No que possivelmente é um recorde mundial, acumula-se na Câmara dos Deputados mais de uma centena de pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. O afastamento do presidente é questão que divide ao meio a sociedade brasileira. Pelo Datafolha, em março 50% dos eleitores eram contra a medida, e 46%, a favor.
Não importa o que se pense sobre o mérito de um impeachment, não se mostra razoável que, pela vontade de um único cidadão, a proposta não possa ser debatida nas esferas competentes.
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Entretanto é o que ocorre hoje no Brasil, devido à combinação de uma falha do regimento interno da Câmara com a esperteza de sucessivos presidentes da Casa.
O impedimento foi concebido para ser um instituto democrático e simples de acionar. A lei 1.079/50, que regula a matéria, permite que qualquer cidadão denuncie o presidente, por crimes de responsabilidade. Estabelece como requisitos para a peça acusatória apenas o reconhecimento de firma e uma fundamentação mínima da denúncia.
O regimento interno da Câmara corretamente deixa ao presidente da Casa a incumbência de uma primeira avaliação. Se os requisitos estão presentes e a denúncia não é um despropósito, ele deveria deferir o pedido, que começaria automaticamente a tramitar, sendo avaliado quanto à procedência por uma comissão especial antes de seguir para o plenário.
Caso contrário, deveria indeferi-lo, o que o remeteria ao arquivo. O detalhe importante é que, nessa hipótese, cabe recurso ao plenário, como convém numa democracia.
Na prática, porém, sucessivos presidentes da Câmara têm preferido manter os pedidos numa espécie de limbo. As peças recebidas nem são aceitas —e assim não começam a tramitar— nem são recusadas —de modo que não se abre a possibilidade de recurso.
Está tudo de acordo com a letra da Constituição, da lei e do regimento, mas não de acordo com o espírito da legislação, que é o de facilitar o recebimento da denúncia.
Seria simples corrigir isso. Basta, por exemplo, que o regimento estabeleça um prazo para o presidente da Câmara se manifestar sobre cada pedido. Em caso de indeferimento, o plenário terá a oportunidade de dizer se concorda ou não com a avaliação do presidente.
Aqui seria conveniente que a legislação exigisse maioria absoluta (257 dos 513 deputados) para um veredito contrário, como proteção ao mandato presidencial. O afastamento, como se sabe, depende de dois terços dos parlamentares.
Um órgão colegiado como a Câmara dos Deputados não deve concentrar poderes demais nas mãos de apenas um de seus membros. Não é bom para a Casa, não é bom para o equilíbrio dos Poderes, não é bom para a democracia.
A água que sai do cano do prédio é um problema para os moradores das imediações da Praça Arquimedes Silva, na Vila Mariana. Quando chove então, fica impossível de estacionar o carro nas imediações e descer sem molhar os pés. A água inunda toda a rua. Na reunião de condomínio ficou decidido que havia chegado a hora de contratar um escritório de arquitetura e acabar com aquele aguaceiro sem fim.
A arquiteta visitou o local com a intenção inicial de deixar a vazão sob o asfalto e secar a sarjeta. Bem naquele momento, em frente ao prédio, o urbanista José Bueno e o geógrafo Luiz de Campos explicavam ao Estadão como funciona o projeto Rios e Ruas, criado por eles há dez anos, que tem por objetivo sensibilizar pessoas a respeito da realidade dos rios esquecidos pela cidade.
O repórter e o fotógrafo estavam agachados, com a mão na água que saía gelada e transparente daquele cano enferrujado. "Repare que pelo caminho dela há plantas e musgos, sinal que não possui produtos químicos, como cloro por exemplo", ensinou Campos. "Essa água, o prédio precisa bombear para rua a cada 20 minutos sem parar porque senão inunda a garagem. Essa água é na verdade uma das nascentes do Córrego do Sapateiro", acrescentou.
O Sapateiro e boa parte dos 800 rios que estão escondidos embaixo do concreto da capital paulista nascem próximos à estação Ana Rosa do metrô. A região alta da cidade é denominada Espigão de São Paulo, uma crista que separa as duas grandes bacias do município: de um lado, córregos e riachos descem em direção ao Tietê. Do outro, desembocam no Rio Pinheiros.
A missão da dupla Bueno e Campos é procurar por rios escondidos e revelar seu trajeto. Depois, juntar quanto mais gente possível, e realizar expedições na cidade para contar a história dos cursos d'água, sua relação com a cidade e tentar de alguma maneira mudar a mentalidade da população.
"Vivemos em uma cidade biofóbica. Acham que a raiz da árvore estraga a calçada, que a folha entope a calha, que o rio inunda e traz mau cheiro. A gente vai se afastando do que é natural. Nosso processo é repensar nossa relação com o que é vivo. O cuidado com os rios não é uma poesia. É proteger o que é vivo. É um trabalho de transformação do nosso olhar", diz Bueno.
Campos acrescenta que independentemente da ação do homem ou das ideias para colocar ainda mais concreto na cidade, os rios continuarão existindo. "É praticamente impossível matar um rio. Por mais metrôs, ruas e prédios com garagens sejam construídos, o rio não morre. Ele pode no máximo mudar seu curso, mas continuará existindo", conta.
De dentro do prédio, a arquiteta ficou intrigada ao notar o fotógrafo registrando aquele cano como se fosse uma cachoeira amazônica. Ela não precisou nem perguntar. Bueno já viu o olhar curioso dela, pediu autorização ao porteiro e foi palestrar. É sempre assim nas expedições. Qualquer um que demonstre curiosidade, ele vai lá e fala sobre os rios. Ele já tinha feito isso minutos antes com um garoto que lavava os vidros dos carros no semáforo. O garoto entendeu que a água que saía da torneira vinha de um rio. Foi assim também no primeiro rio que Bueno e Campos descobriram juntos.
Em maio de 2010 um amigo em comum colocou os dois para tomar café, disse que eles precisavam conversar e foi embora. Além de fumantes, os dois tinham em comum essa inquietação e, indignação, sobre a força da grana que ergue e destrói coisas belas na cidade. Campos contou sobre o trabalho que fazia desde 1995 com a temática "rios invisíveis" e Bueno adorou, lembrou de suas origens na FAU como estudante de arquitetura e urbanismo. Uns dias depois pegaram a bicicleta, o mapa hidrográfico da cidade e saíram por aí.
Encontraram um riacho em um terreno baldio, que passava sob uma delegacia. Bueno entrou, falou com o delegado, que adorou a iniciativa e ajudou a dupla a pular um muro e seguir o rio até o final.
Bueno contou à arquiteta sobre projetos urbanísticos em cidades da Europa. Deu o exemplo de Freiburg, na Alemanha, onde canaletas são construídas entre a calçada e a rua para que os rios passem aos olhos da população, despoluídos. O país europeu estabeleceu como meta até 2050 recuperar todos os rios, suas curvas, e tirá-los do subterrâneo. A arquiteta ficou encantada, mas precisou ir embora, pois o motorista do Über havia chegado.
Seguimos com Bueno e Campos o trajeto do Sapateiro, que está sob o concreto. Na Rua Maestro Callia, ainda na Vila Mariana, uma ladeira esburacada, com muros altos dos dois lados e com pouco movimento, um gradil no asfalto permite ver a continuação do riacho, uns três metros para baixo. A água está ainda mais forte e com cheiro de esgoto. "Aqui é um exemplo de rua que não precisa existir. Imagina um pequeno deck de madeira e as pessoas podendo acessar o rio? Era assim até o final dos anos 50 mais ou menos", conta Bueno.
O urbanista mostra o celular. No stories do Instagram a arquiteta Georgia Gadea avisa aos seguidores que teve há pouco um encontro que mudou sua perspectiva. "Milagres de rio", brinca Bueno. Ao Estadão, ela contou que procurou a prefeitura de São Paulo e sugeriu de aproveitar aquela água e construir uma fonte no meio da praça. "Acabaria com problema do desperdício da água. E também seria um jeito de informar a todos que ali nasce um rio. O Bueno plantou uma semente de como tem riqueza embaixo dos pés e pela história a gente enterrou, ignorou. Seria um pouco isso. De plantar novas sementes."
O Sapateiro some novamente uns metros adiante e vai aparecer somente no Parque do Ibirapuera. Lá passa por uma estação de tratamento chamada de flotação. A água passa por um processo de limpeza com oxigênio e produtos químicos, que fazem os poluentes emergirem como espuma. Grades também contém objetos que foram jogados no rio. Uns metros depois disso já é possível ver peixes e aves no córrego, que segue e vai desaguar no grande lago do parque.
O trajeto ainda não terminou. Ele segue sob a Juscelino Kubitschek, passa à margem do Parque do Povo e deságua no Rio Pinheiros. Entre plásticos, pneus e uma poluição que as águas arrastam, o projeto de despoluição do Sapateiro tem permitido que garças se posicionem na foz do rio para pescar peixes que chegam vivos até ali. Campos alerta que não há milagre, por enquanto, que o peixe que cai ali morrerá logo por falta de oxigênio. As águas do Sapateiro seguem pelo rio Pinheiros, descem pelos Estados ao Sul do Brasil, continuam pela fronteira entre Uruguai e Argentina até desaguar no Oceano Atlântico.
O primeiro de maio começou à esquerda. Remete a protesto de trabalhadores em Chicago, em 1886, que acabou em presos, feridos e mortos. Mas o Dia do Trabalho se fincou mesmo na Europa, a partir de 1889, com reivindicações pela jornada de oito horas.
Dois anos depois, a Internacional Operária Socialista chamou a si o evento e seu sentido e o converteu em anual. O Brasil não se atrasou, manifesta-se desde o mesmo 1891. O que andou mudando foi o significado do ato.
Embora logo Vargas surja na cabeça, o governo pioneiro em sequestrar a data foi o de Arthur Bernardes. Converteu protesto em celebração estatal, criando o feriado. Isso em 1924, quando a esquerda já ia às ruas desunida —naquele ano, socialistas fizeram um evento, anarquistas, outro.
A apropriação governamental da data nunca mais parou. As ditaduras, a varguista e a militar, a converteram em glorificação do trabalho ordeiro. Acomodação, em vez de reivindicação.
A retomada da efeméride pela esquerda foi tumultuada. O primeiro de maio paulistano de 1968 começou oficialesco e acabou invadido por manifestantes antiditadura. Durante a redemocratização se reestabeleceu o sentido original do dia, de manifestação por direitos de trabalhadores, com o acréscimo da defesa da democracia.
Agora, novo sequestro. Como tudo na realidade paralela bolsonarista, o primeiro de maio foi inusitado. No domingão, os cidadãos de bem da família tradicional brasileira, gente de reputação ilibada como Roberto Jefferson, assaltaram o símbolo. O bolsonarismo pôs o 1º de maio de ponta-cabeça. Em vez dos direitos do trabalho, a liberdade do empreendedor. Em vez de democracia, ditadura.
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O verde-amarelismo embalou demandas por fechamento do Supremo, voto impresso, fim das medidas sanitárias restritivas da “liberdade de ir e vir”. Os amarelinhos se inspiravam na deixa do presidente: “O pessoal fala que eu devo tomar providências. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização”.
O sinal veio de um povinho bem mais minguado que o dos desejos presidenciais. Nenhum instituto de pesquisa contou, mas foram eventos de baixa a baixíssima envergadura.
Teve muito hino e pouca máscara. Um patriotismo patrocinado, porque em muitos dos atos as camisetas e as bandeiras eram iguaizinhas. E um patriotismo dividido, com conflitos entre os que rezavam e os que pediam ato laico. Em conjunto, contudo, sinalizaram na mesma direção, com o slogan-hashtag: “Eu autorizo Presidente”.
Autoriza-se o quê? Como o que perturba o trabalho do presidente são leis, instituições, ciência e bom senso, as faixas na rua eram para deixar o homem trabalhar: “Eu autorizo. O Presidente sabe o que deve ser feito”. “Com o presidente Bolsonaro vamos até para a guerra.” “Presidente, acione as Forças Armadas para auxiliar o povo na defesa de sua liberdade e garantias constitucionais.”
Demandas de clareza meridiana, meridianamente respondidas nesta quarta-feira (5), quando Bolsonaro tornou a desafiar as instituições em nome da “liberdade de trabalhar”: “Nas ruas já se começa a pedir que o governo baixe um decreto. Se eu baixar um decreto, vai ser cumprido. Não será contestado por nenhum tribunal”.
Dia assim, outro também, o mandatário, seus aliados e defensores berram o mesmo. Se na rua são poucos, pouco importa. Relevante é o anestesiamento dos demais. O país normalizou as bravatas antidemocráticas do presidente.
Se todo o dia a democracia precisa ser defendida, então não foi só o sentido do primeiro de maio que o bolsonarismo subverteu.