sexta-feira, 15 de novembro de 2019

República extinguiu privilégio apenas dos Braganças, diz Murilo de Carvalho, FSP

Historiador lembra que regime proclamado em 1889 não incluiu o povo, e democracia ficou ausente até os anos 1940

BELO HORIZONTE
O pecado original da República, na avaliação de José Murilo de Carvalho, foi não ter incluído o povo. "A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais", afirma o historiador sobre a proclamação que completa 130 anos nesta sext a-feira (15).
"Para os propagandistas, República e democracia eram indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no sistema representativo, ficou ausente até a década de 1940", diz Murilo de Carvalho, 80, que é cientista político e imortal da Academia Brasileira de Letras.
O historiador José Murilo de Carvalho
O historiador José Murilo de Carvalho - Raquel Cunha - 25.mai.19/Folhapress
Em entrevista à Folha, o historiador reflete sobre o caráter autoritário e pouco inclusivo do início do período republicano no Brasil e afirma que, 130 anos depois, nossa república "continua sujeita à interferência 'moderadora' das Forças Armadas".​
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A ausência de povo, eis o pecado original da República, segundo o senhor. Como e por que o povo não fez parte dela? A afirmação refere-se à origem de nossa República. Para os propagandistas, República e democracia eram indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no sistema representativo, ficou ausente até a década de 1940. Até essa data, tínhamos uma participação eleitoral inferior à que existiu até 1881, quando foi introduzido o voto direto. Era uma república patrícia, uma república sem democracia.
Qual o significado de uma República sem povo? Na Grécia, Roma, Estados Unidos a República convivia com a escravidão e com a exclusão política das mulheres. Mas todo homem livre era cidadão ativo. A partir da Revolução Francesa, no entanto, a democracia passou a ser componente indispensável das repúblicas. No Brasil, a efetiva incorporação de povo, homens e mulheres, no sistema representativo só aconteceu após a queda do Estado Novo. A partir daí houve rápida e massiva inclusão eleitoral de povo. Nossa República não suportou a carga e desmoronou em 1964.
O fato de ela ter vindo por um golpe militar e não por uma revolução mudou o curso dela? Só Silva Jardim acreditava em revolução do tipo da Francesa e pregava o fuzilamento do conde d’Eu [marido da princesa Isabel, descendente da dinastia Orleans]. Não foi nem avisado do golpe. Ninguém mais, além dele, queria sangue. A busca do apoio dos militares do Exército foi oportunismo dos civis, sobretudo de Quintino Bocaiuva.
O problema dos políticos na primeira década da República foi livrarem-se dos militares. Floriano Peixoto garantiu o novo regime, mas era incômodo por despertar um movimento popular jacobino. A posição dominante entre os republicanos, sobretudo os paulistas, era esperar a morte do imperador e então impedir que Isabel tomasse posse. A transição viria de preferência via Constituinte, solução aceita até mesmo por monarquistas como Saraiva [José Antônio Saraiva, que chegou a ser nomeado pelo imperador para formar um gabinete na madrugada de 16 de novembro mas nunca assumiu].
A partida da família imperial foi antecipada para evitar conflitos. Mas o Brasil é um país violento, sustentou séculos de escravidão e tem sequelas. Qual o papel da violência na nossa questão republicana? A violência está embutida em nosso DNA, independentemente de regimes políticos. Os dez primeiros anos da República foram violentos: revoltas militares, guerra federalista no Sul, Revolta da Armada e, sobretudo, o terrível massacre de Canudos.
 
Qual tem sido o papel dos militares na nossa República, visto que vez ou outra eles assumem papel na política? O papel variou ao longo do tempo. Após a consolidação do regime com Campos Sales até 1930, a participação foi em boa parte antioligárquica, liderada por oficiais subalternos do Exército. Depois do Estado Novo, o papel passou a ser de tutela, quando não de intervenção direta, comandada pela cúpula militar.
 
Antes da Proclamação da República, tivemos várias repúblicas que não vingaram pelo Brasil. O que lhes faltou? Eram manifestações locais e provinciais, todas derrotadas pelas armas. A de maior êxito foi a Farroupilha que separou o Rio Grande do Sul por dez anos e terminou por um acordo do Império com os gaúchos. A repressão mais violenta verificou-se em revoltas que envolviam segmentos populares, como a Confederação do Equador, a Cabanagem e, já na República, Canudos e Contestado.
O que os brasileiros desse final do século 19 entendiam então por República? Os republicanos, sobretudo os paulistas, queriam autogoverno, isto é, eleição dos governantes, e federalismo à moda norte-americana. A monarquia significava privilégio de uma família ou dinastia, marca do antigo regime. A palavra democracia, significando governo pelo povo, fazia parte da retórica, mas em nenhum momento foi ativada.
Esse conceito mudou de alguma forma até 2019? Hoje é difícil saber o que as pessoas querem dizer quando falam em República, além de um sistema de governo. O conceito confunde-se com o de democracia, como queriam os propagandistas.
Os poucos que ainda o distinguem de democracia corretamente o vinculam a certos valores como a igualdade perante a lei, a ausência de privilégios, o bom governo, o cuidado com o bem público. Nesse sentido, pode-se dizer que há hoje mais democracia do que República e talvez seja este um de nossos principais problemas.
O senhor cita em seus escritos a exclusão pelo voto de 30,6 milhões de brasileiros, apenas 2,4 milhões podiam votar na virada do século 19 para 20 e, além dele, a questão da abstenção nas eleições de 1910, chegou a 40%. Qual a importância do voto para uma República? Segundo a distinção proposta, participação eleitoral tem mais a ver com democracia e menos com República. Hoje, uma não pode existir sem a outra. Democracia sem república, sem bom governo, sem igualdade civil, marcada por clientelismo, patrimonialismo, nepotismo, é frágil. Assim como República sem ampla participação não tem futuro.
 
Desde 1930, só cinco eleitos pelo voto direto conseguiram concluir seus mandatos [o atual presidente está no primeiro ano de governo]; quatro não completaram a gestão e sete presidentes não foram eleitos pelo voto. Essa democracia é fruto de falhas da República? É em boa parte fruto da entrada tardia e rápida do povo no sistema político, da democratização da República. A República patrícia não suportou o impacto e recorreu aos militares para conter a onda democrática, aproveitando-se do conflito ideológico que dominava o cenário internacional.
A República está em crise? Quase todas as repúblicas estão. A nossa continua sujeita à interferência “moderadora” das Forças Armadas.
Como o senhor analisa a questão federativa? A Federação foi uma das demandas mais fortes dos propagandistas, sobretudo dos paulistas e gaúchos. O federalismo norte-americano era o modelo, embora ele tenha assumido aqui sentido oposto.
Isto é, os federalistas norte-americanos eram os que queriam salvar a união das colônias contra as tendências separatistas afinal adotadas pelos sulistas para garantir a escravidão. O federalismo dos pais fundadores acabou preservando a União e abolindo a escravidão, embora à custa de uma sangrenta guerra civil, ao mesmo tempo em que dava ampla liberdade às unidades federadas.
Entre nós, federalismo e centralização é um debate secular. A enorme desigualdade das unidades da Federação leva a uma grande dependência do governo central que, por sua vez, coíbe iniciativas estaduais.
Por volta de 1627, frei Vicente do Salvador escreve uma citação que virou clássico sobre o Brasil: “nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. O que nos fez assim? Apesar de ser lugar-comum, não é possível deixar de mencionar a gênese de nossa economia e de nossa sociedade. Não é que o passado nos condene. Mas as sociedades têm biografia, têm valores e práticas arraigadas. Se não, como entender que com tanta desigualdade não tenhamos tido qualquer revolução social? Como entender que com uma das maiores franquias eleitorais do mundo não consigamos produzir políticas redistributivas, limitando-nos ao assistencialismo distributivista?
O Brasil de hoje tem repúblicos? Nossos repúblicos podem ser contados nos dedos. Olhando pelo ângulo da preocupação com o bem coletivo, só os positivistas ortodoxos do início da República foram republicanos. Até iniciativas republicanas acabam comprometidas. Veja-se a Operação Lava Jato.
Nada mais republicano do que igualdade perante a lei. Rico e poderoso no Brasil nunca ia para a cadeia. A Lava Jato os mandou para lá. Vitória da República. Mas aí vem a denúncia de práticas arbitrárias por parte de promotores e juízes que ameaçam a validade das sentenças. Podemos voltar à estaca zero. Derrota da República.
E nossa República, tem salvação? Só por milagre de frei Vicente. Temos que avançar aos trancos e barrancos, combatendo sistematicamente as desigualdades na economia e os privilégios na sociedade. A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais.
Temos pela frente o imenso problema de incorporar ao mercado de trabalho os milhões de desempregados, subempregados e não empregáveis. Só uma combinação de República e democracia, de bom governo e inclusão, pode resolver o problema, se ainda tiver solução.

JOSÉ MURILO DE CARVALHO, 80

Nascido em Andrelândia (MG), é formado em sociologia e política pela UFMG, mestre e doutor ciência política pela Universidade de Stanford (EUA). Entre suas obras estão “Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não Foi” (1987), “A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil” (2003), “O Pecado Original da República: Debates, Personagens e Eventos para Compreender o Brasil” (2017) e "Forças Armadas e Política no Brasil" (2019, 2ª ed.)

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Verdades e meias verdades sobre nossa Corte Suprema, OESP

Morris Kachani
14 de novembro de 2019 | 18h22

Não seria uma distorção o STF mudar de posição sobre uma mesma matéria por 3 vezes em um espaço de 11 anos? Em que medida isso reforça um ambiente de insegurança jurídica? Quem controla os excessos do STF? Aliás, que excessos o STF comete? O que esperar desta crise de desprestígio da Corte Suprema, em um cenário de polarização e esgarçamento das instituições democráticas?
Tomando emprestado um pedaço da célebre frase de Blaise Pascal – especialmente para quem é leigo nas letras jurídicas -, às vezes parece que não só o coração, mas também o STF, tem “razões que a própria razão desconhece’.
Decidimos assim, eu e meu colega Flavio Azm Rassekh, entrevistar separadamente os juristas Wálter Maierovitch e Fábio Konder Comparato, e conhecer suas visões distintas a respeito do julgamento sobre a segunda instância.
Wálter, 72 anos, é professor de Direito, desembargador de carreira e aposentado. Preside o Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais. Pela luta antimáfia, foi condecorado, pelo presidente da República da Itália, com o título de Cavaliere della Repubblica italiana.
Fábio é doutorado pela Universidade de Paris, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra. Integrante da Comissão Arns de Direitos Humanos.
Considera a decisão do STF sobre segunda instância, acertada?
Comparato – Embora vivamos um período político turbulento – talvez não, para o Presidente da República e sua progenitura – creio que a Constituição Federal de 1988 ainda continua em vigor. Pois bem, em seu art. 5º, inciso LVII, ela declara que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”; entendendo-se como tal, desde sempre, aquela da qual não cabe mais recurso.
Maierovitch – O problema é ter o Supremo dado, por apertada maioria, uma decisão tecnicamente incensurável que, diante do nosso sistema de processo penal, vai gerar impunidade. E impunidade para poderosos e potentes, com colarinhos não somente brancos.
Como fazer ??
Desde sempre, o nosso Supremo passa a idéia e se declara um tribunal técnico e não um tribunal político.
E tivemos o primoroso voto técnico-jurídico do ministro Celso de Mello. E votos políticos dos 5 ministros com votos minoritários.
A respeito da garantia da presunção de não culpabilidade escrevi, logo após a Constituição de 88, artigos técnicos a respeito e ensinei aos meus alunos sobre a ilegitimidade da execução provisória. No entanto, avisei sempre que o nosso processo penal levava à impunidade.
Resumindo. A decisão do Supremo foi, pelo prisma da técnica jurídica, correta. Politicamente, com recurso ao chamado direito alternativo, decidiu a minoria dos ministros.
Dizem que assim, quem conseguir pagar um bom advogado, se livra da cadeia.
Comparato – Para esse resultado, não basta “conseguir pagar um bom advogado”. É preciso, também, contar com juízes suscetíveis de se deixarem convencer com os argumentos por eles apresentados.
Maierovitch – Certa vez um amigo, brilhante advogado, me contou estar o pai com um câncer agressivo, e cirurgias e tratamentos pretéritos não tinham resolvido o problema. Restava saber do pai doente qual a sua vontade sobre novas e arriscadas intervenções.
O mencionado paciente era um antigo e excepcional advogado. Respondeu de pronto: como na advocacia, vamos usar todos os recursos admitidos.
O advogado usa de todos os meios de defesa. Se a lei processual favorece, ele vai atuando e poderá, pelo caminho, se deparar com uma prescrição com prazo contado pela metade por ter seu cliente completado 70 anos de vida. E depois do transito em julgado, ou seja, da condenação definitiva, poderá ir atrás de uma revisão criminal.
Faz sentido o debate sobre segunda instância migrar para o Senado? Não seria um desperdício de energia e dinheiro, tanto tempo dedicado a uma questão e por diferentes instituições?
Comparato – A rigor, não entendi a sua pergunta. Por acaso, o Senado Federal tem competência para alterar ou suprimir uma norma constitucional, que não pode ser abolida nem mesmo mediante proposta de emenda à Constituição (art. 60, § 4º, inciso IV)? A não ser que se entenda que a norma do art. 5º, inciso LVII, não diz respeito aos direitos e garantias individuais, o que é uma interpretação surpreendente, para dizer o mínimo…
Maierovitch – Como já afirmei, uma PEC, conforme anunciada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, não terá sucesso para derrubar uma cláusula pétrea. Garantia pétrea só cai com uma nova Constituição.
Fala-se em alterar o artigo 283 da lei processual penal, segundo sugestão do ministro Tóffoli. O ministro fez contorcionismo jurídico. O STF entendeu que o artigo estava conforme a Constituição. Se mudar, vai trombar com a presunção de não culpabilidade.
Entramos para o colocado por Lampedusa, na obra Il Gatto Pardo. E na boca do personagem nominado príncipe de Salinas: É preciso mudar tudo, para ficar tudo exatamente como está.
Vejo no Congresso, pelos projetos em análise, a aplicação da regra de Lampedusa. Se vingarem, tenho certeza que cairão no Supremo.
E o Gilmar Mendes, que já votou a favor e contra a mesma matéria?
Comparato – Não foi o primeiro caso na História, em que um magistrado mudou de convicção.
Maierovitch – A Intercept Brasil divulgou, — e dá para acreditar até pela reação diversionista  dos envolvidos—, conversas reveladoras de relações promíscuas entre procuradores e o juiz da causa (Sérgio Moro).
Não é necessária uma divulgação como feita pela Intercept para se comprovar anos e anos de relações promíscuas entre Gilmar Mendes e uma quantidade pantagruélica de interessados.
Diz a nossa lei que aquilo que é público e notório independe de prova. É pública e notória a intervenção parcial de Gilmar Mendes. Dois episódios, só para não deixar em branco: reunião com Jobim e Lula no escritório do ex-ministro. Comunicação escandalosa por parte de Gilmar  do encontro a membros de partido político. Gilmar desmentido por Jobim e Lula sobre o acertado politicamente (nada de jurídico) na tal reunião. Mais ainda, o episódio no Tribunal eleitoral de impugnação do mandato da então presidente Dilma por abuso de poder econômico e político. E a mudança processual de rumo após o impeachment de Dilma e para salvar Temer, quando o abuso de poder econômico maculava toda a chapa: presidente e vice.
Gilmar, que é preparadíssimo juridicamente,  jamais será um juiz aceitável. Ele antecipa julgamentos e mantém promiscuidade com poderosos. Não tem isenção, por isso flutua ao sabor das suas conveniências, com a devida vênia e sem intenção de ofender a sua honra, mas, apenas, de responder ao jornalista.
Sempre com vênia ao cargo: Gilmar ainda tem o péssimo hábito, — inadmissível num magistrado–, de atacar a honra de pessoas que não fazem parte da relação processual e, por distante, não podem responder. Ele abusa da imunidade judiciária da sua cátedra de ministro do Supremo.
Não é uma distorção o STF mudar de posição três vezes em um espaço de 11 anos ?? Mais que isso, insegurança jurídica.
Comparato – Infelizmente, há já um bom tempo o STF perdeu aquela qualidade que os romanos chamavam auctoritas, a confiança do povo. Eis porque em 2013 redigi uma proposta de emenda constitucional (a PEC 275), apresentada pela Deputada Luiza Erundina, reorganizando o STF. Os novos Ministros seriam escolhidos pelo Congresso Nacional (e não pelo Presidente da República), a partir de listas tríplices de candidatos, designados pelo Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil.
Maierovitch – Lógico, não é aconselhável, — até para evitar a chamada insegurança–, que a jurisprudência sofra mudanças ao sabor dos ventos políticos. Ela precisa de tempo adequado para se tornar mansa e remansosa.
Como se sabe, nas Cortes Constitucionais européias, um ministro tem mandato. E não se pode prorrogar o mandato, ser reconduzido. Como regra, o mandato é de sete anos. Imagina-se se a cada novo mandato se mudasse a jurisprudência constitucional.
Volto a insistir e já escrevi recentemente em análise publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo. Tivesse o processo criminal um prazo razoável (duração aceitável), não estaríamos a discutir a ‘presunção de não culpabilidade’. Imagine-se, e tomo como exemplo o sistema italiano por ocasião de Operação Mãos Limpas, se tívessemos em primeira instância uma composição colegiada (Tribunal em primeiro grau). Além de tirar o protagonismo do juiz único, poderíamos reduzir o número de recursos e o número de graus de jurisdição: hoje, em matéria penal, o Supremo Tribunal funciona como quarta instância ( quarto grau de jurisdição), além dos casos de foro privilegiado.
Quem controla os excessos do STF? Aliás que excessos o STF comete?
Comparato – Indagação justa e necessária. Resposta: ninguém. Quando foi instituído o Conselho Nacional de Justiça, pela Emenda Constitucional nº 61, de 2009, o STF apressou-se em julgar que ele não estava submetido à jurisdição do novo Conselho. Montesquieu tinha, portanto, carradas de razão, ao dizer que, de acordo com uma experiência eterna, todo aquele que dispõe de algum poder é levado a dele abusar. Ele avança até onde encontra um limite. Mas em nosso País, o STF nunca encontrou limites para o seu poder de julgar.
Maierovitch – O Supremo é o órgão de cúpula do Poder Judiciário Brasileiro. Atua pelos seus ministros, nas Turmas, no Plenário e nas sessões administrativas.
Segundo entendimento acertado dos seus ministros, basta olhar a Constituição para se verificar que o STF está acima do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Portanto, o CNJ não detém competência para agir junto ao STF e não tem poder correcional sobre os seus ministros.
Os ministros do STF só estão sujeitos a impeachment. Nos últimos anos, os presidentes do Senado têm engavetado ou arquivado sumariamente pedidos de impeachment contra ministros do STF.
A nossa suprema Corte tem sido criticada, em casos de relevância, de invadir a competência do poder Legislativa e sair a legislar. O antídoto existe: basta o Legislativo elaborar a lei.
O que esperar desta crise de desprestígio da Corte Suprema, em um cenário de polarização e esgarçamento das instituições democráticas?
Comparato – Esta pergunta é realmente importante. O nosso Supremo Tribunal Federal foi organizado logo após a Proclamação da República (cujo 140º aniversário ocorre justamente agora), à imagem da Corte Suprema dos Estados Unidos. Ocorreu, no entanto, que em razão da velha tradição processual lusitana, demos ao STF uma competência recursal excessiva. Por outro lado, tal como nos Estados Unidos, determinamos que é o Presidente da República quem nomeia os Ministros do Supremo, com a aprovação do Senado. Ora, nos Estados Unidos o controle senatorial funciona adequadamente, já tendo havido a desaprovação de doze pessoas indicadas pelo Chefe de Estado para a Suprema Corte. Algumas vezes, quando o Presidente dos Estados Unidos percebe que a pessoa por ele escolhida não será aprovada pelo Senado, retira a indicação. No Brasil, ao contrário, até hoje o Senado somente rejeitou uma nomeação para o Supremo Tribunal Federal. Foi quando Floriano Peixoto resolveu nomear o doutor Barata Ribeiro, seu médico pessoal, para preencher uma vaga de Ministro no Supremo Tribunal.
Maierovitch – Todos os que têm compromisso com o Estado Democrático de Direito precisam esclarecer que a questão era polêmica. A Corte, em 2009, já havia decidido num sentido e mudado em 2016. Mudou de novo e ficou claro, como acontece na Itália cuja Constituição serviu de modelo à nossa, que se pode usar medida cautelar.
Não pode é o ministro Gilmar, ao contrario do que ocorre na Itália, querer, — diante de um processo penal moroso como o nosso–, fixar prazo para a prisão preventiva, cautelar.
Afinal, como avalia o papel do STF como guardião da Constituição?
Comparato – Infelizmente, como já deixei dito, a nossa mais alta Corte de Justiça deixa muito a desejar, como guardiã da Constituição.
Maierovich – O Supremo deveria ser apenas Corte Constitucional e não acumular com a função de quarta instância em matéria penal.
Sobre a credibilidade, alguns ministros são responsáveis por isso. É hora de se emendar a Constituição para estabelecer mandato para ministros do STF, sem possibilidade de recondução, e modo a maneira de indicação, hoje exclusiva do presidente da República.
Se a Constituição é uma só, por que temos uma Corte dividida entre legalistas e garantistas?
Comparato – Precisamos, urgentemente, reformar o Supremo Tribunal Federal, transformando-o exclusivamente em uma Corte Constitucional. Era o que ingenuamente esperávamos, quando se cogitou de criar o Superior Tribunal de Justiça. Lembro que em 2013, a Deputada Federal Luiza Erundina apresentou na Câmara dos Deputados a Emenda Constitucional nº 275, que não chegou a ser discutida na legislatura passada e aguarda um início de discussão na presente legislatura. Ela altera a composição do STF, a partir da nomeação dos novos Ministros, além de reduzir a competência da Corte à função de atuar exclusivamente como guardiã da Constituição.
Maierovitch – Não gosto dos carimbos. Nos EUA fala-se em juízes da suprema corte republicanos ou democratas.
No Brasil, veio o carimbo de garantistas, que seriam os que defendem a interpretação literal e conforme a vontade dos constituintes. Os outros, seriam os mais sintonizados com os apelos populares e a dar interpretação conforme o interesse da sociedade.
Na verdade, um juiz deve ser isento, independente e julgar conforme as suas convicções.
Para Bolsonaro, chegou o momento de se entregar uma cadeira a alguém “terrivelmente evangélico”. Como poderá indicar, se nem ao menos sab que o Estado brasileiro é laico e o Supremo não aplica regras religiosas, mas legais.