Em matéria publicada na quarta-feira (19), Suzana Singer trouxe a posição da Direção da Folha acerca das repercussões negativas de textos recentemente publicados e que foram por muitas pessoas —inclusive por este colunista— considerados racistas. Porém, as declarações do diretor do jornal, Sérgio Dávila, revelaram, mais do que falta de autocrítica, uma surpreendente tendência ao autoaniquilamento por parte de um jornal centenário.
Posso estar enganado, mas a matéria parece ter sido usada pela direção desta Folha para advertir os quase 200 jornalistas que assinaram um corajoso manifesto que cobra do jornal um mínimo de respeito à população negra e aos mais de 100 anos de debate cientifico sobre a questão racial no Brasil.
As declarações do editor-chefe começam com um estranho posicionamento sobre a legitimidade de abaixo-assinados. Segundo Dávila, abaixo-assinados são aceitáveis desde que não firmados por jornalistas que ocupam "cargos de confiança que ali colocaram seu nome".
O aviso foi: diante da tormenta, nenhuma divergência entre os chefes. Péssimo caminho, porque em hora como essa, várias cabeças pensam melhor do que uma, especialmente quando ela assume um rumo suicidário, como me parece ser o caso.
Dávila segue afirmando que, mesmo sendo o abaixo-assinado um instrumento legítimo para "jornalistas sem cargos de confiança", este não seria o caso do manifesto, tendo em vista seu conteúdo. Cito: "O preocupante é o teor do texto, que vai contra um dos pontos basilares e inegociáveis do Projeto Folha: a pluralidade e a defesa intransigente da liberdade de expressão".
Triste do jornal que considera que um manifesto antirracista fere seus princípios basilares, enquanto textos como os de Risério, Narloch e Magnoli, não. O uso da palavra "inegociável" agrava o tom ameaçador, porque aponta para uma total falta de abertura para o diálogo. O que deveria ser "inegociável" para a Folha é o respeito à dignidade da população negra deste país. Como muito bem lembraram os jornalistas que assinaram o manifesto, a Folha não costuma publicar conteúdos que negam ou relativizam o Holocausto.
E terminam com a incômoda pergunta: "por que, então, a prática seria outra quando o tema é o racismo no Brasil?". A resposta possível é que o respeito a negros e indígenas ainda se mantém fora de qualquer pacto civilizatório e, portanto, ofender e vilipendiar estas pessoas não causa prejuízo significativos a quem o faz.
Tudo piora, por inacreditável que possa parecer, quando o chefe de Redação cobra dos seus subordinados que, ao lado da crítica, sejam feitas referências aos esforços do jornal em promover a "diversidade". Sobre isso, duas coisas precisam ser ditas: a primeira é que os jornalistas não têm essa obrigação. Lidar com racismo institucional é responsabilidade da empresa e não dos indivíduos que nela trabalham. A segunda é que políticas de diversidade e de combate ao racismo institucional não se reduzem a palestras e nem à contratação de trainees ou colunistas.
O avanço na questão racial em nível institucional é feito com mudanças nas formas de governança e nas relações de poder, coisas para as quais parecem haver pouquíssima disposição, tendo em vista a postura reativa por parte da direção do jornal.
Mas o trecho verdadeiramente assustador está na parte final da declaração do editor-chefe e deveria preocupar todos os que realmente se importam com a democracia. Sendo literal: "A Folha seguirá fazendo o jornalismo que a consagrou nos últimos 100 anos, com uma Redação que esteja disposta a implementar com profissionalismo os princípios defendidos por seu Projeto Editorial: um jornalismo crítico, apartidário, independente e pluralista."
A boa consciência crítica nacional pede que Dávila explique o que quis dizer com "a Folha seguirá (...) com uma Redação disposta a implementar com profissionalismo (...)". Esta é outra Redação e não a atual? "Profissionalismo" é não expor divergências sobre como a questão racial vem sendo (mal) conduzida?
Em seu centenário e em um momento em que estamos sob um governo que ataca o jornalismo a todo instante a Folha irá se voltar contra jornalistas que ousaram defender o que é justo? Seria o maior suicídio reputacional da história da imprensa. Com a palavra, a Folha de S.Paulo.