terça-feira, 1 de maio de 2018

De luxo modernista à ocupação precária: a história de mais de meio século do prédio que desabou em São Paulo, BBC


De luxo modernista à ocupação precária: a história de mais de meio século do prédio que desabou em São Paulo

Edifício era considerado a maior obra do arquiteto Roger Zmekhol (1928-1976)



Lígia NogueiraFelipe Souza
SÃO PAULO e LONDRES
A torre que pegou fogo e desabou na madrugada desta terça-feira (1º), no Largo do Paissandu, em São Paulo, era um dos marcos arquitetônicos da cidade e tombada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp).
Com 24 andares, além de dois pisos de sobrelojas comerciais, e 11 mil m² de área construída, o Edifício Wilton Paes de Almeida, na rua Antonio de Godoi, foi projetado na década de 1960 para abrigar a sede da empresa Cia. Comercial Vidros do Brasil (CVB).
O prédio era considerado a maior obra do arquiteto Roger Zmekhol (1928-1976). Filho de imigrantes sírios, Zmerkhol nasceu em Paris e veio para o Brasil ainda criança. Ele era professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo.
Sua característica marcante era a enorme fachada envidraçada, que lhe rendeu o apelido de "pele de vidro". Um artigo de 1965 da extinta revista de arquitetura Acrópole ressaltava outras características do prédio, como o primeiro da cidade a ter sistema de ar-condicionado central e seu hall de mármore e aço inoxidável.
Para o arquiteto Francesco Perrota-Bosch, o desabamento do Wilton Paes de Almeida também é uma "tragédia arquitetônica".
"Ele era um ponto fora da curva na arquitetura, era um prédio de vanguarda. Era um projeto com muita influência do minimalismo do Mies van der Rohe (arquiteto alemão) em sua fase americana. Mas a principal referência era o edifício Lever House, de Nova York, do escritório SOM (Skidmore, Owings e Merrill)", diz ele à BBC. "A fachada de vidro dele marcou uma época, precisou ser importada porque não era feita no Brasil."
Era justamente essa fachada de vidro que fazia a ocupação do edifício por pessoas sem moradia ser diferente das outras pela cidade, segundo o arquiteto Gustavo Cedroni, do escritório Metro, que fez um projeto de intervenção urbana no Largo do Paissandu, em 2014.
"Normalmente, os prédios ocupados têm janelas pequenas e são fechados, você não vê o que acontece. Ali, não. Justamente por ser envidraçado, era possível ver a ocupação lá dentro. Era um prédio icônico, numa esquina importante do centro da cidade", diz ele à BBC Brasil.
A arquiteta Nadia Somekh, professora emérita da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie e integrante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, afirma que o desabamento do Wilton Paes de Almeida é uma "perda enorme" para o patrimônio histórico de São Paulo. "Fora a tragédia como um todo, o prédio era um marco da arquitetura modernista de São Paulo", diz ela. "É preciso pensar em uma política habitacional mais consistente para a cidade e que preserve o nosso patrimônio histórico. É simbólico que este edifício venha abaixo justo no 1º de Maio, com essa desvalorização do trabalho no país."
Uma reportagem da Folha de janeiro de 2017 dizia que o Edifício Wilton Paes de Almeida foi a leilão em 2015, no valor de R$ 21,5 milhões, mas não houve interessados.
O local abrigou durante 23 anos a sede da Polícia Federal em São Paulo e, até 2009, uma agência do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Ainda de acordo com a Folha, em 2012, a Secretaria de Patrimônio da União cedeu o prédio para a Unifesp, que instalaria ali o Instituto de Ciências Jurídicas. Mas o projeto não vingou, assim como outro que pretendia transformar o local em um polo cultural em parceria com o Sesc (Serviço Social do Comércio).

IGREJA LUTERANA DESTRUÍDA

Ao lado do edifício funcionava uma centenária igreja luterana, a Martin Luther, que também era tombada.
O pastor Frederico Ludwig, 61, há 20 anos à frente da igreja fundada por imigrantes alemães, diz que ela ficou 80% destruída. "Sobrou praticamente só o altar e a torre", afirma ele à BBC Brasil.
Ludwig conta que a igreja havia sido reformada recentemente, em obra com custo total de R$ 1,3 milhão.
"O prédio estava inclinado havia pelo menos 20 anos, quase um metro pra frente. A gente chamou as autoridades várias vezes e não deu em nada. Agora estamos assim, vamos recolher os escombros. As pessoas da ocupação eram pessoas boas –claro que tem um ou outro que não, mas a maioria era. Nós fazemos trabalho com pessoas em situação de rua e eles vinham à igreja", diz o pastor. "Não questionamos a invasão, mas as condições em que as pessoas viviam. Tinha esgoto a céu aberto e no verão era enxame de mosquito."

DO GLAMOUR À DEGRADAÇÃO

Em 2015, o repórter da BBC Brasil Felipe Souza esteve no Wilton Paes de Almeida para fazer uma reportagem para a Folha. Em seu relato, ficam registrados recados na parede, um entra e sai constante de pessoas e, apesar de um segurança na porta, nenhuma dificuldade para entrar e circular pelo edifício.
"Na época, subi os 24 andares do prédio sem ser identificado, como se tivesse interessado em morar no local."
O cartaz mais evidente na entrada listava uma série de regras de convivência, como a proibição do uso de bebidas alcoólicas e drogas dentro do prédio.
Naquele ano, cada morador pagava entre R$ 150 a R$ 200 por mês para morar na ocupação. Os líderes do movimento diziam que a taxa servia para fazer a manutenção e limpeza do prédio. Os valores mais recentes ficavam em torno de R$ 400.
Apesar da taxa, todos os andares eram ocupados por lixo produzido pelos moradores e entulho deixado durante a desocupação da Previdência. Era possível encontrar roupas, preservativos, seringas, embalagens plásticas e muitos móveis amontoados pelos andares. Havia vazamentos nas tubulações de água e as paredes e janelas tinham pichações.
Cada piso era habitado por mais de dez famílias e tinha uma rotatividade muito alta. "As pessoas não pagam ou fazem muita bagunça e a gente pede para que elas saiam", disse uma das administradoras do local.
Cada pavimento tinha um banheiro, limpo pelos próprios moradores em forma de rodízio, um dos principais motivos de briga entre eles, segundo uma das administradoras do local.
Ainda assim, a maior parte dos banheiros estava alagada e com as paredes completamente mofadas. Ratos, baratas e aranhas eram vistos com frequência. A fiação, assim como em todo o prédio era exposta devido às ligações clandestinas feitas pelos moradores.
Segundo eles, a energia era desviada de semáforos da região. Havia tantos moradores que alguns aproveitavam para oferecer serviços, como cabeleireiros, manicure e venda de geladinho.
Entre os moradores, também havia taxistas, vendedores, garotas de programa e motoboys. Ao serem questionados, eles contavam diferentes motivos para morar na ocupação, como a proximidade com o trabalho e alternativa a morar nas ruas. Mas era unânime o relato de que nenhum deles tinha condições de pagar um aluguel
BBC

    Moradores de prédio que desabou dizem que pagavam 'aluguel' a movimento de moradia, OESP


    Segundo relatos de moradores ligados ao Movimento por Moradia Digna, o custo de viver no local era entre R$ 250 e 500 reais

    Felipe Resk, Paula Felix e Priscila Mengue, O Estado de S.Paulo
    01 Maio 2018 | 11h09
    Prédio antes do incêndio
    Edifício de 24 andares e 11 mil metros quadrados no Centro de São Paulo abrigou durante cerca de 25 anos a Polícia Federal Foto: Reprodução/Google StreetView
    Moradores relataram ao Estado que pagavam "aluguel" para o Movimento Luta por Moradia Digna (LMD) para morar no prédio que desabou na madrugada desta terça-feira, 1, no centro de São Paulo. Segundo o coordenador do LMD, Ricardo Luciano, o pagamento era de R$ 80, para custear a manutenção do local. No entanto, integrantes do Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), que faz parte do LMD, afirmam que os valores seriam mais altos, em torno  de R$ 250 a R$ 500. Ao menos 120 famílias viviam irregularmente no imóvel, segundo informações do Corpo de Bombeiros. 
    Acompanhe a cobertura ao vivo.
    O imóvel era uma antiga instalação da Polícia Federal e depois foi ocupado por imigrantes e brasileiros. A Secretaria Municipal de Habitação atuava na ocupação do edifício por meio do grupo de Mediação de Conflitos, uma vez que no local estava previsto haver a reintegração de posse, movida pela Secretaria de Patrimônio da União. Uma vez desocupado, o imóvel seria cedido à Prefeitura.
    A Secretaria de Habitação realizou seis reuniões com as lideranças da ocupação, entre fevereiro e abril, para esclarecer a necessidade de desocupação do prédio, por causa do risco e da ação judicial.
    No dia 10 de março, a secretaria cadastrou cerca de 150 famílias, com 400 pessoas, ocupantes do prédio. Desse total, 25% são famílias estrangeiras. Esse cadastro foi realizado para identificar a quantidade de famílias, o grau de vulnerabilidade social e a necessidade de encaminhamento à rede socioassistencial.
    Destroços de prédio em São Paulo
    Prédio desaba após incêndio de prédio na madrugada desta terça-feira (1), no Largo do Paissandu, próximo a Avenida Rio Branco, na República, no Centro de São Paulo (SP)
    A Prefeitura de São Paulo estima em cerca de 70 prédios ocupados na região central com aproximadamente 4 mil famílias. Trata-se de uma estimativa uma vez que em sua maioria são prédios particulares. Nestes casos, cabe ao proprietário ações junto à Justiça e às lideranças da ocupação.
    A Secretaria Municipal de Habitação criou em 2017 um Núcleo de Mediação de Conflitos que monitora 206 ocupações em toda a cidade com  cerca de 46 mil famílias. Desse total, 25% da atuação do grupo ocorre em ocupações na região central,  com 3.500 famílias. Para essas ocupações, o grupo atua no sentido de buscar uma solução conciliada com a desocupação voluntária e sem confronto.

    segunda-feira, 30 de abril de 2018

    Todo mundo mente, Pondé FSP

    Quando questionadas por suas preferências, as pessoas querem parecer inteligentes

    SÃO PAULO
    “Todo mundo mente” é a tradução de uma frase famosa do personagem Dr. House da série homônima. Ele dizia: “Everybody lies”. E é também um livro singular com o mesmo nome, escrito pelo ex-engenheiro do Google Seth Stephens-Davidowitz (HarperCollins, 2017).
    Trata-se de um daqueles trabalhos escritos a partir de pesquisa em cima do Big Data, essa gigantesca plataforma de dados, cada vez mais processada por algoritmos sofisticadíssimos (“bots”, para os íntimos). Davidowitz é um “data scientist” (cientista de dados).
    A chamada “física social”, disciplina criada pelo também “data scientist” do MIT Alex Pentland, autor de um clássico de 2014 na área, “Social Physics”, se constitui numa ciência social a partir dos rastros deixados por nós na rede. O “físico”, aqui, seria esse rastro que pode ser organizado como qualquer outro dado concreto de uma “hard science” (“ciência dura”, e não vaga, como as “humanas”).
    Enquanto Pentland é um claro “integrado” à ideia de que isso tudo fará o mundo melhor, Davidowitz é mais dialético na sua abordagem.
    Ilustração coluna Luiz Felipe Pondé
    Ricardo Cammarota
    A ideia central do livro é que “everybody lies”. E a razão desta mentira generalizada é que queremos parecer melhor do que somos no Face (nada que santo Agostinho, vivendo entre os séculos 4 e 5, não soubesse, sem o suporte, claro, da “data science” pra provar). A outra razão da mentira é o marketing do bem, que resolveu construir uma grande mentira a serviço da ideia de que o bem é algo que se cria numa start-up cheia de millennials livres do mal.
    A comparação entre, por exemplo, o que se posta no Face (fruto de nossa intenção de parecer ótimos, felizes, inteligentes e engajados) e o material que, de fato, “googamos”, em busca de respostas ou, pelo menos, de mais dados sobre o tema que nos interessa, revela que todos mentimos. Os dois conteúdos não batem.
    Como alguém, por exemplo, que diz que o marido é ótimo e a ama apaixonadamente no Face, pode, no Google, se perguntar tanto “como saber se meu marido é gay?” ou “o que fazer se meu marido não quer fazer sexo comigo?”. Sim, essas são duas das maiores questões que atormentam as mulheres. O homens, por sua vez, postam que estão “evoluídos”, principalmente os mais jovens, mas continuam atormentados por questões como “ela está tendo um caso?” ou “como aumentar meu pênis?”.
    Fala-se muito de empoderamento feminino, e as mulheres mais jovens ficam cada vez mais fálicas (e sozinhas, diante de homens jovens amedrontados). Mas, se olharmos para as buscas delas no Google, o que vemos é o desejo de ver material erótico em que mulheres são violentadas, humilhadas, tratadas como vadias e similares. Enquanto a histeria do assédio toma conta de Hollywood e do mundo da mídia, muitas mulheres ficam vendo vídeos em que mulheres são assediadas e acabam gozando.
    A Netflix aprendeu uma dura lição. Quando buscou fazer os menus de seus consumidores a partir da lista que estes informavam, jogou dinheiro no lixo. Quando questionadas por suas preferências, as pessoas elencavam filmes inteligentes, europeus, iranianos, alternativos, documentários. Mas, na verdade, ninguém usava o menu.
    Enquanto projetavam um perfil de amantes de filmes inteligentes, na verdade, viam filmes de terror, crimes, romances, comédias idiotas e super-heróis bobos. A Netflix resolveu então perguntar ao algoritmo, nosso oráculo. O algoritmo sabe de mim mais do que eu sei de mim mesmo. Outra vez, santo Agostinho. Só que, para este, era Deus quem sabia mais de mim do que eu sabia de mim mesmo.
    E aí chegou ao que precisava. Nós mentimos, o algoritmo não. Rastreando os tipos de filmes realmente vistos, a Netflix chegou à solução: não pergunte para as pessoas do que elas gostam, porque elas mentem (provavelmente, para si mesmas), olhe para o que elas fazem de fato. De novo, nada que a filosofia moral já não soubesse.
    Quer mais? Apesar de as pessoas afirmarem que são contra julgar os outros (está na moda amar todo mundo), na verdade, o que os rastros dizem é que muita gente adora julgar os amigos, os colegas de trabalho, e falar mal deles. 
    Apesar de dizerem que querem ser informadas e, por isso, veem noticias de manhã, na verdade, as pessoas adoram acompanhar fofocas sobre celebridades transando fora do casamento. 
    Apesar de se condenar, veementemente, a violência, as pessoas adoram assistir a filmes de caras ricos fazendo sexo violento com alunas da faculdade. O mundo nunca foi uma farsa maior do que é hoje.
    Luiz Felipe Pondé
    Pernambucano, é escritor, filósofo e ensaísta. Doutor em filosofia pela USP, é professor da PUC e da Faap.