domingo, 3 de janeiro de 2021

'Ainda não engoli essa eleição', diz agora ex-vereador após 28 anos na Câmara de SP, OESP

 Tulio Kruse, O Estado de S.Paulo

03 de janeiro de 2021 | 05h00

O vereador Toninho Paiva (PL), de 78 anos, ainda tenta se conformar com o resultado das eleições do ano passado. Pela primeira vez em quase três décadas, ele não conseguiu se eleger e está de fora da legislatura que assumiu mandato nesta sexta-feira, 1º. Até poucos dias atrás, tinha um tom amargurado na voz ao falar sobre sua saída da Câmara Municipal de São Paulo.

“Ainda não engoli o resultado dessa eleição”, ele disse na terça-feira, três dias antes de sair do cargo. “Eu (passei) 28 anos debatendo as coisas e de repente, de uma hora para outra, ‘pum’, acabou. Você não sabe nem para onde vai, fica sem chão.”

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Toninho Paiva admite que dava 'jeitinho' para conseguir atendimento médico prioritário para seus eleitores.  Foto: Alex Silva/Estadão

Paiva é o mais velho, e com mais tempo de mandato, de uma leva de vereadores veteranos que deixaram o Legislativo municipal nesta semana. Entre eles também estão José Police Neto (PSD), ex-presidente da Casa, Soninha Francine (Cidadania), Gilberto Natalini (sem partido) e Celso Jatene (PL) – os dois últimos decidiram não disputar a reeleição.

Atleta do futebol de várzea na juventude, ex-presidente de associação de amigos do bairro no Tatuapé, na zona leste, Paiva é um expoente da política baseada em favores. Ele conta que durante a carreira indicou o diretor de um hospital na região, e para lá encaminhava moradores que pediam ajuda para conseguir atendimento médico.

“A gente dava um jeitinho, aí entrava (no atendimento) sem prejudicar o outro, também. Sempre tomei esse cuidado”, garante. Durante a gestão de Celso Pitta na Prefeitura (1997 a 2001), o vereador era citado nos jornais por controlar indicações políticas no Plano de Atendimento à Saúde (PAS), programa que transferiu serviços municipais para cooperativas de profissionais da área de saúde.

O PAS foi alvo de investigação do Ministério Público Estadual e uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), após promotores identificarem um rombo de mais de R$ 1 bilhão no programa por causa de empréstimos contraídos pelas cooperativas. Paiva passou ileso, sem enfrentar nenhuma denúncia formal. “Graças a Deus, não deu em nada”, ele diz.

O mesmo ocorreu nos escândalos que envolveram a gestão de Celso Pitta. A ex-mulher do então prefeito, Nicéa Camargo, fez acusações de corrupção contra Pitta, secretários municipais e vereadores – inclusive ele –, e muitas não prosperaram. Paiva votou pela abertura da comissão especial para analisar o pedido de impeachment de Pitta, e também pela permanência do prefeito no cargo, mais tarde.

Em meio à despedida, os agora ex-vereadores se dividem sobre a qualidade do trabalho no Legislativo paulistano.  Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Na última semana, Paiva mandou redigir um documento com a lista de 45 projetos aprovados, mais da metade com ações para a terceira idade, seu público-alvo – inclusive dez datas comemorativas e semanas temáticas para prevenção de doenças.

Ciclo

Em meio à despedida, os agora ex-vereadores se dividem sobre a qualidade do trabalho no Legislativo paulistano. A principal crítica é que a maioria dos parlamentares não escuta as demandas que chegam pelas redes sociais e outros meios digitais, e preferem ficar à mercê do Executivo.

Gilberto Natalini, que teve mandatos na Casa durante 20 anos, vê a política parlamentar como decadente e acha problemático o aumento no número de vereadores “ligados a denominações religiosas, a grupos econômicos, nem sempre republicanos e legais”. Ele também critica os “youtubers”, que entraram na política principalmente após ganhar notoriedade na internet, e prevê que haverá dificuldade para lidar com temas áridos como normas de urbanismo e orçamento público.

Eleito presidente da Câmara em duas ocasiões, em 2011 e 2012, José Police Neto avalia que o maior desafio dos vereadores ainda deve ser resistir à influência da Prefeitura e ter uma agenda própria. “Ainda enxergo uma Câmara para lá de submissa às vontades do Executivo com seus superpoderes.”

Soninha Francine, que passou pela Casa entre 2005 e 2009 e agora terminou o segundo mandato, diz que viu os colegas amadurecerem e aceitarem críticas a seus projetos. “Passamos a ter debates verdadeiros em torno de propostas.”

Fora da Câmara, Police e Soninha pensam em atuar no terceiro setor com políticas públicas. Já Toninho Paiva pensa em abrir um memorial, e talvez tocar os negócios em uma empresa da família. “Ex-vereador não vale nada”, afirmou.


O QUE A FOLHA PENSA- Mais Aldir Blanc

 

Em foto de 2005, o compositor Aldir Blanc, morto em 2020 devido à Covid-19 - Alexandre Campbell- 25.nov.05/Folhapress

As trocas sucessivas e conturbadas no comando federal da cultura ao longo de 2020 constituem bom parâmetro para dimensionar o desgoverno de uma área, que, como se sabe, conforma um dos campos de batalha do bolsonarismo.

Do delirante projeto de “guerra cultural” contra a esquerda do ex-secretário Roberto Alvim à inoperância truculenta do atual, Mario Frias, passando por Regina Duarte e sua nostalgia do ufanismo dos tempos da ditadura militar, a gestão do setor notabilizou-se pela tentativa de promover a agenda retrógrada do círculo presidencial.

Tal ofensiva não esteve restrita ao topo, espraiando-se para outros órgãos ligados à secretaria, que passaram a servir de veículos de um revisionismo histórico infame e sinecuras de apaniguados sem preparo ou experiência na área.

As agruras do setor ganharam dimensão dramática na pandemia. Com a retirada do público das apresentações, artistas e companhias se viram sem a principal fonte de financiamento e renda. Nesse contexto, a Lei Aldir Blanc, proposta pelo Congresso e sancionada em junho, representou inegável alento.

O socorro financeiro de R$ 3 bilhões, repassado a estados e municípios, foi destinado ao pagamento de um benefício temporário de R$ 600 mensais a profissionais da área, a subsídios para manutenção de espaços culturais, pequenas empresas, cooperativas e organizações do setor cultural, e a financiamento de projetos e prêmios.

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Seu volume e capilaridade sem precedentes na política cultural brasileira, em tese justificáveis num país de produção tão vasta e dispersa pelo território, constituem também sua fragilidade, diante da inglória tarefa de fiscalizar o uso correto dos recursos.

Dado o tempo exíguo para a execução da vultosa verba prevista na legislação, terminou sendo acertada a decisão da Presidência de prorrogar esse prazo, de 31 de dezembro de 2020 para a mesma data deste ano, atendendo o pedido de artistas e parlamentares.

O governo Jair Bolsonaro também vem se empenhando em tomar para si todo o crédito pela iniciativa, a exemplo do que fez no caso do auxílio emergencial, embora o projeto da lei cultural seja obra do Poder Legislativo.

Trata-se de mais uma mostra de oportunismo —o que será mal menor se ao menos houver esforço em cotejar prós e contras da iniciativa, divulgar resultados com transparência e propor alternativas.

editoriais@grupofolha.com.br

sábado, 2 de janeiro de 2021

Lamento, mas 2020 não acaba hoje, Josimar Melo, FSP

 Senhores, lamento decepcioná-los mas, diante das circunstâncias, sou obrigado a informá-los que, a despeito da expectativa geral, 2020 não se encerra hoje. Nem acabará tão cedo.

Há indícios no calendário de que certo ciclo astronômico findaria hoje, mas é mera convenção para orientar balanços de empresas, planos plurianuais de governos e cobradores ávidos por nos encurralar.

Em outro universo, o mesmo ciclo poderia iniciar-se, com mais propriedade, em algum dos solstícios, e não em um ponto qualquer do inverno ou do verão.

Sabemos também que a ilusão do fim do ano é igualmente produto da angústia humana em crer que os fracassos foram temporários, e daqui pra frente tudo vai ser diferente: a dieta de dois meses para perder dez quilos nos fará perder dez quilos, e não, como suspeitamos, apenas dois meses de vida; o trabalho massacrante vai nos absorver menos e nos dar mais tempo para as pessoas queridas, as quais, porém, estarão soterradas demais no próprio trabalho massacrante para nos dar atenção; a ressaca do Réveillon alguma hora vai passar, dando finalmente lugar à nova bebedeira e outra ressaca que alguma hora vai passar; aquela garota do escritório que passou o ano nos evitando vai finalmente dar mole —e a gente também, na hora agá.

Mas algo não depende de convenções nem de boas intenções: é a realidade nua e crua, que ignora desejos e impõe a crueza dos fatos. E 2020 não conseguiu concluir praticamente nenhuma das mazelas terríveis que protagonizou.

Rua londrina quase deserta
Registro da Regent Street, em Londres, no dia 26 de dezembro; cidade enfrenta lockdown mais rigoroso em razão do aumento das infecções de Covid e da descoberta de novas cepas do vírus - Niklas Halle'n/AFP

Conversando com um amigo inglês, ele me dizia que o pesadelo estava de volta a Londres: confinamento, restaurantes fechados, nova cepa de vírus no ar. Contei-lhe que também aqui caminhávamos para algo semelhante.

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Constatamos que os mais importantes recordistas de mortes eram nossos países, junto com Estados Unidos. Todos com uma causa clara, a imbecilidade criminosa do governante. (O britânico, depois de uma temporadinha básica na UTI, tentou redimir-se, mas tarde demais.)

Ninguém avisou ao vírus que hoje é dia 31? Que amanhã é o novo dia de uma nova era? Que basta?
Mais realista que as vãs esperanças de bilhões, a Covid-19 não parece se importar com o calendário. E tudo indica que vai escorrendo como uma serpente sorrateira, atravessando impávida a passagem da década e inaugurando o pretenso novo ano com seu rastro de terror, liderando o cortejo de cúmplices.

O mundo enfrenta um colapso humano inédito nos últimos cem anos. E, se alguém espera que tudo mude num piscar da folhinha, melhor saber que as estranhas convenções de 2020 —distanciamento​ dos semelhantes, confinamentos, máscaras, álcool em gel, desemprego— ficarão por aí por um bom tempo, mesmo com as prometidas vacinas.

O ano de 2020 seguirá, impávido, pelo menos por um bom número de meses. Mas não é só nisso que o ano terrível buscará se eternizar enquanto dure de fato.

É verdade que o mundo escanteou um monstro chamado Donald Trump —mas a máquina de guerra americana, tão cara ao Partido Democrata, continua azeitada.

Verdade que vimos no Chile um progresso importante do movimento popular a favor dos direitos civis; mas, em outras partes em que a população foi à rua, a pandemia jogou contra a democracia, como em Hong Kong e na França.

Enquanto isso, no Brasil, o interminável 2020 parece fadado a durar pelo menos mais dois anos.

É verdade que o neofascista Bolsonaro e seus esbirros que concorreram às prefeituras brasileiras foram humilhados nas urnas. Mas não há sinais (antes pelo contrário) de que se tenha arrefecido a destruição e desmonte da ciência, da educação, das artes, da natureza, dos direitos trabalhistas e dos direitos humanos promovido por Bolsonaro e sua coorte de milicianos, ignorantes, fanáticos e filhos (vários se enquadram em todas as categorias).

Pelo contrário, este governo nefasto continua corroendo por dentro as instituições —o que nos países neoditatoriais mundo afora tem funcionado para manter autocratas no poder.

Não quero ser tão pessimista. Quem sabe restem solidariedade, higiene, aversão à tirania. E, sim, 2020 alguma hora vai acabar. Nem que demore anos.

Josimar Melo

Crítico de gastronomia, autor do “Guia Josimar”, sobre restaurantes, bares e serviços em São Paulo.