quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

No 3º ano da pandemia, qual é a grande sacada?! Fechar escolas, claro!, Laura Mattos, FSP

 Diante do aumento de casos de contaminação da Covid-19, o governo do Amazonas fez o quê? Fechou shoppings, cinemas, bares? Não. Adiou o início das aulas. Que se acenda a luz amarela novamente para quem considera a educação uma prioridade. Estamos no 3º ano da pandemia, há crianças e jovens no Brasil há dois anos sem aulas presenciais e sem acesso às remotas, e escolas continuam sendo as primeiras a fechar.


Pode-se tentar minimizar o fato argumentando que o adiamento se deu por "apenas" uma semana, de 7 para 14 de fevereiro. Primeiro ponto: 7 de fevereiro já seria um início tardio diante da tragédia da educação brasileira na pandemia. Em São Paulo, a rede estadual inicia em 2 de fevereiro, e grande parte das escolas particulares começa antes, na próxima segunda, 24 de janeiro, ou, no caso da capital, no dia 26, após o aniversário da cidade —há até colégios que retomam as aulas no próprio feriado.

Imagem em close mostra criança escrevendo em um caderno
Em Paraisópolis, na zona sul da capital paulista, crianças ficaram meses sem ir à escola e sem acompanhar atividades remotas - Marlene Bergamo - 13.dez.2020/Folhapress

Outra pergunta a ser feita: se o objetivo é o de conter a contaminação, "apenas" uma semana sem aula seria suficiente, especialmente considerando que a circulação de pessoas seguirá pouco alterada porque não haverá outros fechamentos? A medida soa como uma satisfação rápida a uma população traumatizada com o colapso da saúde de 2021 e que vê o índice atual de ocupação hospitalar beirar os 80%. Mas, à essa altura, será que o governo não tem nenhum outro plano além do de adiar aulas, inclusive levando em conta que pesquisas demonstram que as escolas, com os protocolos, estão entre os ambientes que menos colaboram para a disseminação do vírus?

Também é inadmissível que, com toda a experiência sobre a pandemia acumulada desde 2020, o adiamento do início das aulas seja imposto a todas as cidades do Estado, sem considerar os índices de contaminação local. O decreto amazonense adiou as aulas nas escolas estaduais de todas as cidades e recomendou que se fizesse o mesmo nas municipais e nas particulares. A falta de lógica da medida fica ainda mais clara com a decisão da prefeitura de Manaus de não seguir essa orientação do governo estadual, mantendo o início das aulas na rede municipal para o dia 7 de fevereiro.

Lembremos de uma peça importante desse xadrez: neste ano, não haverá eleições municipais e sim para os governos do Estado. Isso faz com que as decisões dos prefeitos estejam, por ora, menos conectadas a interesses eleitoreiros do que a de governadores/pré-candidatos à reeleição. Em 2020, foi o contrário, e isso ficou evidente em São Paulo. O governo liberou aulas presenciais em setembro, e muitos prefeitos decidiram manter as escolas fechadas, não com base na orientação de comitês de saúde e, sim, em pesquisas feitas pelas equipes das campanhas eleitorais que mostravam o temor de pais (eleitores) de que os filhos fossem contaminados.

Os próprios comitês de saúde que assessoram as autoridades, aliás, têm atualmente linhas muito diferentes das de 2020, quando não se considerava nada além das curvas de contaminação, internação e óbitos da Covid-19. Obviamente o cenário se alterou também pelo avanço da vacinação, inclusive, neste ano, de crianças. Mas não se trata essencialmente disso, e sim da constatação de que o fechamento das escolas, além dos prejuízos colossais para a aprendizagem, em parte já mensurados por pesquisas, foi incalculavelmente destrutivo para a saúde mental de crianças e adolescentes.

Em entrevista nesta semana ao jornal "O Globo", a pneumologista da Fiocruz Margareth Dalcolmo, referência brasileira no combate à pandemia, não deixa dúvidas sobre a necessidade de se ter aulas presenciais mesmo com a ômicron: "De qualquer maneira, neste momento, tem que ter aula. As pessoas já estão vacinadas e usando máscaras, e há protocolos adequados no ambiente escolar (...) Nada é superior ao prejuízo de se manter as crianças longe das escolas por um tempo maior".

Por fim, algo que tem ficado à margem desse debate é a manutenção do fechamento de universidades, públicas e privadas. É como se, para os jovens, alguns deles ainda adolescentes, com 17 anos, não houvesse consequências em seguir online ad aeternum. Ainda que eles tenham mais capacidade de acompanhar o ensino remoto do que os estudantes da educação básica, não resta dúvida de que a qualidade do aprendizado se perde nesse modelo. Isso sem falar dos prejuízos socieomocionais da falta de convivência com os colegas e com os professores. Novos profissionais se formam em meio a ataques de ansiedade, depressão, síndrome do pânico etc.

No caso desse outro xadrez, o universitário, fica cada vez mais óbvio o interesse econômico de se manter cursos remotos. Além de economizar com a manutenção dos prédios, é possível unificar turmas e, no caso das particulares, demitir professores. É também para se gastar menos que prefeituras, como a de São Roque (SP), ainda não reabriram escolas, mesmo após a liberação da retomada às aulas por todos os Estados.

O abismo da desigualdade educacional não para de crescer entre as regiões e entre o ensino privado e público. Em São Paulo, por exemplo, a tendência é a de não se apelar mais para o fechamento das escolas. Além disso, os protocolos, especialmente nas particulares, que têm consultorias médicas, devem ser flexibilizados para que a suspensão de uma turma em caso de contaminação de um aluno seja evitada ao máximo ou que, pelo menos, o retorno à escola seja o mais breve possível.

A equidade no Brasil é que todos, inclusive alunos e docentes em ensino remoto, podem ir a festas e bares. É o extremo oposto dos países que priorizam a educação, nos quais, desde o auge das incertezas de 2020, já se definiu que escolas seriam as últimas a fechar e as primeiras a reabrir. Uma imagem marcante é a dos pais, no mais restrito lockdown da Suíça, serem parados por policiais e liberados ao apresentarem um comprovante de que estavam na rua para levar ou buscar os filhos na escola.

Já por aqui temos de nos conformar com o fato de o governo do Amazonas ter adiado o início das aulas por "apenas" uma semana (por enquanto) e também por ter, no mesmo decreto, cancelado o desfile do Carnaval. Só faltava ter mantido a folia...

Sérgio Rodrigues - O erro de chamar mentira de erro,

 "Queiroga erra e diz que 4.000 morreram por vacina", afirmou a Folha na segunda (17). O jornal errou: o que o ministro da Saúde cometeu não foi um erro, o erro estava na escolha vocabular do título.

Exatamente um mês antes (17/12), tinha havido um caso parecido. "Bolsonaristas erram ao dizer que Datafolha indicava vitória de Haddad em 2018", era a notícia.

Na ocasião, protestos em redes sociais levaram a uma reformulação do texto, com a troca de "erram" por "distorcem". Melhor, sem dúvida. No caso recente de Marcelo Queiroga, o erro ficou intocado.

Ministro Marcelo Queiroga fala com a imprensa em Brasília - Sergio Lima - 11.jan.2022/AFP

Embora louvável, a solução ainda soava torta. Impunha a "distorcer" uma intransitividade forçada e evitava o verbo que seria mais natural no contexto.

"Mentir" é o verbo. Bolsonaristas mentiam sobre as pesquisas de 2018 e Queiroga mentiu ao dizer, em entrevista a uma rádio de extrema direita, que 4.000 brasileiros morreram de vacina. Seu ministério confirma 11 mortes ligadas à vacinação.

A diferença entre errar e mentir é a que há entre boa-fé e má-fé. Só erra quem tem a intenção de acertar. Quem dá troco de R$ 17,70 para uma nota de R$ 20 quando a despesa é R$ 3,30, por exemplo.

[ x ]

Quem nega o Holocausto, diz que a terra é plana, que negros oprimem brancos ou que as vacinas representam um problema de saúde pública em vez de uma solução –quem faz isso falseia a realidade, alimenta a desinformação. Mente.

Tal adequação vocabular é o mínimo que se exige para a manutenção de uma conversa civilizada. Há outras palavras disponíveis para esse tipo de comportamento, num arco de gravidade crescente que se embrenha pelo Código Penal. Apontar a mentira é o básico.

Entende-se que a busca de uma postura imparcial diante dos fatos –meta desejável, ainda que inatingível–, ou pelo menos de certa pluralidade, recomende cuidado com o juízo duro embutido no verbo "mentir".

Se a diferença entre errar e mentir é de intenção, mora no caráter, quem somos nós para, de fora, dizer qual é qual? A ponderação é justa, mas encontra seu limite no bom senso.

Diante de um governo que, desde a campanha, faz do caos e da desinformação uma linguagem e um meio de vida, evitar chamar a mentira de mentira não denota ponderação. Denota covardia, renúncia ao dever de informar.

Dizer que 4.000 brasileiros morreram por causa da vacina –um desvio de 3.989, só– não é erro. Erro, e grave, é quase 58 milhões de brasileiros terem votado num candidato que, meses depois, estava trabalhando para matá-los na maior quantidade possível.

O texto acima já estava pronto quando tomei conhecimento da carta aberta de 186 jornalistas da Folha motivada pelo artigo de Antonio Risério. Estou com eles, o artigo é muito ruim.

Não é de hoje que me incomoda a postura sensacionalista de fabricar polêmicas contra consensos progressistas à custa de embaralhar categorias, o anedótico com o sistêmico, a exceção com a regra.

É o que faz o artigo, aproveitando-se da polissemia de "racismo" na linguagem comum –palavra que pode significar tanto um sistema de opressão quanto uma disposição hostil particular. Isso também é desinformação.

Não gosto de dogmas nem da ideia de blindar de críticas o dito identitarismo. Se é óbvio que Risério tem liberdade para escrever o que quiser, entendo os colegas que se preocupam por ver o jornal dando palco, seguidas vezes, ao que também é uma forma de mentira.


Quanto mais puros em sua fé, mais perigosos Rosa Montero, El Pais

cabo de ler o livro Mal-entendido em Moscou (Record). Narra a viagem de um casal de professores franceses sexagenários à capital da União Soviética em 1966, e sem dúvida reflete uma viagem real de Simone e Sartre. Magnífica ensaísta e memorialista, Beauvoir, que foi uma das mães do pensamento do século XX, carecia totalmente de imaginação, e como romancista me parece bastante medíocre. É curioso, porque talvez Sartre tenha sido melhor romancista que filósofo, enquanto quem de fato tinha um rigor filosófico era ela. No entanto, dentro do âmbito em que os dois se formaram, Beauvoir, que tanto fez pela liberação das mulheres (obrigada, Simone), sempre deixou a Jean-Paul o lugar privilegiado e masculino do pensamento.

Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1960.
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1960. 

Mal-entendido em Moscou é um texto muito curioso, mais pelo que nos conta do casal Sartre-Beauvoir do que por seus valores narrativos (tem um final fofo de romance “água com açúcar”). André, alter ego de Jean-Paul, discute com uma filha que reside em Moscou porque ele, que mora em Paris, é mais pró-soviético e mais partidário da pureza revolucionária que sua filha, que é casada com um russo e conhece o dia a dia da URSS. A Rússia que o professor francês está vendo nessa viagem não é a dos seus sonhos; o mal-estar de André “tinha um nome: decepção”. Apesar disso, “havia, claro, uma grande diferença entre a URSS e o Ocidente. Enquanto na França os avanços técnicos não faziam mais do que aprofundar a lacuna entre privilegiados e explorados, aqui a estrutura econômica havia sido disposta para que todos tirassem proveito deles um dia. O socialismo acabaria se transformando em realidade. Um dia triunfaria no mundo todo. [A situação atual] era apenas um período de retrocesso”. Isso embora ele já não pudesse ver esse triunfo, por causa da idade, o que o atormentava. E aqui vem uma frase lapidar: “[André] havia confiado na história para justificar sua vida: já não confiava nela”.

Essa coisa de “um dia” me parece o ponto-chave: então a realidade mostra uma inequívoca divergência entre nossos sonhos e os fatos? Claro que não. Simplesmente profere-se que é um momento fracassado, mas que o caminho acabará em vitória. Sartre foi pró-soviético durante o stalinismo e depois foi um apaixonado maoísta nos atrozes momentos da Revolução Cultural. Uma trajetória lamentável.

E não que ele fosse exatamente estúpido. O que leva uma mente brilhante a se petrificar no dogmatismo? Não sei. Eu diria que pessoas assim são “viciadas” no absoluto e na pureza. Presas na urgência infantil de acreditar em algo perfeito, numa bondade suprema e sem sombras, em paraísos terrestres. Necessitam manter essa credulidade elementar intacta, e por isso negarão qualquer evidência. Basta seguir conservando a fé nessa coisa de “um dia...”.

Talvez as pessoas que sucumbem ao dogma tenham alguma falha no cérebro, talvez tenham algum neurotransmissor funcionando mal e isso as deixe mais propensas ao vício. Mas também acredito que haja uma falta de músculo ético. Como diz o romance: André havia confiado na história para justificar sua vida. É muito cômodo, não? Se colocamos o bem fora de nós e nos aferramos a ele como piolhos, sentindo-nos seus mais puríssimos defensores, isso nos dá carta branca para sermos impuros na vida real. Como foram Jean-Paul e Simone, que manipularam e abusaram de seus numerosos e juveníssimos amantes, estudantes em situação de clara inferioridade. Pois bem, para mim a vida só se justifica com os nossos atos. E, sem empatia, não há dignidade possível.

Detesto os puros. Estão convencidos da sua superioridade e de serem sempre os bons pelo simples fato de repetirem como papagaios descerebrados uma crença (fiquei alucinada com alguns tuítes dos defensores de Nicolás Maduro na última crise de Juan Guaidó). E, quanto mais puros em sua fé, mais perigosos: o inquisidor Torquemada fez os demais arderem porque ele mesmo ardia em fanatismo. Os humanos são contraditórios e paradoxais: por isso, a pureza monolítica do dogma é desumana e falsa. O dogmático se sente melhor que os demais, sente-se um anjo. Mas recordemos que são os anjos que se transformam em demônios.