quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Ensino médico, ética e Drs. Bumbum, OPINIÃO RAUL CUTAIT, FSP

Há poucas semanas páginas de jornais e a mídia social foram manchadas com o caso do Dr. Bumbum, que teve uma paciente que veio a falecer em decorrência de procedimento cirúrgico realizado, pasmem, em seu próprio apartamento.

Esse é, sem dúvida, um caso grave de falta de ética, vírus agressivo que tem contaminado a humanidade.

A ética é algo difícil de se conceituar, ensinar e, muito mais, praticar. Ao longo dos séculos, filósofos, sociólogos, historiadores e intelectuais têm procurado conceituá-la de forma genérica e adaptá-la para atividades específicas, levando em consideração as constantes mudanças de comportamento da sociedade.

As pessoas começam a entender o que é ética desde a infância, mesmo que de maneira vaga e intuitiva, influenciadas por seus pais, familiares e professores. Esse tema é de tal importância na medicina que existe uma cadeira na graduação voltada ao seu ensino.

Mas é fato é que os acadêmicos vão aprendendo a sua importância menos pelo estudo e mais pela prática, por meio dos exemplos de seus professores e do contato com os pacientes, e os jovens médicos vão aprimorando seu comportamento durante a residência médica, preparando-se para com ela conviver durante toda a sua vida profissional.

Faço essas considerações iniciais para esclarecer o porquê da imensa preocupação que se deve ter com o futuro do atendimento médico no Brasil. Angustia-me constatar que, além das já exageradas 200 faculdades de medicina existentes, tivemos a liberação de mais de cem novas escolas nos últimos quatro anos, a maioria em cidades de pequeno porte, em função de uma errônea visão de que precisamos de muitíssimos mais médicos para o país e de que os médicos se radicam nos locais onde estudaram.

Ora, a questão básica é a má distribuição de médicos pelo Brasil afora, ditada pelo mercado de trabalho. Mantidas todas essas faculdades, em 2030 teremos mais de 30 mil médicos formando-se anualmente e até 2050 teremos ao redor de 1 milhão de médicos para uma população estimada de 230 milhões de pessoas, o que corresponde a praticamente quatro médicos por mil habitantes, sendo que o desejável é menos da metade desse número.

Mais grave que o número excessivo de médicos é a formação precária que se pode facilmente antever, uma vez que não existem no país docentes capacitados em número suficiente para todas essas novas faculdades, bem como não existem hospitais de ensino que permitam o treinamento de todos os graduandos. Acreditar que médicos das várias cidades ou de hospitais do SUS serão competentes para ensinar é uma grande falácia.

A formação técnica e comportamental do médico, como já comentado, depende de exemplos continuamente compartilhados com os professores, à beira do leito.

Em isso não acontecendo de forma apropriada, vamos ter no mercado uma pletora de médicos despreparados, fora a deficiência adicional de falta de vagas de residência médica, que não crescerão proporcionalmente. Para mim é evidente que teremos cenários propícios para o aparecimento de muitos Drs. Bumbum.

Nesse sentido, foi muito bem-vinda a moratória de cinco anos definida pelo governo federal, impedindo que seja autorizada a abertura de novas escolas de medicina. Entretanto essa medida será inócua se não forem desenvolvidos e aplicados critérios que permitam avaliar de forma independente todas as faculdades de medicina do Brasil.

Mais ainda, é fundamental que sejam implantados mecanismos para corajosamente promover o fechamento de escolas que não preencham os critérios definidos e, obviamente, que permitam a abertura de escolas que se mostrem competentes e necessárias. O exemplo de países que passaram por situações semelhantes, como os Estados Unidos e o Japão, foi salutar.
Raul Cutait
Professor do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP e membro da Academia Nacional de Medicina

Tragédia, Antonio Delfim Netto, FSP

Ataque a Bolsonaro é um alerta acerca dos perigos que sempre ameaçam a democracia

O processo eleitoral que estamos vivenciando precisa ser sujeito a uma profunda reflexão. Afinal, é nele que nos preparamos para testar novos caminhos depois de uma década desastrosa (2006-2016), na qual registramos um dos piores crescimentos do PIB (Produto Interno Bruto) per capita do último século. 
Nos últimos 40 anos, assistimos à liquidação do nosso “espírito de crescimento”.
O selvagem espetáculo que o maculou no último dia 6 foi uma tragédia pessoal e um alerta sobre os perigos que sempre ameaçam a democracia. 
Gera pessimismo com o reconhecimento da barbárie que vai dissolvendo a hipótese generosa de uma “humanidade altruísta” ínsita na natureza do homem. 
Basta olhar para a reação nas nações mais educadas e mais desenvolvidas do antiquíssimo continente europeu (e agora, até a Suécia!) para ver, horrorizado, a resistência para aceitar o “outro”. 
Assistimos à morte da utópica crença de que o mundo é um arquipélago com “ilhas” habitadas por cidadãos dispostos a sacrificarem-se para atender aos vizinhos.
Quando vemos o homem como ele é, despido da romântica “humanidade moral” que lhe atribuímos, vivemos tempos normais. Trata-se de um animal territorial, dotado pela seleção biológica de um terrível e perigoso instrumento — a sua inteligência. 
 
Com ela, submeteu a natureza que o criou. Inventou sofisticados preconceitos para separar-se em tribos, que se veem com desconfiança dentro e fora dos limites do “território” que ocupam como “seu” e no qual estabelecem “suas” leis. 
Pesquisas antropológicas recentes acumulam evidências cada vez maiores de que só o homem é capaz de, em nome de crenças sem nenhum suporte factual, desenvolver poderosas “teorias” para justificar pavorosos massacres de sua própria espécie, quando as põem em outras “tribos”.
A suprema esperança do sistema democrático é que por meio da lei —que a todos submete—  seja possível um compromisso entre indivíduos “livres” e “iguais” de empenharem-se numa honesta e razoavelmente racional discussão de seus problemas e —diante da realidade física que condiciona a vida social e econômica— deliberarem sobre o que supõem ser sua melhor solução. 
A história mostra que esta é a única alternativa que permite a transição pacífica do poder para testar novos caminhos. 
Obviamente nada está garantido, devido às paixões próprias da natureza do homem. A “humanidade” está sujeita a ser dominada pela “animalidade” sempre que seu portador incorporar a crença de sua superioridade sobre o “outro”. 
É por isso que o “eu” ou “eles” é a agonia da democracia e o caminho seguro para a sua morte. 
Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.