sexta-feira, 7 de maio de 2021

O sequestro de um símbolo, Angela Alonso, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

O primeiro de maio começou à esquerda. Remete a protesto de trabalhadores em Chicago, em 1886, que acabou em presos, feridos e mortos. Mas o Dia do Trabalho se fincou mesmo na Europa, a partir de 1889, com reivindicações pela jornada de oito horas.

Dois anos depois, a Internacional Operária Socialista chamou a si o evento e seu sentido e o converteu em anual. O Brasil não se atrasou, manifesta-se desde o mesmo 1891. O que andou mudando foi o significado do ato.

Embora logo Vargas surja na cabeça, o governo pioneiro em sequestrar a data foi o de Arthur Bernardes. Converteu protesto em celebração estatal, criando o feriado. Isso em 1924, quando a esquerda já ia às ruas desunida —naquele ano, socialistas fizeram um evento, anarquistas, outro.

A apropriação governamental da data nunca mais parou. As ditaduras, a varguista e a militar, a converteram em glorificação do trabalho ordeiro. Acomodação, em vez de reivindicação.

A retomada da efeméride pela esquerda foi tumultuada. O primeiro de maio paulistano de 1968 começou oficialesco e acabou invadido por manifestantes antiditadura. Durante a redemocratização se reestabeleceu o sentido original do dia, de manifestação por direitos de trabalhadores, com o acréscimo da defesa da democracia.

Agora, novo sequestro. Como tudo na realidade paralela bolsonarista, o primeiro de maio foi inusitado. No domingão, os cidadãos de bem da família tradicional brasileira, gente de reputação ilibada como Roberto Jefferson, assaltaram o símbolo. O bolsonarismo pôs o 1º de maio de ponta-cabeça. Em vez dos direitos do trabalho, a liberdade do empreendedor. Em vez de democracia, ditadura.

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O verde-amarelismo embalou demandas por fechamento do Supremo, voto impresso, fim das medidas sanitárias restritivas da “liberdade de ir e vir”. Os amarelinhos se inspiravam na deixa do presidente: “O pessoal fala que eu devo tomar providências. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização”.

O sinal veio de um povinho bem mais minguado que o dos desejos presidenciais. Nenhum instituto de pesquisa contou, mas foram eventos de baixa a baixíssima envergadura.

Teve muito hino e pouca máscara. Um patriotismo patrocinado, porque em muitos dos atos as camisetas e as bandeiras eram iguaizinhas. E um patriotismo dividido, com conflitos entre os que rezavam e os que pediam ato laico. Em conjunto, contudo, sinalizaram na mesma direção, com o slogan-hashtag: “Eu autorizo Presidente”.

Autoriza-se o quê? Como o que perturba o trabalho do presidente são leis, instituições, ciência e bom senso, as faixas na rua eram para deixar o homem trabalhar: “Eu autorizo. O Presidente sabe o que deve ser feito”. “Com o presidente Bolsonaro vamos até para a guerra.” “Presidente, acione as Forças Armadas para auxiliar o povo na defesa de sua liberdade e garantias constitucionais.”

Demandas de clareza meridiana, meridianamente respondidas nesta quarta-feira (5), quando Bolsonaro tornou a desafiar as instituições em nome da “liberdade de trabalhar”: “Nas ruas já se começa a pedir que o governo baixe um decreto. Se eu baixar um decreto, vai ser cumprido. Não será contestado por nenhum tribunal”.

Dia assim, outro também, o mandatário, seus aliados e defensores berram o mesmo. Se na rua são poucos, pouco importa. Relevante é o anestesiamento dos demais. O país normalizou as bravatas antidemocráticas do presidente.

Se todo o dia a democracia precisa ser defendida, então não foi só o sentido do primeiro de maio que o bolsonarismo subverteu.


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