domingo, 1 de agosto de 2021

Com câmara de regras excepcionais, governo opta pelo negacionismo, Elio Gaspari, FSP

 A cloroquina, a "gripezinha" e a "nova política" ganharam uma companheira. É a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética, criada em junho. Atrás dessa salada escondem-se o risco de um apagão devido à falta de chuvas e a opção preferencial pelo negacionismo que alimenta as marquetagens do governo.

Bolsonaro não pode ser responsabilizado pela redução do volume de água nos reservatórios, mas quando decide encarar o problema maquiando-o, agrava-o. A pandemia mostrou que nos desvãos do negacionismo e da prepotência infiltram-se as picaretagens de intermediários milagreiros.

No caso da falta de chuvas, o governo erra porque quer. Tem à mão a literatura do desempenho do governo de Fernando Henrique Cardoso na crise de 2001. Os demônios de então eram os mesmos de hoje: burocratas negacionistas protegiam-se com a dispersão da autoridade.

FHC deu plenos poderes a Pedro Parente, seu chefe da Casa Civil, e ele criou uma Câmara de Gestão da Crise de Energia. Os marqueteiros reclamaram, pois não queriam falar em crise.

Parente bateu o martelo:

-- Não, tem que usar a palavra crise. É Câmara de Gestão da Crise de Energia, porque a população precisa entender que estamos vivendo uma crise. Não adianta esconder.

Se ele não tivesse feito isso, talvez tivesse sido criada uma Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética.

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

Foi-se o professor José Arthur Giannotti. Deixou sua obra e um exemplo de distanciamento do poder.

Amigo por décadas de Ruth e Fernando Henrique Cardoso, hospedava-se no palácio da Alvorada quando ia a Brasília.

O filósofo José Arthur Giannotti durante inauguração de exposição em 2019 - Zanone Fraissat - 9.fev.2019/Folhapress

FHC colocou-o, por mérito, no Conselho Federal de Educação, que autoriza a criação de universidades particulares. Quando entrou na pauta a transformação das faculdades Anhembi-Morumbi em universidade, ele votou contra, perdeu, pegou o boné e abandonou o conselho.

Na época ele explicou:

"Há faculdades sem bibliotecas, que tomam estantes emprestadas quando temem a chegada da fiscalização. Há escolas que são caça-níqueis. Quando anunciei minha demissão, um dos conselheiros disse que, tendo perdido a votação, eu queria vencer no tapetão. O meu jogo é outro. Não recorro a amizades para resolver esse tipo de problema. Eu estava hospedado no Alvorada e não comentei o episódio com o presidente. Não vou ganhar no tapetão. Quero ir à luta no gramado."

Lutou enquanto viveu.​


O senador Ciro Nogueira é habilidoso e experiente, mas se acha que Bolsonaro lhe deu autonomia para fechar acordos políticos na Casa Civil, comprou um terreno na Lua com vista para Saturno.

Sergio Moro comprou um lote nesse condomínio. Ficava ao lado do "posto Ipiranga" de Paulo Guedes.

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CENÁRIO DA CATÁSTROFE

O comitê eleitoral instalado no Palácio do Planalto trabalha para reeleger Bolsonaro no ano que vem. Os profissionais sabem que isso é possível, mas temem o cenário de uma catástrofe: o capitão não chegaria ao segundo turno.

O ex-ministro Gilberto Kassab, respeitado por suas previsões eleitorais, admitiu essa hipótese há poucas semanas.

De lá para cá, de forma sibilina, Bolsonaro disse em duas ocasiões que poderá não se candidatar. Isso não é verdade, mas, por via das dúvidas é uma rota de fuga, fabricando algum tipo de crise.

Mico diplomático

No próximo sábado completa-se um mês da divulgação da notícia de que o pastor Marcelo Crivella seria o novo embaixador do Brasil na África do Sul.

A etiqueta diplomática recomenda que o nome de um novo embaixador só seja divulgado depois da concessão do agrément do país para onde ele irá. A mesma etiqueta informa que quando o governo não responde prontamente, isso significa que ele prefere não receber o indicado.

Crivella está com o seu passaporte retido por decisão judicial.

Cadeia de comando

O capitão Bolsonaro disse que tratou do caso da vacina indiana com o general Pazuello, que passou a denúncia ao coronel Elcio Franco, que nada viu de errado na picaretagem.

Nunca é demais relembrar o texto que o general Dwight Eisenhower escreveu em junho de 1944, na véspera da invasão da Normandia pelas tropas aliadas, para o caso de um fracasso:

"Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é só minha."

No padrão de seu governo, a encrenca da Covaxin terminará sendo atribuída às vítimas da Covid.

We are the champions! Sim, nós!, FSP

 Tarde da noite no Parque Olímpico da Barra. Jornalistas e fotógrafos se amontoam no circular que leva ao portão de saída, de onde a jornada continua em outro ônibus até as vilas de mídia e os hotéis. Vinda do banco de trás, a voz soa familiar. Um sujeito grande, ao lado de um bem menor, fala com desenvoltura, relatando o que parece ter sido seu dia de trabalho cheio de entrevistas.

A ficha cai rápido, o grandão é aquele ex-nadador tornado comentarista na Rio-16. Sua voz alta destoa do silêncio cansado da maioria e de um polido diálogo em alemão de colegas de uma agência de notícias. “Nossa, incrível”, diz em determinado ponto o sujeito menor, assistindo a um vídeo no celular. “Quando apareceu na minha frente falei: ‘Vou fazer esse aí chorar’. E o cara chorou”, explica o ex-nadador sobre sua performance de repórter com vaidade.

O episódio de há cinco anos volta à memória na manhã de sexta (30). Na TV, a repórter do SporTV pergunta a Tamires, da seleção de futebol, sobre a promessa feita ao filho de trazer a medalha que não vem mais, pois o time acaba de ser eliminado. “Ele tem orgulho de você”, afirma a jornalista, meio que para justificar a pergunta. A lateral, até ali séria e equilibrada, não segura as lágrimas, mas vai direto ao ponto: “Você gosta de fazer chorar, né?”. E emenda a resposta com uma frase de intimidade ou ironia, difícil precisar: “Sua filha também está orgulhosa de você”.

Ilustração Carvall para coluna ombudsman de 01 de agosto de 2021. Nela dois pictogramas pretos correm um dele com microfone na mão.
Carvall

Tóquio-2020 são os Jogos da pandemia e dos nervos à flor da pele. Os tempos difíceis aproximam os envolvidos, justificam a condescendência. No estádio esvaziado pela peste, os aplausos para Rebeca Andrade vêm dos jornalistas e das delegações, único público presente, relata a Folha. Em Tsurigasaki, o repórter da Globo chora junto com o primeiro campeão do surfe, Italo Ferreira. A voz embargada ganha a aprovação das redes sociais, nossa nova bússola moral, no bom ou no mau sentido.

Pelas redes ficamos sabendo da disputa entre as estrelas do street, o mais novo dos esportes nacionais; da discussão sobre o peso de Rebecca, do vôlei de praia; do barraco virtual entre a goleira Bárbara e uma atleta paraolímpica; dos inúmeros testes de resistência das camas de papelão reciclável da Vila Olímpica; do test-drive de privada eletrônica transmitido pelas meninas do skate park no Tik Tok.

O gigantesco evento tem 10 mil atletas e centenas de entidades produzindo conteúdo próprio sem parar. O jornalismo profissional, limitado pela bolha montada para conter a Covid-19 no Japão e por equipes resumidas, é mais passageiro do que nunca.

Os tempos são outros. É possível desistir da competição e ser celebrada pela coragem de tomar essa atitude, mostra Simone Biles; é possível festejar a não necessidade de maiô na ginástica; é possível ver Marta comemorando gol com recado para a namorada. Tóquio são os Jogos da saúde mental, das mulheres e da diversidade. De Jornal Nacional relatando medalhas com trilha sonora, música de suspense e consagração. De repórteres usando a primeira pessoa do plural, vamos conquistar mais uma, vai lá, Time Brasil. Um suando, o outro segurando o microfone.

Nada de novo, mas com pandemia, haja coraçãozinho.

É O FRIO

O inglês The Guardian, em 2019, fez uma série de alterações editoriais relacionadas à cobertura do clima. A ideia era mudar radicalmente o tom do jornal, levar a sério a ameaça ao planeta. O ameno “mudança climática”, por exemplo, foi trocado por termos mais graves, como “crise” e “emergência do clima”. Imagens de onda de calor na Europa? Esqueça a foto da jovem se refrescando no chafariz em Roma, prefira o registro do incêndio florestal em Portugal. Parecem detalhes, mas é neles que uma mudança de cultura mora.

A gelada semana que passou propôs desafio semelhante aos diários brasileiros. Neve de turista no Sul sempre é notícia, assim como a preocupação com a população de rua em São Paulo. Ao cardápio, desta vez, somaram-se fortes geadas no Sul e no Sudeste.

Folha escapou da festa na serra gaúcha com uma imagem de plantação de hortaliças sendo envelopada no Paraná em sua Primeira Página de quinta (29). O estrago deve afetar abastecimento e preços.

Se escolher a foto não foi problema, discutir a onda de frio à luz da crise climática não foi prioridade para quase ninguém. Um dos poucos a se debruçar sobre o tema foi o braço local de uma agência estrangeira, a BBC Brasil. A discussão é modesta também na crise hídrica e pouco se explorou o absurdo da privatização da Eletrobras prever 8 GW de termelétricas a gás natural.

Claro, tudo isso parece preciosismo diante de uma Amazônia queimando e de um governo delinquente ambiental. Como mostra o Guardian, no entanto, mudar de rota é não prescindir nem dos detalhes.