quem o faz.

Tudo piora, por inacreditável que possa parecer, quando o chefe de Redação cobra dos seus subordinados que, ao lado da crítica, sejam feitas referências aos esforços do jornal em promover a "diversidade". Sobre isso, duas coisas precisam ser ditas: a primeira é que os jornalistas não têm essa obrigação. Lidar com racismo institucional é responsabilidade da empresa e não dos indivíduos que nela trabalham. A segunda é que políticas de diversidade e de combate ao racismo institucional não se reduzem a palestras e nem à contratação de trainees ou colunistas.

O avanço na questão racial em nível institucional é feito com mudanças nas formas de governança e nas relações de poder, coisas para as quais parecem haver pouquíssima disposição, tendo em vista a postura reativa por parte da direção do jornal.

Mas o trecho verdadeiramente assustador está na parte final da declaração do editor-chefe e deveria preocupar todos os que realmente se importam com a democracia. Sendo literal: "A Folha seguirá fazendo o jornalismo que a consagrou nos últimos 100 anos, com uma Redação que esteja disposta a implementar com profissionalismo os princípios defendidos por seu Projeto Editorial: um jornalismo crítico, apartidário, independente e pluralista."

A boa consciência crítica nacional pede que Dávila explique o que quis dizer com "a Folha seguirá (...) com uma Redação disposta a implementar com profissionalismo (...)". Esta é outra Redação e não a atual? "Profissionalismo" é não expor divergências sobre como a questão racial vem sendo (mal) conduzida?

Em seu centenário e em um momento em que estamos sob um governo que ataca o jornalismo a todo instante a Folha irá se voltar contra jornalistas que ousaram defender o que é justo? Seria o maior suicídio reputacional da história da imprensa. Com a palavra, a Folha de S.Paulo.


Ruy Castro Nos braços da Academia, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Ouço dizer que, em fevereiro, a Academia Brasileira de Letras fará uma homenagem aos cem anos da Semana de Arte Moderna. É justo. Nos últimos meses, a data tem sido festejada por todos os canais —imprensa, livro, rádio, TV, museu, universidade— e só falta entrar na programação do Beto Carrero World. A adesão da Academia às comemorações, no entanto, é especial. Afinal, ela foi um dos alvos a serem destruídos pela Semana, juntamente com a métrica, o soneto e a colocação dos pronomes. Sem o fim disso, diziam, o Brasil continuaria no atraso.

Oswald de Andrade e Menotti del Picchia faziam comícios contra "os mamutes literários, os megatérios da poesia, as renas da crítica". Era preciso "descoelhonetizar a literatura". Castro Alves era "o batateiro épico da língua". A Academia era um "museu arqueológico" e seus membros, os "patriarcas do obsoleto".

Culminou em 1924, com o discurso de Graça Aranha em que, do perplexo púlpito da Academia e para delírio dos modernistas na plateia, ele bradou: "Morra a Academia!". Graça era famoso e só aí, segundo Carlos Drummond de Andrade, o Brasil ficou sabendo que tinha havido uma Semana de Arte Moderna.
Bem, cem anos depois, como se explica que a Academia celebre a Semana que tanto a combateu? Foi a Academia que se modernizou ou a Semana que se domesticou?

Nem uma coisa nem outra. A Academia continua onde sempre esteve. Os modernistas é que não esperaram nem dez anos para aderir alegremente a ela. Em 1930, Guilherme de Almeida foi o primeiro a vestir o fardão. Seguiram-se, em rápida sucessão, Menotti del Picchia, Candido Motta Filho, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo e Alceu Amoroso Lima. Em 1927, o próprio Oswald de Andrade submeteu seu romance "A Estrela de Absinto" ao prêmio da Academia. Ganhou menção honrosa, votada por... Coelho Netto.

Sorry, turma, mas foi assim. Agora é esperar pelo Beto Carrero.