domingo, 11 de outubro de 2020

O que justifica as cotas? Hélio Schwartsman, FSP

 Há dois caminhos principais para justificar as cotas raciais. Pelo primeiro, elas seriam uma forma de reparar injustiças históricas. É preciso ser estatística e historiograficamente cego para não ver que existe racismo estrutural no Brasil e que a escravidão tem muito a ver com isso. Uma compensação aos descendentes de escravos na forma de cotas seria, então, uma forma de fazer justiça.

Não gosto muito dessa justificativa. O argumento central contra ela é que há um considerável descompasso entre o universo de prejudicados pela injustiça original e o de beneficiados pela política reparatória. As cotas, afinal, favorecem só um número pequeno dos descendentes de escravos, em geral os com mais instrução e que menos precisariam de impulso. Os negros mais necessitados, aqueles que não completam o ensino fundamental, lotam as cadeias e vão parar precocemente nos cemitérios, nada ganham com elas.

No polo oposto, o branco preterido no vestibular não é necessariamente um descendente de traficantes de escravos. Para a ideia de reparação fazer sentido, temos de apelar à noção de culpa coletiva, que é bem problemática.

O outro caminho me parece melhor. Por ele, as cotas não se justificam pelo passado, mas pelo futuro. Há um bom corpo de pesquisas mostrando que, quando diferentes pessoas, com diferentes backgrounds e perspectivas, se põem a trabalhar sobre os mesmos problemas, as soluções encontradas tendem a ser melhores. O bacana aqui é que a racionalidade das cotas também salta do indivíduo para a sociedade, e a culpa coletiva dá lugar à responsabilidade social.

Considero essa justificativa aceitável, mas devo confessar que não sou um grande fã de cotas raciais. Por mais que douremos a pílula, elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de uma pessoa com base em suas características fenotípicas, que é justamente o que torna o racismo um problema moral.

Despesa do Brasil para manter atividade em 2020 está entre as maiores do mundo, FSP

 Eduardo Cucolo

SÃO PAULO

O pacote de estímulos fiscais do Brasil para enfrentar a pandemia está entre os maiores verificados em todo o mundo, fator que deve evitar uma contração maior da economia neste ano, mas dificulta a manutenção dos gastos em patamar suficiente para garantir uma retomada da atividade mais forte em 2021.

O país anunciou medidas equivalentes a 12% do PIB (Produto Interno Bruto), segundo dados atualizados até setembro pela equipe responsável pelo Índice de Estímulo Econômico da Covid-19, das universidades Columbia (EUA), Sungkyunkwan (Coreia do Sul) e Eskişehir Osmangazi (Turquia).

Com isso, o Brasil ocupa a 27ª posição entre 168 nações. Na comparação com o PIB, o gasto se aproxima do verificado em países europeus como França e Itália e supera todos os Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e todos os países relevantes da América Latina. Está também apenas dois pontos percentuais abaixo do verificado nos EUA.

No pacote brasileiro inclui, entre outras medidas, o auxílio emergencial para trabalhadores informais, o programa de retenção de emprego, recursos para saúde, transferências para estados e municípios e garantia de crédito em empréstimos para empresas.

O último balanço do Ministério da Economia lista R$ 587 bilhões em despesas anunciadas até setembro e benefícios tributários de R$ 21 bilhões. Somente o auxílio emergencial representa R$ 380 bilhões previstos para este ano.

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De acordo o Painel Covid-19 da IFI (Instituição Fiscal Independente), até o dia 6 de outubro havia uma dotação de R$ 603 bilhões para despesas relacionadas à pandemia, sendo que R$ 518 bilhões estão empenhados e R$ 446 bilhões já foram gastos.

No valor desembolsado, destacam-se cerca de R$ 230 bilhões para o auxílio emergencial, mais de R$ 70 bilhões em repasses a estados e municípios, R$ 30 bilhões do Ministério da Saúde e mais de R$ 20 bilhões para operações de crédito.

A introdução dessas medidas mais que compensou a queda na renda que seria provocada pela pandemia neste ano. Segundo cálculos do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia) da Fundação Getulio Vargas, a massa ampliada de rendimentos deve fechar o ano com avanço do 3,9%. Sem as medidas de transferência de renda, teria recuo inédito de 6,1%. Em compensação, para 2021 se estima uma queda de 6% com o fim desses benefícios.

O problema todo é que o cobertor sempre é curto. A gente não tem fôlego para continuar nessa política fiscal expansionista dessa magnitude, como de países desenvolvidos. Isso amorteceu o choque, mas também criou uma dependência muito grande. Na medida em que a gente não tiver mais essas transferências, a situação deve ser mais dramática. Esse é um ponto que preocupa muito do ponto de vista de consumo das famílias”, diz Silvia Matos, coordenadora técnica do Boletim Macro do Ibre.

William Baghdassarian, professor de Finanças do Ibmec-DF, afirma que o Brasil adotou praticamente todos os tipos de medidas disponíveis, enquanto outros países emergentes limitaram seu campo de ação.

“É como se houvesse um pacote de remédios e você pegasse todos eles. O Brasil adotou todo esse receituário, e as políticas foram bem sucedidas. A gente conseguiu estancar um pouco da queda do PIB, que podeira chegar a 10% e deve ficar próxima de 5%, muito por conta do auxílio emergencial”, afirma Baghdassarian.

“Foi muito por tentativa e erro, então a eficácia e a eficiência se perde um pouco, mas não posso nem culpar o governo, porque nunca tivemos uma crise dessa magnitude.”

Para ele, a retirada dessa medicação em 2021 constitui um desafio, pois, se o Brasil continuar em um ritmo excessivo de gastos haverá outros fatores que vão minar a recuperação do país.

“A gente vai continuar a ver elevado desemprego, inflação que vai voltar, taxa de câmbio desvalorizada, baixo crescimento. O mercado já precifica essa dificuldade em pagar a dívida. A solução é a aprovação de reformas estruturantes, melhorar o ambiente de negócios no Brasil para que o investimento privado comece a aparecer, combinado com algum esforço fiscal”, afirma.

O economista Alexandre Chaia, do Insper, afirma que as ações do Brasil na área econômica foram bem sucedidas, apesar da dificuldade em viabilizar alguns programas, principalmente na área de crédito.

Também houve demora em conseguir fazer o auxílio emergencial chegar a toda a população que tinha direito ao benefício. Na área de saúde, por outro lado, o desempenho foi significativamente negativo.

Para ele, o país não exagerou na dose ao aproveitar a onda mundial de aumento do endividamento para viabilizar essas ações. Mas o fato de o Brasil ter entrado na crise com a economia mais fragilizada vai tornar a transição para a saída mais difícil.

Segundo Chaia, o Brasil já estava patinando desde a reeleição da presidente Dilma, em 2014, e já era um dos mais endividados entre os emergentes.

“A saída da crise para a gente vai ser muito traumática. A retirada dos incentivos vai fazer despencar o consumo, o desempego vai aumentar. Como vamos manter a rede de proteção com essa restrição financeira? Para manter o mínimo de credibilidade, a gente precisa manter o teto de gastos. O único jeito é cortar gastos, abrindo espaço fiscal.”

Armando Castelar Pinheiro, coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, afirma que o Brasil não possui espaço para seguir com novos estímulos como os países desenvolvidos e que permanece o desafio, aqui e em outros países, de fazer com que a demanda privada cresça para além da venda no varejo e da questão da indústria.

“O desafio maior são os serviços, que é o grande setor da economia lá fora e aqui. A questão é como a demanda privada se recupera e quais os limites dos instrumentos para fazer isso”, diz Castelar.