domingo, 2 de novembro de 2014

Água deu, água leva


JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S. PAULO
18 Outubro 2014 | 16h 00

Vamos ter de mudar hábitos que vão do banho ao modo de matar a sede, da limpeza da casa às plantas que podemos ou não ter



TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO
Tempos turvos. Raciocinamos como se o calorão fosse só um convite ao refresco

As mudanças climáticas que nos alcançam, especialmente a falta de chuvas e a escassez de água, são dramáticas nas sociedades e nos grupos sociais que não desenvolveram uma cultura que lhes permita administrar a complicada relação da sociedade com a natureza. Diferentemente do que pode ocorrer com as populações urbanas, as populações agrícolas administram cotidianamente sua relação com o clima e dispõem de uma cultura rica de informações que lhes possibilita interpretar as variações climáticas e as municia com critérios e procedimentos para lidar com as adversidades naturais até muito tempo antes das ocorrências mais graves. Pode não fazer chover, mas ensina a lidar com falta de chuva. 
Já vi coisas notáveis que indicam como a crescente urbanização priva os habitantes das cidades do capital cultural necessário a uma atitude prudente e positiva em face das variações do clima. No sul do Pará, numa época em que uma cidade planejada e recém-construída era afligida anualmente pelas águas do rio, perguntei a moradores da roça por que seus ranchos ficavam a salvo da inundação. Observavam o comportamento de determinada variedade de formiga, que faz seu formigueiro na barranca do rio. Quando as formigas começavam a migrar com os ovos para novo formigueiro, mais alto, os moradores da região sabiam que haveria enchente e o nível do rio ficaria abaixo da nova toca. Ou os lavradores que preparam a terra na época costumeira, mas não semeiam quando intuem que as chuvas não cairão na época certa. Uma indicação comum e corrente no Nordeste é a da chuva no dia de São José, 19 de março. Se chove, o ano será bom para a lavoura porque choverá durante o ano. Falta de chuva nesse dia é indício de longa estiagem, o que sugere decisões quanto ao que e quando plantar. Isso vale também para outras cautelas quanto ao uso da água existente e quanto à regulação do uso do que de colheita anterior ainda está no paiol. Há saberes centenários e até milenares sistematizados numa climatologia popular, numa meteorologia dos simples e numa agricultura do povo. 
Mesmo as populações de origem rural que se transferiram para as cidades têm esse saber ancestral corroído e cancelado no curto tempo de uma geração. Entram no mundo fantasioso de que na cidade tudo pode ser comprado. Crianças já não sabem que galinha se cria no galinheiro e não no supermercado, que feijão precisa ser plantado para ser colhido, que o leite é tirado do úbere da vaca. Tudo parece reduzido ao fabricar e comprar. Mesmo a água parece mágica da torneira. Basta abrir. Isso pode acontecer também no meio rural, nas áreas alcançadas pela modernização e pelo progresso. Vi num povoado do sertão da Bahia, em área arenosa e quentíssima, a torneira aberta, jorrando sobre a areia a água de um poço artesiano comunitário construído pelo governo, como se fosse um perene rio encanado. 
Já tomei água pura e cristalina do Rio Tamanduateí na região metropolitana de São Paulo. O rio nasce numa gruta de um bosque do município de Mauá. Eu participava de uma excursão educativa da Sabesp ao longo do rio, desde a foz no Tietê. Os técnicos mostravam o horror de córregos e canais poluídos despejando o líquido escuro sobre o rio principal. Não muito longe da nascente, em área servida por coleta domiciliar de lixo, pessoas atravessavam a rua para jogar o lixo na barranca do rio. A cerca de 100 metros da nascente, o primeiro poluidor, o dono de uma fabriqueta de blocos de concreto, jogava os resíduos na água limpa que ele poderia beber, não bebia e com a sujeira não permitia que outros bebessem.
Situações de crise são boas referências para compreender mudanças sociais e mudanças de mentalidade que poderão induzir a população urbana a recriar padrões de civilidade no trato da natureza. É que mesmo as alterações climáticas interferem no padrão dos relacionamentos sociais, nos valores de conduta e no modo como a sociedade se organiza e funciona. O Brasil está mudando. O que ninguém esperava é que a mudança climática também entrasse no palco e reivindicasse um papel de protagonista de mudanças sociais. Qualquer um pode compreender que os costumes vigentes, influenciados pelo clima ameno e a água abundante em boa parte do território brasileiro, estão perdendo o sentido. Estamos no limiar de novos hábitos que vão do banho ao modo de beber água, da limpeza da casa ao tipo de plantas que poderemos ter no jardim ou em vasos. A própria concepção de nojo está ameaçada. O nojo já deveria ter se tornado descabido em face do consumo de água que é, no fundo, esgoto filtrado e tratado. Teremos que aprender que com água não se brinca, que o que emporcalhamos hoje beberemos amanhã. 
A mudança de hábitos e de comportamento será difícil. Nestes dias de calor escaldante, uma das moças do tempo, na TV, anunciou com indisfarçável ar de felicidade que teríamos um lindo fim de semana de sol. Raciocinamos ainda como se a falta de chuva e de água fosse apenas um convite para ir à praia. 
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José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de Uma Sociologia da Vida Cotidiana (Contexto)

sábado, 1 de novembro de 2014

A hora e a vez de debater saúde

GIOVANNI GUIDO CERRI E CLAUDIO LOTTENBERG


Urge que nossos políticos tratem com mais intensidade o tema da saúde, com políticas consistentes que atendam às demandas sociais
A saúde, principal problema do país, segundo eleitores sondados por institutos de pesquisa, ficou fora do eixo central da propaganda política e dos debates entre os candidatos à Presidência da República no primeiro turno. Mesmo nas disputas estaduais, a saúde foi deixada de lado. No Estado de São Paulo, foi o terceiro ou quarto tema mais abordado. No Rio, apenas o sétimo.
Urge que nossos políticos tratem com mais intensidade e profundidade a saúde, questão primordial para um país mais justo, com políticas públicas consistentes que atendam às reais demandas dos cidadãos, e não programas embalados pelo marketing. A hora é agora.
Na agenda do debate deste segundo turno, não podemos perder a oportunidade de colocar algumas questões realmente relevantes à saúde, que movimenta 9,2% do PIB. O financiamento do setor talvez seja a principal delas.
Na última década, assistimos a uma acentuada redução da participação da União no financiamento da saúde, que saiu de 58% para 45% em dez anos. Por ano, o governo federal investe 1,8% do PIB. Com baixo crescimento econômico, o valor do dinheiro praticamente vem se repetindo. Para uma saúde de qualidade, são necessários 10% da receita corrente bruta, pelo menos.
O país precisa de agências reguladoras de saúde mais técnicas, eficazes e rápidas, com simplificação de registros, autorização de pesquisas clínicas e consolidação das normas existentes.
Deve urgentemente aprimorar o diálogo com o Poder Judiciário e entidades representativas dos advogados sobre os efeitos nefastos da chamada judicialização da saúde que, se de um lado expõe os limites financeiros do setor público para oferta de novas e comprovadas terapias, de outro desorganiza e prejudica o sistema de saúde.
Apenas o diálogo com a participação de autoridades, médicos e representantes dos pacientes reencontrará o equilíbrio entre os interesses coletivos e as demandas individuais. Também defendemos maior regulação da participação das empresas privadas na saúde pública, de modo a garantir maior segurança jurídica dos projetos como parcerias público-privadas, parcerias para desenvolvimento produtivo e organizações sociais na gestão de equipamentos de saúde.
É preciso discutir como podemos avançar em prevenção e promoção de saúde, área em que o Brasil patina e que é fundamental para evitar o surgimento de doenças, reduzir a mortalidade e diminuir custos com tratamentos e internações.
A discussão sobre saúde entre nós tem sido marcada pela falta de prioridade e o excesso de preconceitos, transformando-se mais em uma repetição de posições antigas e ideológicas do que em um diálogo voltado ao futuro, como espera e demanda a população brasileira.
O setor empresarial, com a participação de todos os principais segmentos da cadeia de saúde, decidiu criar o movimento "Coalizão Saúde". Queremos, em nome do setor privado, atuar para que haja mais debate, já a partir desse segundo turno. Queremos também colaborar com o governo e com a sociedade no aperfeiçoamento do sistema de saúde brasileiro.

Vaticano: «Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos» (pauta Scherer)

Agência Ecclesia
 
   



http://movimientospopulares.org/
http://movimientospopulares.org/

Francisco lembra quem o acusa de ser «comunista» por dar voz aos pobres




Cidade do Vaticano, 28 out 2014 (Ecclesia) - O Papa Francisco apelou hoje à defesa dos direitos dos trabalhadores e das suas famílias, durante um encontro com os participantes no primeiro encontro mundial de Movimentos Populares.
“Digamos juntos, de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”, declarou, perante trabalhadores precários e da economia informal, migrantes, indígenas, sem-terra e pessoas que perderam a sua habitação.
O encontro é promovido até quarta-feira pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz (Santa Sé), em colaboração com a Academia Pontifícia das Ciências Sociais.
“Não existe pior pobreza material do que aquela que não permite ganhar o pão e priva da dignidade do trabalho. O desemprego juvenil, a informalidade e a falta de direitos laborais não são inevitáveis, são o resultado de opção social prévia, de um sistema económico que coloca os lucros acima do homem”, defendeu o Papa.
A intervenção alertou para o “escândalo da fome” e as consequências da “cultura do descartável”, condenando os “eufemismos” que se utilizam para falar do “mundo das injustiças”.
“Este sistema já não se consegue aguentar. Temos de mudá-lo, temos de voltar a levar a dignidade humana para o centro: que sobre esse pilar se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos”, explicou.
Francisco criticou o “império do dinheiro” que exige a “guerra”, o comércio de armamentos, para a sobrevivência de “sistemas económicos”.
O Papa agradeceu aos participantes pela sua presença no Vaticano para “debater tantos graves problemas sociais que afetam o mundo de hoje” desde a perspetiva de quem sofre a desigualdade e a exclusão “na sua própria carne”.
“Terra, teto e trabalho. É estranho, mas se falar disto, para alguns parece que o Papa é comunista”, começou por referir, antes de recordar que “o amor pelos pobres está no centro do Evangelho”.
"Terra, teto e trabalho, aquilo por que lutam, são direitos sagrados. Reclamar isso não é nada de estranho, é a Doutrina Social da Igreja", assinalou.
O Papa pediu que se mantenha viva a vontade de construir um mundo melhor, “porque o mundo se esqueceu de Deus, que é Pai, ficou órfão porque deixou Deus de lado”.
Num discurso de cerca de meia hora, Francisco referiu que a presença dos Movimentos Populares é um “grande sinal”, porque estão no Vaticano para “pôr na presença de Deus, da Igreja, uma realidade muitas vezes silenciada”.
“Os pobres não só sofrem a injustiça mas também lutam contra ela”, precisou.
Jesus, acrescentou, chamaria “hipócritas” aos que abordam o “escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção” para procurar fazer dos pobres “seres domesticados e inofensivos”.
O discurso papal abordou ainda os temas da paz e da ecologia, para além das questões centrais do emprego e da habitação.
“São respostas a um anseio muito concreto, algo que qualquer pai, qualquer mãe quer para os seus filhos. Um anseio que deveria estar ao alcance de todos, mas que hoje vemos com tristeza que está cada vez mais longe da maioria”, sublinhou Francisco.
O Papa convidou os participantes a prosseguirem com a sua luta, “que faz bem a todos”, e deu-lhes como presente uns terços fabricados por artesãos, ‘cartoneros’ e trabalhadores da economia popular na América Latina.

Pontífice defendeu que a pobreza está no centro do Evangelho; o comunismo teria se apropriado dessa bandeira no século XX

Reuters
O papa Francisco, cujas críticas ao capitalismo desenfreado levaram alguns a rotulá-lo como marxista, disse em uma entrevista publicada neste domingo (29) que comunistas tinham roubado a bandeira do cristianismo.
O pontífice, de 77 anos, deu uma entrevista ao Il Messaggero, um jornal de Roma, para marcar a festa de São Pedro e São Paulo, um feriado na cidade.
Ele foi questionado sobre um post no blog da revista Economist que dizia que ele soava como um leninista quando criticou o capitalismo e pediu uma reforma econômica radical.
"Eu só posso dizer que os comunistas têm roubado a nossa bandeira. A bandeira dos pobres é cristã. A pobreza está no centro de o Evangelho", disse ele, citando passagens bíblicas sobre a necessidade de ajudar os pobres, os doentes e os necessitados.
"Os comunistas dizem que tudo isso é comunismo. Claro, vinte séculos mais tarde. Então, quando eles falam, pode-se dizer: 'mas então você é cristão'", disse ele, rindo.
Desde sua eleição, em março de 2013, Francisco tem frequentemente atacado o sistema econômico global como sendo insensível aos pobres e não fazer o suficiente para compartilhar a riqueza com aqueles que mais precisam.
No início deste mês, ele criticou a riqueza feita a partir de especulação financeira como intolerável e disse que a especulação com commodities era um escândalo que comprometeu o acesso dos pobres aos alimentos.