domingo, 22 de novembro de 2020

SILVANA KRAUSE Fragmentação e acrobacia dos futuros prefeitos, FSP

 Silvana Krause

Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS

A nova democracia brasileira tem uma longa trajetória de iniciativas de reformas políticas. Algumas delas foram implementadas e, sem dúvida, possibilitam um olhar de alerta, pois seus efeitos nem sempre alcançaram o almejado. Entre a ação e a intenção há uma zona cinzenta, e seus efeitos não estão sob a égide da vontade do seu agente. O alerta da sabedoria popular “o caminho para o inferno é pavimentado de boas intenções” sinaliza precaução diante da euforia na busca do paraíso.

proibição de coligações para eleições proporcionais (emenda constitucional 97/2017) entrou em vigor nesta eleição municipal, e as legendas apresentaram seus candidatos a vereador com essa nova experiência. Uma ótima oportunidade de avaliar o que a proibição trouxe de impacto em sua estreia.

A cientista política e professora da UFRGS Silvana Krause - Folhapress

Os efeitos negativos das alianças proporcionais foram destacados com muitas evidências. São “casamentos” pueris e de circunstância, não seguem identidades baseadas no eixo ideológico-programático. Ferramenta importante para o sucesso eleitoral, mas não oferece garantias de compromisso em continuidade de atuação conjunta nos mandatos legislativos. Muito também se destacou o efeito perverso das coligações proporcionais atingindo a qualidade da representação. O voto do eleitor corria o risco de eleger outro representante, pois era contabilizado para a aliança como um todo, e não para a legenda no cálculo da distribuição dos mandatos conquistados.

Diante de tantos desafios do sistema político brasileiro, há um consenso de que uma das mazelas para seu bom funcionamento é o elevado número de partidos que logram representação política. Evidentemente não a mera quantidade deles, mas o ponto nevrálgico é o tamanho que muitas legendas conquistam nas instituições legislativas. Ou seja, muitos partidos com força representativa suficiente para impactar no jogo da cooperação ou paralisia decisória. Entre tantas causas apontadas pelos investigadores para um cenário multipartidário altamente fragmentado e crescente nos últimos anos, as coligações nas eleições proporcionais foram também destacadas como centrais causadoras para o cenário. Não por acaso, os partidos pequenos e as novas legendas manifestaram receio de perderem espaço com a nova legislação e os partidos de maior representação tiveram a expectativa de um “mosaico” menos retalhado.

O resultado da dispersão partidária nas Câmaras Municipais das capitais não parece indicar alento, ao menos nesta primeira experiência. A ciência política define um padrão de cálculo que analisa o grau de fragmentação do sistema partidário (NEP - Número Efetivo de Partidos), ponderando o tamanho de cada bancada partidária em relação ao total de cadeiras legislativas disponíveis e às demais bancadas partidárias representadas.

Observando a representação das novas legislaturas em 25 Câmaras Municipais de capitais (Macapá teve o pleito adiado devido à crise energética), a realidade não se alterou significativamente. Somente nos Legislativos de 11 capitais houve alguma diminuição do número de partidos representados.

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Dessas, apenas em Recife, Teresina, João Pessoa, Boa Vista, Natal e Rio Branco a queda do número de partidos representados foi expressiva. Ainda assim, mesmo nessas capitais, a fragmentação continua preocupante, pois, de acordo com classificação comumente usada do NEP (de 5 a mais partidos com peso relevante), são definidos como sistemas partidários altamente fragmentados. Aliás, em todas as capitais, o quadro continua este —ou seja, nenhuma delas alterou o diagnóstico já constatado na eleição de 2016: Câmaras Municipais altamente fragmentadas.

Ainda está cedo para avaliar se a “vacina” não imunizou ou se seu efeito é somente a longo prazo. Mesmo assim, é preciso estar atento de que a tradição falou alto: a lista aberta continua reforçando campanhas centradas na política de performance individual, estimulando campanhas fundamentadas em perfis de “ondas” segmentadas.

O lançamento de várias candidaturas ao Executivo parece ter ocupado um papel já conhecido dos puxadores de votos de candidaturas coligadas nos pleitos proporcionais. A desconexão partidária do voto Executivo e Legislativo continua um ponto nevrálgico. Os novos prefeitos eleitos precisarão ser bons acrobatas para não cair na “malha fina” dos que estão de prontidão para novos empreendimentos na política.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Ruy Castro O gênio do inconfessável, FSP

 "Acendo um cigarro. Ou por outra: não acendo um cigarro (o Dr. Stans Murad não pode saber que ainda fumo)". Isso é Nelson Rodrigues em uma de suas crônicas no Globo e que considero um dos maiores trechos de crônica que já li. Nelson, aos 60 anos, fora proibido de fumar por seu cardiologista e, com naturalidade, contou o que estava fazendo ao escrever. Só aí se lembrou de que, no dia seguinte, o médico o leria no jornal. Mas, em vez de apagar o cigarro e a frase, entregou-se com hilária sinceridade.


As crônicas de Nelson Rodrigues eram diárias, sempre na primeira pessoa, e tinham um título geral de "As Confissões". Porque era isso o que elas eram —confessionais ao absurdo. Em outra, contou que, certa noite, ao chegar em casa vindo do trabalho, foi informado por sua mulher, Lucia, de que Guimarães Rosa morrera. "De quê?", perguntou. "Enfarte", ela respondeu. Ele então fora para a varanda e, com a cidade iluminada aos seus pés, descobriu-se intimamente satisfeito pela morte de Guimarães Rosa.

Tinha "inveja literária" de Guimarães Rosa, admitiu. Rosa não podia espirrar sem ser chamado de gênio, ao passo que ele, Nelson, só levava pancada das plateias, dos críticos e da censura. Mas Rosa morrera e ele estava vivo, pensou. E só aí se deu conta da monstruosidade de tal sentimento. Como pudera pensar aquilo? De repente, convertido, admirou em Rosa o homem que dedicara sua vida a construir uma obra, indiferente aos apelos externos, políticos ou de qualquer ordem. O artista total.

Quem, além de Nelson Rodrigues confessaria coisas assim? Mas era o que ele fazia todos os dias, ano após ano: expor-se pelos jornais, ao mesmo tempo em que reservava o inconfessável do ser humano para seu teatro —que, hoje, ninguém mais discute, também é obra de gênio.

No dia 21 de dezembro, serão 40 anos da morte de Nelson Rodrigues. O Brasil não produziu outro.

Elio Gaspari -Há racismo e também demofobia, FSP

 Só na semana que vem será possível medir o impacto eleitoral do assassinato de João Alberto Silveira Freitas pela milícia formalizada da rede francesa Carrefour em Porto Alegre. No dia 9 de novembro de 1988 uma tropa do Exército matou três operários que ocupavam a usina de Volta Redonda. Seis dias depois, para surpresa geral, a petista Luiza Erundina foi eleita para a Prefeitura de São Paulo.

Como disse o vice-presidente, Hamilton Mourão, João Alberto, o Beto, era uma “pessoa de cor”. Seu assassinato aconteceu no mesmo dia em que o Carrefour anunciava na França sua disposição de boicotar os produtos brasileiros vindos de áreas desmatadas do cerrado. Beleza, em Paris milita-se na defesa das árvores enquanto em Porto Alegre mata-se gente.

Esse tipo de comportamento é velho e disseminado. Em 2001 a milícia formalizada da rede Carrefour prendeu duas mulheres no Rio de Janeiro e entregou-as à milícia informal de traficantes de Cidade de Deus. Foram espancadas, mas os bandidos não cumpriram a ameaça de queimá-las vivas. Quando o caso foi denunciado, o embaixador francês era o professor Alain Rouquié, um conhecido intelectual parisiense. Ele foi ao governador Anthony Garotinho e reclamou do noticiário que prejudicava a imagem internacional do Carrefour.

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Pelos critérios americanos do século 19 e sul-africanos do 20, Mourão é uma “pessoa de cor”. A escrava de Thomas Jefferson com quem ele se acasalava era mais branca que o general.

Segundo o vice-presidente e muita gente boa, no Brasil não existe racismo, existe desigualdade. O que pretende ser uma explicação é um agravo. Desigualdade não explica esse tipo de assassinato. Eles são produto da demofobia, onde o racismo tem um papel funcional, pois a cor identifica as pessoas sem direitos. Se Mourão tivesse razão, a coisa funcionaria assim: se você é pobre, ferra-se, se ainda por cima é negro, dana-se. Pelo menos um dos três mortos de Volta Redonda era branco.