Reportagem de capa da edição 828 de CartaCapital
Na busca e apreensão realizada na casa de Alberto Youssef durante a primeira fase da Operação Lava Jato, em 17 de março, a Polícia Federal encontrou um documento cujo conteúdo demonstra que a atuação do doleiro extrapola os limites da Petrobras e estende seus tentáculos sobre outras estatais federais, órgãos públicos estaduais, prefeituras e empresas privadas. Apreendida em meio a relógios e canetas importados, a planilha de 34 páginas, à qual CartaCapital teve acesso, traz um relatório de 747 projetos vinculados a clientes diretos, no caso as construtoras, e relacionados a um cliente final, na maioria empresas públicas e algumas privadas.
“Assim, é claro o envolvimento de Youssef e seu grupo com grandes empreiteiras, e, através da planilha apreendida, pode-se deduzir que o doleiro tinha interesse especial nos contratos dessas empresas, onde de alguma forma atuava na intermediação”, observam os policiais federais. Somadas, as obras datadas do período entre 2008 e 2012, alcançam a cifra de 11,5 bilhões de reais e sugerem uma explicação para o fato de a força-tarefa envolvida nas investigações afirmar que a organização criminosa “abrange uma estrutura criminosa que assola o País de Norte a Sul”. Chama atenção a disciplina e organização do doleiro ao produzir o relatório. Nele, cada obra é seguida do telefone fixo e celular do contato na empresa, informações detalhadas sobre o projeto, como espessura e tipo de materiais a serem utilizados, data e valor.
No caso dos projetos listados na planilha, segundo a PF, o doleiro utilizava a empresa Sanko-Sider para fechar contratos com centenas de construtoras e abocanhar obras em órgãos públicos em todas as regiões do Brasil. Sobre a relação encontrada com Youssef, suas empresas de fachada, incluídas a MO Consultoria e a GDF Investimentos, e a Sanko, os investigadores da força-tarefa da Lava Jato observam que foram “construídas” centenas de contratos fictícios para justificar a saída de recursos das grandes empreiteiras em direção ao sistema financeiro paralelo mantido pela organização criminosa. No entendimento das autoridades, essa não era a única forma de operação do grupo liderado pelo doleiro. Os outros dois seriam a “entrega física de numerário” direto pelas construtoras para posterior “distribuição” de Youssef e o pagamento no exterior em offshore como a Santa Tereza Services. Agora, o desafio dos investigadores é descobrir se, no caso dos projetos citados na planilha, assim como ocorreu na Petrobras, houve pagamento de propina a agentes públicos. Essa busca tende a resultar em uma avalanche de inquéritos capazes de desnudar o maior esquema de desvio de dinheiro público da história.
Das obras citadas na lista, nem todas foram conquistadas pela clientela de Youssef. A planilha indica, no entanto, a abrangência de seus negócios. Ao menos 59% dos projetos citados envolvem como cliente final a Petrobras. Aparecem no documento o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), seis refinarias, uma fábrica de amônia em Uberaba (MG), uma plataforma de petróleo, a Petrobras Netherlands, a sede administrativa em Santos, a Transpetro. Consta no documento até a obra para remoção de dutos no terreno em Itaquera, na capital paulista, onde foi construído o estádio do Corinthians, palco da abertura da Copa do Mundo.
Além da petroquímica, os projetos listados têm como clientes diretos companhias paulistas como Sabesp e o Metrô e estatais de saneamento de Minas Gerais (Copasa), Maranhão (Caema), Alagoas (Casal), Ceará (Cagece), Rio de Janeiro (Cedae), Goiás (Saneago), Diadema (Saned). Do Nordeste, aparecem o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), ligado ao Ministério da Integração Nacional, e o Porto de Suape, empreendimento do governo de Pernambuco. Entre as empresas privadas, destacam-se a Vale, a Fiat e empresas do Grupo X de Eike Batista. Surgem ainda no documento projetos em países como Angola, Uruguai e Argentina.
Além das construtoras citadas na fase Juízo Final da operação, integram a coluna da planilha destinada aos clientes diretos cerca de cem empresas. Entre elas, a Delta Engenharia, o Grupo Schahin, a IHS Engenharia, a Potencial Engenharia e a CR Almeida. Empresas públicas que figuram como clientes diretos, a exemplo das companhias de gás de Bahia (Bahiagás), Ceará (Cegás), Mato Grosso do Sul (MSGás), Paraíba (PBGás) e Sergipe (Sergas), têm negócios detalhadamente organizados no documento.
Um dos alvos do doleiro eram as obras contra a seca no Nordeste, em especial as administradas pelo Dnocs. O órgão é ligado ao Ministério da Integração Nacional, que durante o período abarcado na planilha era comandado pelo ministro Fernando Bezerra Coelho. Nas interceptações telefônica da Lava Jato, o irmão do ex-ministro e ex-presidente da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba, a Codevasf, Clementino de Souza Coelho, surge a pedir dinheiro ao doleiro. Ao menos duas obras envolvem contratos com a Galvão Engenharia e a Camargo Corrêa, ambas investigadas por formação de cartel na Petrobras. A obra da Camargo Corrêa, de 9,4 milhões de reais, traz a anotação “adutora Guadalupe”. É uma referência ao Perímetro Irrigado Platôs de Guadalupe, realizado pelo Dnocs com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento. O projeto da Galvão tem o valor de 42,9 milhões de reais e é acompanhado da citação “sistema adutor do agreste”, referência a um projeto inaugurado pelo governo alagoano em agosto e que beneficia 400 mil habitantes de dez municípios. Nos dois casos, as construtoras citadas de fato participaram de parte das obras. Uma proposta de contrato ainda maior, de 141 milhões de reais, está ao lado da citação da Construtora Passarelli como cliente direto para a “implantação da 1ª e 2ª etapas do Sistema Adutora Gavião Pecém”. O sistema é, na realidade, a interligação do sistema de reservatórios de água da região metropolitana de Fortaleza ao Complexo Portuário e Industrial Gavião Pecém.
Como na Petrobras, cujas obras com participação do doleiro apresentaram problemas de superfaturamento e atraso na entrega, alguns dos projetos relacionados ao relatório encontrado na casa do doleiro deixaram rastros da falta de zelo com o dinheiro público. No Maranhão, onde o doleiro foi preso em março, uma auditoria do Tribunal de Contas da União apontou irregularidades na obra realizada pela companhia de saneamento estadual para remanejamento da adutora de água tratada, no trecho do Campo de Perizes. Segundo os fiscais, o maior dos desvios ocorreu na licitação vencida pelo consórcio formado pela EIT Construções e Edeconsil. Na planilha apreendida, o consórcio aparece em dois momentos como cliente de Youssef e atrelado a um contrato de 58 milhões de reais.
Outro caso parecido é o trecho do monotrilho entre a estação Oratório e Vila Prudente, na capital paulista, integrante da linha 15-Prata do Metrô. No documento apreendido, a Construtora OAS, consorciada com a Queiroz Galvão e a canadense Bombardier, seria o cliente do doleiro em um contrato de cerca de 8 milhões de reais. Prometida pelo governador Geraldo Alckmin para janeiro deste ano, o monotrilho ainda não entrou em operação. O presidente da OAS, José Aldemário Pinheiro Filho, o vice-presidente do setor Internacional, Agenor Medeiros, e mais três dirigentes foram presos pela PF. Na planilha aparecem ainda outros projetos de estatais paulistas, a começar por duas adutoras da Sabesp e obras no trecho Sul do Rodoanel. No caso da construção do anel rodoviário, em 2009, o TCU havia apontado ao menos 79 irregularidades graves, inclusive sobrepreço. Na planilha do doleiro, a menção ao Rodoanel precede a inscrição do valor de 1,5 milhão de reais. No caso da construção do estádio do Corinthians, o cliente de Youssef seria a Sacs Construção e Comércio, responsável por remanejar a tubulação da Petrobras sob o terreno. A retirada dos tubos foi um dos motivos do atraso na entrega do estádio-sede da Copa do Mundo. Na página 19, o projeto está orçado em 1,3 milhão de reais e tem como cliente final a estatal, mas no site da Sacs, a empresa informa que o clube arcaria com as despesas.
Além do estádio, a Petrobras e suas subsidiárias aparecem como cliente final em cerca de 400 projetos exibidos na planilha. Os investimentos vão muito além da Refinaria Abreu e Lima, alvo de inquéritos e processos da Lava Jato. Destacam-se os apontamentos sobre projetos da empresa Iesa Óleo & Gás, cujo diretor Otto Garrido Sparenberg foi preso na Juízo Final. A citação à Iesa está relacionada a um contrato de 10,5 milhões de reais para obras na Unidade de Fertilizantes Nitrogenados V, localizada na cidade mineira de Uberaba. Aparece também na listagem do doleiro a citação a um contrato com a empreiteira Construcap referente à construção da sede da Petrobras na cidade de Santos. A construtora confirma ter mantido contratos com a Sanko, embora afirme processar a empresa por problemas na entrega de tubulações adquiridas no passado. Sobre o engenheiro apontado citado na planilha, a empresa diz não empregá-lo atualmente.
Outra companhia a aparecer na lista é a Logum Logística. Resultado de composição acionária entre a Petrobras, Odebrecht, Camargo Corrêa e outras três empresas, a Logum foi criada, em 2011, para construir e operar o Sistema Logístico do Etanol. Embora acionistas, a Camargo Corrêa e a Odebrecht formam o Consórcio Etanol que venceu uma licitação de 900 milhões da própria Logum para as obras do primeiro trecho do etanolduto, entre as cidades de Paulínia e Ribeirão Preto, em São Paulo. Na planilha, o consórcio é citado como cliente direto de Youssef em ao menos dois contratos que chegam a 140 milhões de reais. Além dos dutos para o escoamento da produção de etanol, a Logum é responsável pela construção dos terminais para carregamento das barcaças de transporte do combustível pela hidrovia Tietê-Paraná. Como revelou CartaCapital na edição 819, de 1º de outubro, por conta de possível direcionamento na licitação de 239 milhões de dólares, o Ministério Público pediu o afastamento do presidente da Transpetro, Sergio Machado. O executivo foi citado na delação de Paulo Roberto Costa por ter entregado a ele 500 mil reais. Atualmente está afastado do cargo.
Em depoimento à CPI da Petrobras na quinta-feira 27, o dono da Sanko, Marcio Andrade Bonilho, confirmou ter repassado ao menos 33 milhões de reais ao doleiro pelos serviços de intermediação de grandes contratos com construtoras. Segundo o empresário, os repasses eram comissões de 3% a 15% pagas por serviços que foram prestados integralmente. “Era dito no setor que ele tinha tráfego bom junto às construtoras.” As empresas citadas na reportagem negam qualquer tipo de relação com Youssef e afirmam estar à disposição da Justiça para qualquer esclarecimento sobre as citações na lista apreendida na casa do doleiro. O Metrô de São Paulo e a Secretaria de Transportes do Estado, responsáveis pelo Monotrilho e o Rodoanel, respectivamente, enviaram nota na qual afirmam que a reportagem tira conclusões precipitadas baseadas em um documento do inquérito da Lava Jaro. Segundo as empresas, nenhuma das obras citadas contratou ou subcontratou os serviços da Sanko Sider.
O relatório de projetos apreendido pela PF demonstra como o doleiro era capaz de negociar com estatais comandadas por políticos das mais diversas cores partidárias. Apadrinhado do ex-deputado José Janene, falecido em 2010 e a quem deve a abertura das portas em Brasília e nos partidos políticos, conseguiu aliar sua capacidade de arquitetar engrenagens financeiras paralelas para dificultar o rastreamento do dinheiro pelas autoridades à astúcia na tarefa de corromper agentes públicos. A expertise nascida dessas qualidades transformou o antigo operador de câmbio preso no caso Banestado em um dos maiores lobistas do Brasil, capaz de complicar a vida de grande parte da República. Caso estejam dispostas a mapear a ação do doleiro, o primeiro passo sugerido às autoridades da Lava Jato é instaurar um inquérito para cada obra citada na planilha. Quem sabe assim o País terá pela primeira vez um panorama da corrupção e suas engrenagens em todas as esferas de poder.