terça-feira, 24 de novembro de 2020

Marina Kohler Harkot, FSP

 Paulo F. G. Harkot, Elizabeth Harkot de La Taille e Yann H. de La Taille

Respectivamente, pai, tia e primo de Marina

Ausência
Carlos Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Marina era uma pessoa da construção. Marina era uma pessoa da construção e em construção. Na madrugada do dia 8 de novembro, sua morte tirou o chão sob os pés de muita gente. Fez-se uma perda irreparável para Claudia e Paulo, seus pais; para Fabio, seu irmão; para Gabriel, seu meio-irmão; e para seus avós, tios e tias, primos, primas e sobrinhos, amigos, amigas, orientadores, companheiros de trabalho... E para Felipe, o companheiro escolhido para compartilhar a vida.

Mas Marina era uma pessoa da e em construção. Se a perda para familiares, para Felipe, amigos e amigas é irreparável, a perda para o país não é menor.

Marina Kohler Harkot, que viveu apenas 28 anos, mas fez tanta coisa pela mobilidade
A cicloativista Marina Kohler Harkot, 28 anos - Arquivo pessoal

Marina foi brutalmente arrancada da vida aos 28 anos, enquanto pedalava voltando para casa. Foi violentamente atropelada por um motorista que só soube fugir e se esconder. Uma jovem mulher amorosa, bem-humorada, forte no modo de colocar seus valores, idealista, poliglota, ambiciosa, determinada. Uma idealista rara: do tipo capaz de colocar em ação seus valores.

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Por isso, Marina era uma pessoa da construção. Seu trabalho, seus estudos, sua maneira de viver concretizavam a integridade de seus ideais em atos, em ações, em projetos para uma cidade mais humanizada, com trânsito menos selvagem.

Para uma cidade em que todas as pessoas, de todas as idades, condições sociais e gêneros tenham igualmente direito a ocupar livremente as ruas e calçadas, deslocando-se com segurança e respeito, para onde quiserem, na hora em que quiserem. Marina morreu daquilo que mais combatia: um sistema em que o carro é senhor absoluto e que dá a muitos motoristas a sensação de que são os donos do espaço.

Recebemos milhares de mensagens de dor, apoio, solidariedade, pêsames. Mensagens de afeto, enfim, que agradecemos do fundo do coração.

O que mais desejamos é que essa rede de afeto e mobilização que se teceu e se expande espontaneamente em torno da partida de Marina se mantenha firme e coesa, numa união por medidas concretas que humanizem a vida e a circulação nas cidades, evitando mortes prematuras de tantas pessoas.

Em 2019, segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de três crianças por dia perderam a vida para o trânsito no Brasil. Ano passado, o país ocupava o quarto lugar no mundo em maior violência no trânsito.

Marina era uma pessoa da e em construção. Onde quer que esteja estará bem, e temos certeza de que seu maior desejo é que levemos adiante seu poder de integração e construção materializado por tão belo legado. Façamos com que sua trágica morte contribua para a concretização de seus valores e seus ideais.

Assim, estaremos honrando sua memória e sua vida, ajudando-a a construir aquilo que, intuitivamente, sabia ser necessário. Desse modo, estaremos também transformando a ausência agora vivida em sua permanência. Em cada ato, em cada um, a cada dia, em cada vida vivida e, principalmente, em cada morte desnecessária evitada.

Marina Kohler Harkot (22.abr.1992 - 8.nov.20)
Mestre e doutoranda pela FAU-USP, pesquisadora do LabCidade e graduada em ciências sociais (FFLCH-USP)


Um país racista ou desigual?, FSP

 O Brasil é um país desigual ou é um país racista? Ele é as duas coisas ao mesmo tempo, e destrinchá-las não é trivial. São conhecidas as estatísticas do IBGE que informam que trabalhadores brancos ganham quase 70% mais do que negros. A dificuldade com esse dado, da forma que costuma ser apresentado, é que ele soma os efeitos da desigualdade social com os do racismo e põe tudo na conta do segundo.

Há motivos legítimos para explicar diferenças salariais, como história educacional, cargo exercido, tempo de casa etc. Quando comparamos grupos semelhantes, isto é, negros e brancos com o mesmo grau de instrução, ou que ocupem postos no mesmo nível hierárquico, as disparidades diminuem. O problema é que só diminuem, sem desaparecer, sinal de que a cor da pele também faz diferença.

Há interessantes trabalhos, como o de André Salata (PUC-RS), que tentam separar os efeitos diretos do racismo dos indiretos, mediados por pobreza, educação.

E o mercado de trabalho é só uma das esferas em que o racismo estrutural se manifesta. Estudos mostram que negros também sofrem discriminação no sistema de Justiça (é mais provável um jovem negro apanhado com maconha ser enquadrado como traficante do que um branco flagrado na mesma situação) e até em hospitais (o controle de dor é mais precário para pacientes negros).

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É raro encontrarmos um racista empedernido, daqueles que vestem lençóis na cabeça, por trás desse tipo de discriminação, que se materializa por canais mais sutis, como vieses e estereotipias, que afetam o comportamento das pessoas sem que elas se deem conta.

Combater o que acontece abaixo do radar da consciência é difícil. O reconhecimento do problema é o primeiro passo. A sociedade brasileira já parece tê-lo dado. Quiçá isso um dia chegue às escolas militares que formaram Bolsonaro, Mourão e outros que ainda acham que não existe racismo no Brasil.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Centrão expandido, editorial , FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Os sinais emitidos pelas urnas no primeiro turno das eleições municipais ainda estão sendo decodificados, mas uma constatação parece clara: o avanço das siglas do centrão fisiológico e seu entorno se deu num diapasão governista em espírito, por assim dizer.

Levantamento feito pela Folha mostrou, por exemplo, uma correlação direta entre um desempenho superior desses partidos em cidades que demandaram mais o auxílio emergencial da pandemia.

Nos 200 municípios com maior adesão à ajuda federal, Progressistas, Republicanos, PL, PSD e MDB angariaram 57% das vitórias. No conjunto das cidades brasileiras com eleição decidida em primeiro turno, o índice foi de 49%.

Com efeito, a esquerda, PT à frente, viu seu espaço sendo reduzido nesses locais mais necessitados.
Isso mostra o caráter governista de parte do voto brasileiro, reforçado neste pleito pelo índice de reeleições até aqui: 68% nas cidades que receberam mais auxílio, ante 63% no total dos municípios.

Isso não é exatamente uma boa notícia para Jair Bolsonaro.

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O arranjo de poder montado em torno do presidente sugere mais a ação parasitária em relação ao poder dos partidos ligados ao Planalto —e aqui o MDB não se encaixa na definição precisa apesar de ter o líder do governo no Congresso— do que um mutualismo político.

A inexistência de uma agenda congressual do Planalto, que vê o ex-rei do centrão Rodrigo Maia (DEM-RJ) pautar o dia a dia na Câmara dos Deputados, exemplifica a falta de coordenação entre o governo e seus apoiadores nominais.

Com o apontado aumento da rejeição a Bolsonaro nas capitais, que sugere o que pode acontecer quando o auxílio acabar, e com o potencial recrudescimento da crise econômica, é plausível antever as siglas deixando os despojos que ora varejam para seu benefício.

Essa é uma chave para entender as chances de Bolsonaro na disputa da reeleição, em 2022.
Se atravessar o ano que vem de forma claudicante, cada vez mais amparado no binômio apoplexia pública e catatonia política, o centrão e suas adjacências tenderão a olhar para alternativas no que se convencionou chamar de centro e de centro-direita no país.

Mas se a economia não desandar e houver alguma racionalidade no esperado processo de saída da pandemia, hoje uma proposição algo panglossiana, Bolsonaro sempre terá consigo a máquina e seu poder de atração enquanto sacia o sistema político com migalhas.

Sob esse aspecto, as derrotas do presidente nos principais pleitos em que se envolveu parecem menos definitivas, embora revelem o humor de um eleitorado que, neste 2020, rejeitou o bolsonarismo.

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