terça-feira, 18 de janeiro de 2022

João Pereira Coutinho Não adianta gastar para ser imortal e encontrar a Paris Hilton no futuro. FSP

 Viver para sempre nunca esteve entre os meus planos. Prefiro um prazo de validade mais curto, sem o qual a vida se torna um bocejo interminável. Não logo, claro. Passados cem ou 200 anos. Ou 300, talvez.

Chega um dia, como na peça de Karel Capek, em que tudo já foi visto, dito e experimentado. A vida perdeu urgência porque só pode existir urgência —para amar, para criar, viajar, perder países— quando sabemos que não existe todo o tempo do mundo.

Sem essa urgência, nosso desinteresse é do tamanho da nossa eternidade. E sem uma porta de saída para acabarmos com a agonia.

Ilustração de Cronos com barba longa vestindo uma túnica; ele tem um braço de um lado do corpo e uma asa grande que está aberta do outro lado. Duas jovens estão perto dele, uma está bem ao lado olhando para ele; a outra tem asas pequenas, que estão abertas, e está segurando um jarro de onde cai água. No fundo, há uma composição de engrenagens e relógios.
Publicada nesta segunda-feira, 17 de janeiro de 2021 - Angelo Abu

Há quem discorde: o pessoal do Vale do Silício. Leio no jornal Daily Telegraph que os bilionários da região adoram certos coquetéis para prolongar a vitalidade do corpo. Injeções de células-tronco, transfusões de sangue jovem, câmaras hiperbáricas para dormir com o oxigênio mais puro.

Raciocínio dos bilionários: chegar aos 150 ou aos 200 (por enquanto), só em bom estado.

Concordo. De que vale ter uma idade de Matusalém quando o corpo não acompanha os aniversários?
Jonathan Swift, nas suas "Viagens de Gulliver", deixou-nos a descrição mais bárbara dessa ousadia ao narrar o destino dos Struldbrugg. Eles são imortais, sim, mas essa imortalidade não vem com a juventude. Quem quer esse destino? Quem deseja um envelhecimento sem fim? Ninguém.

Embora, aqui entre nós, o destino dos bilionários do Vale do Silício não me pareça melhor. Ainda que cheguem aos 150 ou aos 200 anos, confesso o meu cansaço ao ler as terapias a que se entregam. O tempo que eles perdem com injeções e transfusões de sangue daria, no mínimo, para que vivessem plenamente uma vida normal. Já os imagino, no leito derradeiro, arrependidos por todas as horas que desperdiçaram na clínica, cobiçando o sangue jovem como vampiros de cinema.

Sem falar de outros métodos radicais, que podem trazer consequências indesejáveis. Como a criogenização, um processo com bastante demanda.

Tudo funciona como no "Percevejo" de Maiakóvski: o cidadão é congelado na hora da morte e depois acorda em 2145, quando existe uma cura para a doença que o matou em 2052.

Segundo parece, Paris Hilton já reservou o seu lugar na geladeira. O que significa que uma pessoa investe na longevidade e, em meados do século 22, tem a desagradável surpresa de reencontrar Paris Hilton em plena atividade. Ninguém merece.

Mas a longevidade tem outros riscos que os centenários de hoje conhecem bem. Na mesma reportagem, encontramos Ethel Caterham, uma inglesa que não precisou do Vale do Silício para chegar aos 112 anos. Sobreviveu a tudo: guerras, crises, reinados. Mas também ao marido e às duas filhas.

Sobreviver ao marido pode ser uma benesse, concedo, e não excluo que a ciência possa ter aqui uma palavra importante: quem perdeu anos com um cretino qualquer deveria ser indenizado em tratamentos de longevidade que repusessem os anos desperdiçados.

Mas sobreviver aos filhos não é propriamente uma benesse. É talvez um pesadelo tornado realidade.
Eis o ponto: nas discussões sobre o prolongamento da vida, tudo é visto de uma perspetiva individual, como se o estado do corpo encerrasse o debate. Ou, então, como se o indivíduo existisse sem a sua circunstância —uma existência abstrata, que paira no éter sem ligações substanciais a algo, ou a alguém.

Mas os indivíduos precisam de outros indivíduos. E, entre esses, precisam dos seus indivíduos. Uma longevidade que não seja democrática é uma condenação à solidão.

De que vale conhecermos novos mundos quando perdemos o único mundo que nos tornou reconhecidamente humanos?

Viver até aos 150 ou 200, tudo bem, desde que eu possa levar alguma bagagem. Velhos amigos. Amores presentes. Irmãos, filhos e netos. De que vale matar a morte quando não podemos matar saudades?

Se pedirem muito, também levo a Paris Hilton. Pensando bem, sou como ela, filho deste tempo feito de ruído, superficialidade e loucura.

Porque o pior que me poderia acontecer era chegar a um futuro estranho e concluir, parafraseando um narrador de Dickens, que o passado, afinal, era o pior dos mundos e o melhor dos mundos.

Morte de Celso Daniel retorna como tema eleitoral 20 anos depois, FSP

 Fábio Zanini

SÃO PAULO

Em 20 de janeiro de 2002, o corpo de Celso Daniel, prefeito de Santo André (SP) e estrela ascendente do PT, foi encontrado numa estrada rural no município de Juquitiba, na Grande São Paulo, com tiros e sinais de tortura.

Dois dias antes, ele havia sido sequestrado após jantar em uma churrascaria em São Paulo com seu amigo Sérgio Gomes da Silva, conhecido como Sombra.

O então prefeito de Santo André, Celso Daniel, durante entrevista à Folha em novembro de 2001 - Patrícia Santos - 27.nov.2001/Folhapress

Nas últimas duas décadas, poucos crimes no Brasil tiveram tantos efeitos políticos e eleitorais, diretos e indiretos, como o sequestro e morte de Celso. Na época ele era coordenador do programa de governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que seria eleito presidente pela primeira vez no final daquele ano.

A Polícia Civil de São Paulo concluiu que se tratou de crime comum, e seis homens foram presos e um adolescente, apreendido. Os adultos foram julgados e condenados em júri popular.

Mas a revelação meses depois de que havia um esquema de corrupção na administração comandada pelo prefeito alimentou a versão de que o assassinato dele teria sido queima de arquivo.

A acusação era de cobrança de propina de empresas de ônibus do município, para alimentar campanhas do PT. A tese é de que, incomodado, o prefeito teria tentado interromper a corrupção, e por isso teria sido eliminado.

Estariam envolvidos na arrecadação irregular de recursos nomes importantes do partido, como seu então presidente nacional, José Dirceu, e o futuro chefe de gabinete de Lula na Presidência, Gilberto Carvalho. Ambos sempre negaram a existência do esquema.

Duas décadas depois, o caso Celso Daniel ainda é mencionado por adversários contra o PT, e nada indica que será diferente neste ano eleitoral.

No último dia 5 de janeiro, ao deixar um hospital onde havia sido internado para tratar de efeitos colaterais da facada que levou em 2018, o presidente Jair Bolsonaro comparou as "dúvidas" sobre o atentado que sofreu ao crime contra o prefeito petista.

Ao citar pontos da investigação a respeito de Adélio Bispo de Oliveira, o autor da facada, Bolsonaro afirmou que o caso "está muito parecido com o Celso Daniel".

Em redes sociais, é comum bolsonaristas mencionarem o assassinato como uma espécie de ensaio geral para outros escândalos que surgiriam mais tarde envolvendo o partido.

A relação é feita em outros partidos também. A senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), cujo pai era dono de uma das empresas de ônibus que teriam sido alvo de achaques, mencionou diversas vezes o caso para ligar o PT ao tema da corrupção. Para ela, Santo André foi "o laboratório do mensalão e do petrolão".

As suspeitas contra o PT ganharam mais peso quando foram encampadas pela própria família do prefeito.

O professor de economia Bruno Daniel diz que o irmão foi assassinado por não concordar com o desvio de recursos públicos em Santo André para abastecer o caixa do partido.

Ele demonstra não ter muitas esperanças de que a investigação chegue a conclusão diferente da de crime comum, até porque muito tempo já se passou e várias pessoas envolvidas no caso morreram.

Entre eles, Sérgio Sombra, que chegou a ser apontado pelo Ministério Público como mandante do crime e foi preso preventivamente durante sete meses, mas faleceu em 2016 de câncer.

"Travei uma luta intensa para que o caso fosse investigado, mas fica cada vez mais difícil", afirma Bruno.

A tese da Promotoria de crime político nunca prosperou nos tribunais, para decepção do irmão do prefeito.

"O sentimento de perda continua intenso. Até porque as condições do assassinato não foram investigadas o suficiente. Isso dificulta fazer o luto", afirma.

Filiado ao PSOL, partido pelo qual disputou a prefeitura da cidade do ABC em 2020, Bruno Daniel diz lamentar o uso eleitoral da morte de seu irmão.

"Tenho um desejo de que o caso não seja politizado, mas é muito difícil, porque os meios que a extrema direita utiliza são sórdidos, baseados na mentira, no ódio. Então, não tenho muito esperança", afirma.

As consequências da morte de Celso se manifestam de diversas formas. Uma delas foi dar projeção nacional a um então obscuro prefeito de Ribeirão Preto (SP), Antônio Palocci.

Palocci foi chamado por Lula para substituir o colega morto na função de coordenador do programa de governo, por dividir com ele características semelhantes: jovem, bem avaliado e disposto a modernizar o modo de gestão petista, aceitando, por exemplo, a participação da iniciativa privada.

Com Lula eleito, Palocci se tornou ministro da Fazenda e homem forte durante grande parte do primeiro mandato do petista, até cair em desgraça no chamado "escândalo do caseiro". Depois, foi ostracizado pelo próprio PT por ter acusado o ex-presidente de atos de corrupção.

"Com Celso vivo, talvez não tivéssemos tido alguns problemas", diz o secretário-geral do partido, Paulo Teixeira, em referência à ascensão de Palocci, hoje considerado um traidor no partido.

Segundo Teixeira, o uso do tema na eleição "faz parte da disputa política rasteira, baixa". "Sofremos duplamente, pela morte e pela calúnia. Foram feitas acusações que nunca foram confirmadas, acusações levianas", afirma.

Em novembro de 2015, no entanto, a Justiça condenou Sombra e outras duas pessoas pelo esquema de corrupção em Santo André.

Na época do crime, o PT indicou o ex-deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (SP) para acompanhar as investigações em nome do partido. Aquele era o segundo assassinato de um prefeito importante da legenda em apenas quatro meses, após Toninho, de Campinas, morto em setembro de 2001.

"Quando comecei a acompanhar o caso, minha impressão inicial era de que se tratava de crime político. Mas, à medida que a investigação avançava, os elementos todos deixaram claro que se tratou de crime comum, apesar da pressão que foi feita pela família e pelo Ministério Público", afirma Greenhalgh.

A polícia, lembram os petistas, era subordinada a um governo do PSDB, na época o maior adversário do partido.

Um dos principais acusados na época, Gilberto Carvalho afirma que "estes 20 anos que marcam sua ausência fazem reavivar a dor e a consciência de sua perda".

"Sempre penso como Celso teria contribuído com nossos governos. Fez falta sua elaboração, sua capacidade de gerir, sua coragem em inovar".

Sobre as acusações de envolvimento em um esquema de desvios, ele diz que foram desmontadas pelo tempo. "Os acontecimentos foram derrubando as acusações que tentaram fazer contra o PT, numa sórdida tentativa de nos envolver no episódio do assassinato, tentando nos transformar de vítimas em vilões", afirma.


18.jan.02 - Celso Daniel é sequestrado após sair de uma churrascaria em SP; dois dias depois, seu corpo é encontrado numa estrada em Juquitiba (SP)
Abr.02 - Polícia Civil conclui inquérito e diz ter sido crime comum, praticado por uma quadrilha da favela Pantanal
Jun.02 - Em depoimento ao Ministério Público, João Francisco, irmão de Celso, aponta esquema de cobrança de propina na Prefeitura de Santo André
Ago.02 – A pedido da família, Ministério Público reabre investigação
Dez.03 - Ministério Público denuncia o empresário Sérgio Sombra como mandante do crime; ele chega a ficar oito meses preso até ser solto pelo STF
Nov.10 – Primeiro réu da favela Pantanal é condenado pelo crime, por ter dirigido um dos carros usados para sequestrar o prefeito
Nov.15 – Sérgio Sombra, que estava com Celso no carro, é condenado em primeira instância por corrupção na Prefeitura de Santo André, mas recorre em liberdade
Abr.16 – A Lava Jato deflagra a Operação Carbono 14, para apurar suspeitas de que dinheiro da Petrobras foi usado para subornar pessoas envolvidas no assassinato de Celso Daniel
Set.16 - Sérgio Sombra morre de câncer