domingo, 9 de setembro de 2018

Estado de sítio eleitoral, Hélio Schwartsman, FSP

Mais do que a legislação, é a própria filosofia eleitoral brasileira que se mostra, a meu ver, equivocada.
As incongruências aparecem já na Constituição. Não faz muito sentido dar ao cidadão o poder de escolher quem vai administrar o país ao mesmo tempo em que o priva do direito de decidir se vai ou não comparecer à urna. O instituto do voto obrigatório é incompatível com o grau de liberdade individual exigido pela própria ideia de democracia.
E não é só a Carta que trata o eleitor como um ser semi-incompetente (ele pode até sê-lo de fato, mas essa é outra questão). As regulamentações eleitorais vão na mesma toada, ao tentar controlar cada detalhe das campanhas, como se precisassem proteger as pessoas de toda e qualquer influência indevida, o que quer que isso signifique. Um exemplo: o tamanho máximo do cartaz de apoio a uma candidatura que você pode afixar na fachada de sua casa é de 0,5 m². Se for de 0,6 m², estará configurado um caso de abuso de poder econômico.
No afã de disciplinar todas as insignificâncias na busca por um equilíbrio ilusório, a legislação restringe para muito além do razoável a palavra e a liberdade de candidatos e cidadãos. O pobre infeliz que, numa rede social, perguntar em quem seus amigos votarão corre o risco de ser multado por fazer uma “pesquisa” irregular.
As normas que valem para o dia das eleições, então, em muito se assemelham às do estado de sítio, com fortes limitações à liberdade de expressão e de reunião. Em algumas comarcas, valem disposições da “sharia”, a lei islâmica, proibindo a venda de bebidas alcoólicas.
As regras estabelecem até que simpatizantes de um candidato não podem aparecer em mais do que 25% de seu tempo no horário eleitoral. Minha sugestão é que, nos próximos anos, a Justiça Eleitoral se encarregue também de escrever o script da propaganda de cada candidato. Só aí poderemos estar seguros de que não haverá abusos.


Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

De A.Carnegie@edu para Milionários@eco, Elio Gaspari , FSP


Colegas,
Daqui onde estou desde 1919, fiquei chocado com o incêndio do Museu Nacional. Chocou-me muito mais a reunião teatral montada em Brasília para pedir dinheiro aos plutocratas nacionais prometendo recuperar a instituição e outros monumentos do patrimônio histórico. Não abram suas bolsas. Digo isso por que eu, Andrew Carnegie, fui o homem mais rico do mundo na entrada do século 20 e fui também o magnata que mais dinheiro distribuiu. Coisa como US$ 10 bilhões em dinheiro de hoje.
Conversei ontem com D. Pedro 2º, que morou toda sua vida no palácio que ardeu. Nós nos conhecemos em 1876, na exposição de Filadélfia. Pedro me contou que o Banco Mundial acenou com uma doação para o museu e as conversas não prosperaram. Graças a ele, conheci uma poderosa senhora, Eufrásia Teixeira Leite. Na casa dela vive um bonitão metido a inglês. Chama-se Joaquim Nabuco.
Eufrásia morreu em 1930 e deixou tudo o que tinha para os pobres de Vassouras. Era uma fortuna equivalente a duas toneladas de ouro. Numa conta grosseira, ela deu o equivalente a cerca da metade do que eu distribuí. As benfeitorias de Eufrásia viraram uma lembrança municipal, pois entregou o dinheiro a instituições beneméritas, semioficiais. Do meu cofre, quem cuida são os funcionários de fundações que sabem doar e, sobretudo, aplicá-lo.
Reunido com uma comitiva onde havia cinco banqueiros privados, o presidente Michel Temer falou em criar um fundo privado para financiar a recuperação do patrimônio cultural. Não faz sentido. Quem entende de fundo privado é a banca. O governo, como se viu, entende de ruína. (Se os bancos americanos cobrassem nos Estados Unidos os juros que vocês cobram, eu teria levado minhas siderúrgicas para o México.)
Eufrásia acha que, em vez de fazer seu apelo teatral, o presidente deveria ter sentado com os diretores do Instituto Moreira Salles e do Itaú Cultural para saber como funcionam essas instituições à prova de fogo. Podendo aprender, o governo faz o que gosta: pediu.
Eu comecei do nada. Corrompi gente, mandei abrir fogo em grevistas. Na velhice, vivi angustiado porque, sem fazer nada, ganhava mais do que conseguia doar. Eufrásia achou que filantropia é tirar o dinheiro da bolsa e entregá-lo aos outros.
Do vosso humilde e atencioso admirador,
Andrew Carnegie

O RISCO DE SE ELEGER UM "NÃO"

atentado contra a vida de Jair Bolsonaro cristaliza o risco de que a eleição de outubro venha a produzir um vencedor sem escolher um presidente.
Num eventual segundo turno entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro, ambos terão o voto de pessoas que pensam como eles, mas serão reforçados por eleitores que não votam de jeito nenhum num ou noutro.
Nas sete últimas eleições presidenciais, já existia o voto antipetista, mas prevalecia, em graus variáveis, uma preferência pelos tucanos. Isso mudou. Muita gente poderá votar em Fernando Haddad só para não ver Bolsonaro no Planalto, ou votar no capitão reformado só para impedir a volta do PT ao poder. No meio, ficará o nada.
Preferência é uma coisa, exclusão é outra. Quando o voto de exclusão supera o de preferência, consegue-se barrar aquilo que não se quer, mas não se elege um presidente.

A VÍTIMA

Com o atentado de quinta-feira, a bem-sucedida estratégia de vitimização de Lu- la virou pó.

BISPO E OSWALD

Todos aqueles que entraram no processo de histeria que associou o atentado contra Jair Bolsonaro à filiação de Adelio Bispo ao PSOL entre 2007 e 2014 deveriam calibrar seus apocalipses.
Em 1963, o presidente John Kennedy foi assassinado com um tiro na cabeça. No mesmo dia, capturaram o atirador, o ex-fuzileiro naval Lee Oswald. Logo depois soube-se que ele emigrara para a União Soviética, onde viveu por três anos, casando-se com uma russa.
Se a manipulação da histeria tivesse funcionado naqueles dias, o mundo teria acabado.

A VOZ DE PALOCCI

Pelo cheiro da brilhantina, muita gente espera que o texto da colaboração do ex-ministro Antonio Palocci venha a ser conhecido durante a campanha eleitoral. Será golpe baixo.

PT CONGELADO

A eficácia da estratégia de vitimização de Lula foi eterna enquanto durou. A partir de agora o comissariado tem três dificuldades.
A primeira é o cansaço que resultou dos recursos sucessivos, porém inúteis, junto aos tribunais.
A segunda é o peso das falas de Fernando Haddad, uma versão petista da monotonia de Geraldo Alckmin.
A terceira será a entrada de Manuel D'Ávila, do PC do B, na vice, estreitando a chapa.

A LIÇÃO DO SUS

Seja quem for o novo presidente, recebeu uma lição de saúde pública.
Jair Bolsonaro deve a vida à equipe que o atendeu na Santa Casa de Juiz de Fora, onde foi atendido como um paciente do SUS, esse sistema de medicina pública historicamente sucateado.

ÓTIMA NOTÍCIA

As coisas boas também acontecem. Está na Amazon a versão eletrônica do livro "Trilhos do Desenvolvimento", do professor americano William Summerhill. É um magistral estudo sobre a política de construção de ferrovias do Império e dos primeiros anos da República. Vira de cabeça para baixo tudo o que se escreveu e se ensina.
As concessões funcionaram e a economia foi impulsionada muito além do simples transporte de café.
A edição foi uma vitória da luz, graças ao empresário Guilherme Quintella, que cacifou a iniciativa. O primeiro artigo de Summerhill foi publicado em 1998 e o livro, com título de "Order without Progress" (Ordem sem Progresso), saiu em 2003. Não haviam sido traduzidos.

O TIRO DE TEMER

Michel Temer é frio como cobra, mas há momentos em que se move com a fúria de um orangotango, sempre em voz baixa.
O tiro que ele deu na candidatura de Geraldo Alckmin pareceu sair do orangotango. A menos que a ideia tenha sido detonar a candidatura tucana de João Doria ao governo de São Paulo, favorecendo seu velho amigo Paulo Skaf, do MDB.

PALPITE REAL

A encrenca em que uma parte da Cúria romana meteu o papa Francisco poderá ter um saudável reflexo na Coroa inglesa.
Aos 92 anos, a rainha Elizabeth 2ª pode ter cogitado abdicar em favor de seu filho Charles, de 69. A ideia parecia boa depois que o imperador japonês Akihito anunciou que abdicaria em abril de 2019. A iniciativa foi recebida com naturalidade e assumirá o príncipe Naruhito.
Do Vaticano saiu o outro lado da moeda. Como Francisco sucedeu ao papa Bento 16, que renunciou e vive na Cidade do Vaticano, abriu-se o precedente do pontífice que vai embora antes de morrer.
Resultado: os adversários de Francisco querem que ele também vá para casa.
No caso inglês, uma coisa é certa: Charles seria um rei impopular, com o filho William nos calcanhares.


    Elio Gaspari
    Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

    O fio da civilização, Cristovão Tezza, FSP

    "O mundo exterior era o império da baderna e da vagabundagem, e somente ali, em Tupinilândia, era possível construir uma sociedade correta, justa para com quem merece, de valores sólidos e imutáveis. Este era o sonho do general."
    O trecho sintetiza a ideia delirante da distopia "Tupinilândia", de Samir Machado de Machado: construído nos anos 1980 em plena Amazônia, um gigantesco parque de diversões inspirado na Disney, mas com tempero nacional, é tomado por integralistas lunáticos que o transformam numa bolha fascista. A saudação "Anauê!" é um "Heil Hitler" à brasileira.
    Submetida à lavagem cerebral, isolada em seus limites, a população do enclave desconhece completamente o que aconteceu no Brasil desde a morte de Tancredo. A narrativa se articula com a lógica e a técnica de uma história em quadrinhos, sob a sombra de videogames, humor juvenil, a clássica divisão entre bons e maus, simplicidade psicológica e, coerentemente, prosa declarativa.
    Distopias sobre alternativas históricas têm o seu fascínio; são ficções conceituais e assim devem ser lidas. O exemplo mais célebre é "O Homem do Castelo Alto" (1962), de Philip K. Dick, imaginando os Estados Unidos depois da vitória do nazismo, um tema que, entre nós, foi recriado por Miguel Sanches Neto em "A Segunda Pátria" (2015): o romance narra o apoio de Vargas a Hitler, a vitória do eixo e o subsequente retorno da escravidão negra.
    Philip Roth, em "Complô Contra a América" (2004), imaginou a vitória de Lindbergh contra Roosevelt em 1940; simpatizante do nazismo, o presidente eleito fará um pacto com Hitler, com consequências terríveis.
    É um gênero romanesco que exige clareza sobre o conceito de civilização; o que nos atrai na Segunda Guerra é a percepção indiscutível da barbárie nazista: esquerda ou direita, todos sabiam de fato o que estava em jogo. Transplantadas ao Brasil, as projeções distópicas regressivas esbarram na nossa intransponível singularidade: a falta de nitidez.
    Na permanente neblina ideológica brasileira, nossos comunistas são meio capitalistas, nossos capitalistas são meio socialistas, nosso racismo não é bem racismo, nossos corruptos são até pessoas boas, nossos doutores são iletrados, nossos iletrados são gênios, nossos brancos são meio negros e nossos negros são meio brancos, nossos bandidos são mocinhos, e os mocinhos, bandidos, nossa esquerda é claramente de direita, e a direita jura que é de esquerda, o mundo privado é estatizado e o Estado é privativo, nossos diminutivos e aumentativos são sempre afetuosos, e isso meio que desde sempre —até os integralistas eram só metade nazistas, nossos estalinistas foram legais, e, perto dos outros, os nossos ditadores foram quase meia boca.
    Para ligar uma coisa com outra, a onipresente linguagem: nossas palavras (todo brasileiro sabe disso) não valem muito, e são como o câmbio flutuante. Não nos afirmam; apenas nos transportam.
    Não faço essa caricatura simplesmente como sátira: para mim, a falta de nitidez é um traço da cabeça brasileira, e funciona como um amortecedor: resiliente de um lado, pragmático de outro.
    Por isso, quando começaram a falar em Bolsonaro, imaginei (e ainda imagino) que ele jamais ganharia a eleição, e não só pela agressão de suas ideias. Mas porque a nitidez de seu estímulo à violência de Estado, reforçada simbolicamente pelo gestual truculento, pelo elogio de torturadores, pelo "fuzilamento" de adversários, e até por mimetizar revólveres na mão de crianças, supostamente "brincadeiras" de campanha, se chocaria com a ideologicamente intangível, ou dúctil, sensibilidade da cultura brasileira.
    E justo no momento em que escrevo, momentos antes de fechar o texto para o caderno deste domingo, impresso com antecedência, levo o choque da notícia: ainda há pouco alguém esfaqueou Bolsonaro em Juiz de Fora. Felizmente, as primeiras informações dizem que não há gravidade; espero que sim, que Bolsonaro se recupere da barbárie deste ataque, que fere profundamente o país num de seus momentos históricos mais difíceis. E ele que retorne à campanha para o livre debate das ideias.
    O meu tema era o fio da civilização e a sua representação ficcional; a minha torcida, com a esperança de que seja a de milhões de brasileiros, é que, a partir da estupidez do atentado, o país não regresse a alguma Tupinilândia real. O chamariz emocional da violência é o primeiro gatilho da barbárie. O país está fraturado demais para ultrapassar esta última linha.


      Cristovão Tezza
      Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.