terça-feira, 18 de setembro de 2018

Paulistas têm de defender as universidades estaduais, FSP

por  Vahan Agopyan, Marcelo Knobel e Sandro Valentini
Reitores da USP, Unicamp e Unesp, respectivamente
As três universidades públicas do estado de São Paulo -USP, Unicamp e Unesp - constituem um dos maiores patrimônios paulistas. Financiadas com recursos provenientes da arrecadação estadual do ICMS, cumprem com excelência sua missão de formar pessoas altamente qualificadas, de promover o avanço científico e tecnológico, e de transferir os resultados de suas pesquisas para a sociedade na forma de novos produtos, serviços e políticas públicas.

É necessário que a população de São Paulo compreenda a importância estratégica das atividades que essas universidades desempenham nas 31 cidades do Estado em que estão presentes. E que defenda com veemência a manutenção das condições que têm garantido o sucesso das três universidades.
Lutar a favor das estaduais paulistas significa lutar a favor de São Paulo e do Brasil, para cujo desenvolvimento social e econômico elas vêm contribuindo há décadas de maneira intensa e decisiva.

USP, Unicamp e Unesp compõem um sistema de ensino superior coeso, robusto e eficiente. Juntas, oferecem formação da mais alta qualidade para aproximadamente 117 mil alunos de graduação e quase 62 mil de pós-graduação, respondem por 35% da produção científica nacional e prestam serviços fundamentais às populações de São Paulo e de outros estados, em especial na área da saúde. Não é de espantar, portanto, que os principais rankings internacionais especializados as classifiquem entre as melhores universidades da América Latina.

Manter um sistema de ensino superior de excelência como o paulista custa caro em qualquer lugar do mundo. Há que se exaltar, portanto, o esforço que USP, Unicamp e Unesp vêm fazendo para operar com orçamentos deficitários sem comprometer a qualidade de suas atividades de ensino, pesquisa e extensão.
Nos últimos cinco anos, as despesas das três universidades superaram os repasses recebidos do governo do estado em 20%, em média. A saída tem sido cortar gastos, buscar formas mais eficientes de usar os recursos disponíveis e gerar receitas adicionais por meio da prestação de serviços e do estabelecimento de parcerias com os setores público e privado.

Os chamados fundos patrimoniais, cuja associação a instituições públicas acaba de ser autorizada por medida provisória, apresentam-se como uma interessante fonte adicional de financiamento estável e de longo prazo para as estaduais paulistas. Isso não significa, contudo, que elas devam deixar de lutar por mais recursos oriundos do Tesouro do estado.
O governo de São Paulo destina os mesmos 9,57% da arrecadação estadual do ICMS às suas universidades desde 1995. Ocorre que as três instituições cresceram de forma considerável nesses quase 25 anos, tanto em área física como em quantidade de cursos oferecidos e alunos matriculados. Só na graduação, o número de alunos aumentou 75,7% na USP, 98,8% na Unicamp e 93,7% na Unesp.

Se quiser manter a dianteira nacional no que se refere à formação de recursos humanos, ao avanço científico, à inovação tecnológica e ao empreendedorismo, é primordial que o estado de São Paulo valorize suas universidades públicas e lhes garanta orçamentos compatíveis com o porte atual e com a complexidade dessas instituições.

Em tempos de eleições majoritárias e proporcionais, de discursos contrários ao ensino superior público gratuito e de ameaças de corte dos recursos governamentais para ciência e tecnologia, a população paulista deve ter sempre em mente a força transformadora das três universidades que ajuda a custear por meio do ICMS. Apoiar a USP, a Unicamp e a Unesp é apoiar o desenvolvimento de São Paulo e do Brasil.

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(Folha de S. Paulo. 17/9/2018, Página A3, Tendências)
 

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Temperança, Por Demi Getschko - O Estado de S. Paulo


Vivemos tempos de sensibilidades exacerbadas e do pipocar de emoções que rapidamente assumem o controle. Talvez seja uma consequência não desejada, que advém do fato muito positivo de que mais e mais estamos todos em contato via rede, e mais e mais falamos. Pode ser que estejamos testando nossa voz e seu alcance. Ou que estejamos experimentando a embriaguez da visibilidade. 
Acabamos de ver, ao vivo, o incêndio que devorou tanto da nossa história. Por toda a parte, manifestações de pesar e de solidariedade, e o clamor de providências mas agora tardias: “casa arrombada... tranca na porta”. Claro que hoje é mais fácil salvar textos e ideias digitalizando-os. A velha ocupação dos copistas, que preservaram até nós tantos documentos inestimáveis, ficou bem fácil com a tecnologia que temos. Ou nem tanto... 
Como bem comentou recentemente Vint Cerf, há riscos de um apagão gigantesco na história porque os dados preservados dependem também de se preservar o ambiente digital que permitirá recuperá-los – quantos dispositivos, programas, sistemas operacionais já não se perderam nessas poucas décadas? No caso do Museu, mesmo com a digitalização possível de material, o que se perdeu fisicamente é irrecuperável. 
Conteúdo e contexto vieram à baila de novo quando li que uma importante comunidade de desenvolvedores de “software” aberto decidiu banir de manuais e do próprio código a expressão “master-slave” (mestre e escravo, em tradução literal). 
Lembrei-me das aulas de eletrônica nos anos 70 quando aprendi o que era “flip-flop”, circuito de comutação e de memória. Existe em várias configurações, uma delas a de “master-slave”, que descreve uma operação em que parte do circuito comanda o contexto, e outra parte segue servilmente. 
O conceito de “escravo” é algo nefasto e que já deveria estar totalmente removido da sociedade, mas o “escravo” do circuito em questão é apenas uma função não associável a qualquer imoralidade humana. Ao contrário, penso, detectar um problema oriundo do sentido original é uma forma de reviver a dor de mazelas que a humanidade busca intensamente remediar. 
Do ponto de vista etimológico, sempre me ensinaram que a língua é dinâmica e que evolui ao talante de seus usuários. Seria “formidável” (e pedante) fazer as palavras voltarem à etimologia original. Ah, note-se que usei “formidável” em sua semântica primeira: “aquilo que mete medo, que é assustador”.
Eliminar palavras inadequadas levou-me a outra lembrança: Z, o filme premiado de Costa Gavras, trata do assassinato do deputado e ativista grego Gregório Lambrakis em 1963. Como mostra a história, em meio ao cenário de tumultos e de conflitos, houve o golpe militar que instituiu uma totalitária junta govenante. Durou de 1967 a 1974. Z, que é de 1969, trabalha com a corajosa investigação e julgamento dos envolvidos no assassinato. 
Quando tudo parece apontar para a punição dos culpados, que também atingiria escalões políticos, ocorre o golpe militar truncando o processo. A cena final é um “anúncio em rede de televisão” em que se anuncia a “nova ordem no poder”. Termina com uma lista de temas que passam a ser banidos no país: diversos escritores, estilos de música, filósofos e... a letra Z! 
Haveria que se coibir do uso da letra Z, porque sendo a primeira letra da palavra “vive” em grego, era usada nas pichações de protesto pelo assassinato de Lambrakis. Parece claro que proibir palavras, letras ou ideias nunca será solução para nada...

Dormir no emprego, Humberto Werneck, O Estado de S. Paulo

Trabalhar em casa pode ser bom. Mas vai-se o prazer que é voltar do trabalho

Humberto Werneck, O Estado de S. Paulo
18 Setembro 2018 | 02h00
Não é que o olho da rua estivesse piscando para mim. Eu tinha essa coisa hoje um tanto rara chamada emprego, e mais que isso, um bom emprego. Acontece que, após décadas de carteira assinada, deu vontade de saber como me sentiria sendo avulso no mercado. 
Na verdade, o espelho deixava claro que eu já me expunha à inelutável aversão do patronato por cabelos brancos, não importando se dentro da cabeça as coisas ainda funcionem a contento. 
Por fim, sabia, por experiência própria, que um pedido de demissão pode trazer à alma um tipo refinado de gratificação: a alegria de haver tomado a iniciativa de ir às favas (a palavra não é esta, mas estamos num jornal de família) antes que a elas nos mandassem. Sensação tão boa que, desconfio, deve ter gente que pede emprego só pelo gostinho de se demitir.
Faz quase 18 anos, e, malgrado a falta de 13.º salário, férias remuneradas e fundo de garantia, ainda não me arrependi. 
Nos primeiros tempos, em lua de mel com uma liberdade inédita, cheguei a tripudiar sobre amigos escravizados a algum empregador, anunciando a eles a intenção de comprar umas roupas de trabalho. Sim, bermudas, camisetas, havaianas... 
Havia outros encantos na disponibilidade. Podia decidir que uma terça-feira era domingo e que um domingo chato já virou segunda-feira. 
*
O lado menos gostável do voluntário corte das amarras, que novos tempos converteriam em insensatez, foi me dar conta de que, tendo despedido as empresas em geral, precisaria agora transformar-me numa delas, condição para receber por aquilo que viesse a dedilhar neste meu teclado não musical. 
Cedo percebi que no mundo do trabalho as pessoas jurídicas são cada vez mais numerosas do que as físicas. Num exame admissional, já não se pede exame médico, e sim CNPJ. 
Na hora de constituir minha pujante firma, por pouco não resisti à tentação de me registrar na Junta Comercial como Humberto Werneck Limitado. Mal desconfiava do que havia de realidade na denominação galhofeira. Não tardei a descobrir em mim um patrão tirânico como jamais tivera, capaz de abolir qualquer fronteira entre o trabalho e o lazer, desses que ligam em fim de semana ou a horas mortas para falar do serviço.
Misto de moradia e escritório, minha base física acabou não sendo nem uma coisa nem outra. Terminado o expediente, se é que terminava, o trabalhador continuava no mesmo espaço. 
Como as empregadas de antigamente, eu dormia no emprego.
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Bem que tentei estabelecer limites nítidos naquilo que, em meus 100 metros quadrados, fosse local de trabalho e, a partir de certo horário, local de moradia. Fracassei. Muitas vezes acordei de madrugada para beber água ou para operação inversa – e, no caminho de volta à cama, me batia alguma ideia, uma sacada, algo urgente a anotar ou a desenvolver – e, quando dava por mim, já passava do meio-dia e lá estava eu, de cueca, fazendo ranger minha cadeira de trabalho. 
Nessas ocasiões, ainda grogue de escrevinhação e sono, entrava no banho, mandava um café da manhã que a rigor já seria almoço – e, pelas 2 da tarde, tocava para essa instituição que abomino, o cinema de shopping, excepcionalmente bem-vindo porque ali era mais fácil encontrar um filme, qualquer um, prestes a começar. 
No guichê de ingressos, procedia com o automatismo daquele coelho de quermesse (em Minas se diria barraquinha) que, liberado da gaiola, entra no picadeiro e vai refugiar-se na primeira casinha que se lhe apresente, fazendo assim a felicidade do apostador respectivo. Não raras vezes me aconteceu aboletar-me na poltrona e só então constatar que tinha entrado em filme visto dias antes. 
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Para não misturar os canais, cheguei a recorrer ao expediente risível de, toda manhã, vestir-me como se fosse para o trabalho, dar quatro passos no corredor, dobrar à direita – e, como quem tivesse atravessado um tanto de cidade, chegar ao escritório. 
Não durou muito essa comédia, felizmente sem testemunhas.
Sem testemunhas, sim – para o bem e para o mal. Como escriba, tiro proveito, não da solidão, com seu desamparo, mas da sozinhez, essa condição que nos permite dialogar sem interlocutor ou desafinar longe do chuveiro. 
Sucede, porém, que às vezes não me sinto boa companhia sequer para mim mesmo. No mais, quando o trabalho empaca, tendo a derrapar rumo a providências domésticas protelatórias. Aguar as plantas. Botar roupa na máquina. Dar um jeito nas estantes. Procurar algum papel, qual mesmo?
*
Escaldado por uma infinidade de propósitos que mal passaram disso, sei que é cedo para comemoração – mas eis que vejo estruturar-se em minha vida uma rotina nova, até o momento propiciatória. Incapaz de fazer conviverem trabalho e lazer sob o mesmo teto, estou empenhado, faz umas semanas, num modus vivendi semelhante ao de casais que, para preservarem a relação, escolhem ter cada qual a sua casa, num literal meu bem pra cá, meu bem pra lá. 
Não, não aluguei outro canto; digamos que, para efeitos lítero-jornalísticos, achei espaço num acolhedor poleiro coletivo. Estou sabendo que tem nome, coworking. E mais não digo, de medo de quebrar-se o encanto. Se dali não trouxer mais que minha prosa chinfrim, ao menos terei recuperado um prazer banal, para mim especialíssimo, o de voltar para casa depois de um dia de trabalho.