sábado, 3 de maio de 2014

Social, não étnico - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 03/05
Cotas raciais perdem força nos Estados Unidos, mas ganham no Brasil, onde o problema no fundo é a má qualidade do ensino básico
Decisão recente da Suprema Corte americana validou o referendo no qual os eleitores de Michigan baniram, em 2006, o critério racial na admissão às universidades públicas daquele Estado.
Ganha ímpeto, assim, um processo de reversão histórica no próprio país onde as políticas de compensação racial surgiram, há meio século. Outros sete Estados também vedaram o critério racial, e a lista deve aumentar com a deliberação da Suprema Corte.

Nos Estados Unidos, a maioria branca expressa seu inconformismo com a contra-discriminação imposta pelas cotas raciais. No Brasil, a profunda miscigenação --um fato demográfico-- impõe objeções de outra ordem a essa política compensatória.

Pois seria difícil contestar a conveniência de alguma política compensatória, que acelere a correção da enorme distância competitiva numa sociedade tão desigual como a brasileira.

Mas tal exceção à prevalência do mérito deve ser provisória, enquanto não melhora a qualidade do ensino público oferecido a crianças e adolescentes. E deveria obedecer a critérios sociais, beneficiando egressos das escolas públicas ou alunos com menor renda familiar.

O critério racial introduz um fator politicamente explosivo, além de duvidoso em si, propício a estigmas e mistificações emocionais.

Ao contrário dos Estados Unidos, onde sua aplicação prática parece viável, num país como o Brasil, onde metade da população não é "branca" nem "negra", tal critério cria problemas, em vez de resolvê-los. Como coibir fraudes, por exemplo, se não estabelecendo odiosos tribunais raciais?

Desde 2012, vigora a Lei das Cotas, que estipula critérios mistos, sociais e raciais, para preencher metade das vagas oferecidas pelas universidades federais. Tramita no Senado projeto do governo que reserva 20% das vagas nos concursos federais a afrodescendentes. Leis semelhantes já vigem em diversos Estados e municípios.

A aspiração de mitigar a desigualdade de acesso a melhores condições de vida é legítima, como reconheceu o Supremo tribunal Federal quando decidiu que as cotas não violam o princípio constitucional da igualdade perante a lei.

Mas exceções ao princípio do mérito tendem a prejudicar o desempenho das instituições que as praticam. Implicam alguma injustiça; no caso das cotas raciais, "brancos" pobres são especialmente lesados.

Cotas sociais compensam os estratos étnicos discriminados, na medida em que eles se concentram nas faixas de renda menor. Mas são ações paliativas, enquanto não se enfrenta o problema maior, que é a má qualidade do ensino público fundamental.

Quando um município não tem condições de oferecer boa escola, União fecha os olhos

Quando um banco entra em crise, o Banco Central intervém para evitar a falência; quando a segurança de uma cidade entra em crise, o governo federal aciona a Guarda Nacional; quando a saúde fica catastrófica, importam-se médicos; quando uma estrada é destruída por chuva, o governo federal auxilia o estado; mas quando um município não tem condições de oferecer boa escola a suas crianças, o governo federal fecha os olhos, porque isso não é responsabilidade da União. Limita-se a distribuir, por meio do Fundeb, R$ 10,3 bilhões por ano, equivalente a R$ 205 por criança ou R$ 2 a cada dia letivo.

A boa educação de uma criança, assumindo um bom salário para atrair os melhores alunos das universidades para o magistério, em boas e bem equipadas novas escolas, todas em horário integral, custaria R$ 9.500 por ano, por aluno. Das 5.564 cidades brasileiras, a receita orçamentária total não chega a R$ 9.500 por criança em idade escolar. Se considerarmos os gastos fixos e custeios da administração municipal, nenhuma de nossas cidades teria condições de oferecer educação de qualidade a suas crianças.

Para mudar tal panorama, o país tem dois caminhos: deixar que o futuro de nossas crianças dependa de alta renda de sua família ou responsabilizar a União pela educação dos filhos do Brasil.

As cidades que não têm condições de oferecer uma boa educação para seus filhos apelariam ao governo federal e este adotaria as escolas dessas cidades, respeitando todos os acordos federativos, todos os direitos dos municípios, mas também os direitos de todas as crianças do Brasil, independentemente da cidade onde moram.

Antes mesmo de uma Lei de Adoção Federal ser aprovada, quem sabe um ou outro prefeito não toma a iniciativa de ir ao governo federal e dizer: “Presidente, não tenho condições de oferecer a educação que minhas crianças merecem como qualquer criança brasileira. Por isso, peço que o governo federal adote as escolas da minha cidade”.

Para isso, o caminho é uma carreira nacional com elevados salários e elevadas responsabilidades, com estabilidade submetida a avaliações periódicas, em edificações bonitas e confortáveis com os mais modernos equipamentos, em horário integral.

Lamentavelmente nem todos os prefeitos teriam este gesto de responsabilidade para com suas crianças. Muitos vão preferir continuar sem condições de pagar bons salários, enfrentando greves periódicas que terminam com mínimos aumentos de salários e imensas perdas pedagógicas. Mas, se de repente, muitos despertassem e colocassem os interesses de suas crianças acima de tudo, o governo federal poderia definir critérios para selecionar aos poucos as cidades que seriam adotadas.

Na medida em que este caminho fosse dando certo, em 20 ou 30 anos veríamos todas as crianças brasileiras serem tratadas como brasileiras, em vez de municipais, como hoje. O país teria um sistema de qualidade e com qualidade igual na educação de suas crianças, quebrando o muro do atraso e o muro da desigualdade que nos caracterizam.

Conspirando com Gabo


26 de abril de 2014 | 17h 16

Ariel Dorfman - O Estado de S. Paulo
Nem só de literatura são feitas as lembranças de Gabo, agora que o seu corpo já não está entre nós. Acredito que nos sete anos que passei, desde 1973, conspirando com ele, graças ao exílio e a Pinochet, juntando-me a ele, almoçando em sua casa em Barcelona e jantando no Pedregal de San Ángel, sentados nos cafés de Paris e de Roma e até, acho, certa vez, em Estocolmo, sempre conspirando, conjurando, tramando, sempre em busca da maneira mais rápida e imaginativa para acabarmos com as ditaduras que assolavam nossa América Latina.
Gabriel García Márquez faleceu em 17 de abril - Thomas Bravo / Reuters
Thomas Bravo / Reuters
Gabriel García Márquez faleceu em 17 de abril
Que mais poderia desejar um jovem escritor latino-americano, como eu era naquela época, senão passar horas e horas na companhia do autor de Cem Anos de Solidão? Era possível pedir algo mais, em meio àquele caudal de encontros, Gabo abrindo suas agendas de contatos, Gabo atendendo ao telefone nas madrugadas e Gabo entrevistando figuras da resistência, sempre disposto a intervir para salvar uma vida, transpor uma porta, escrever um artigo? Era possível pedir mais?
Eu não tinha sequer me colocado a questão quando o destino me ofereceu, em agosto de 1980, a oportunidade de compartilhar com Gabo e vários outros escritores uma semana inteira em Cocoyoc como jurados de um concurso literário sobre militarismo na América Latina. Digo que o destino me proporcionou essa graça, porque é uma delícia narrar a própria vida com uma frase típica do próprio García Márquez, mas a verdade é que o convite não veio do destino e sim de Julio Scherer, o lendário diretor da revistaProceso. Assim que recebi o convite, tive consciência do que me fizera falta ao longo desses sete anos anteriores, com a revelação de que, durante tantas sessões insubstituíveis e amáveis com Gabo, estimulados pela urgência da política, quase nunca havíamos tido tempo de falar sobre literatura, daquelas obras que, em tempos mais normais, teriam sido tema cotidiano e incessante de conversação.
E aconteceu que a semana que passamos nesse balneário mexicano foi uma interminável tertúlia estética. O tema, para mal dos nossos pecados, era o militarismo na nossa triste América e não o modo como Chekov fazia fluir um conto ou a terna violência com a qual Cervantes tratava e maltratava seus personagens. Mas a Dama do Cachorrinho, o Jardim das Cerejeiras , o Quixote e uma quantidade de outros livros que nos rondavam iam se infiltrando nas conversas que acompanhavam as comilanças e as deliberações. Como não falar de Kafka e de Dante quando discutíamos romances ou as fronteiras imprecisas entre ficção e testemunho, fantasia e jornalismo, quando nos perguntávamos se cabia em nossa seleção um compêndio de fotografias? E foi nessa semana que tive inúmeras ocasiões para discutir Sófocles com Gabo, ou La Vorágine, ou as vicissitudes do thriller. Mas, ele e eu não estávamos sozinhos, e às vezes me bastava simplesmente presenciar às escaramuças de Gabo com Julio Cortázar, outro dos jurados, ou a tenacidade e finura com que ele defendia um texto diante de Pablo González ou René Zavaleta ou Theotonio dos Santos; bastava-me isso para sentir que, vagamente, ia me aproximando de García Márquez de uma maneira nova.
O que trouxe comigo, isto sim, dessa semana foi uma lembrança precisa e imorredoura.
Na primeira noite em que chegamos, enquanto bebericávamos do lado de fora de seu chalé, observei que Gabo segurava debaixo do braço um manuscrito, e não o soltava nem sequer para beber ou para servir-se de um tira-gosto; por nada neste mundo ele queria pôr essas folhas sobre a mesa. Acho que esperava que eu perguntasse do que se tratava, que misterioso e fino objeto ocultava. E não o decepcionei, perguntei. Ele sorriu de maneira quase provocadora e certamente maliciosa e me deixou espiar o título: CRÓNICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA. Quis sequestrar o romance imediatamente, esquecer os vários volumes que esperavam meu veredito e benevolência em meu quarto, mas Gabo não permitiu. "As duas mulheres mais importantes da minha vida", sentenciou, referindo-se a Mercedes, sua esposa, e a Carmen Balcells, sua agente, "declararam que se eu deixar este livro sair das minhas mãos antes de ser publicado vão me matar." Era um exagero. Julio Scherer, que ouvia com uma expressão sagaz e um tanto maliciosa nosso diálogo sentado em sua cadeira embaixo dos coqueiros, admitiu que já havia lido a crônica na noite anterior. Mas isso não me dava nenhum direito, tampouco esperança, pois nunca se soube que ninguém decente pudesse negar algo a Scherer quando ele pedia com seu habitual entusiasmo e intensidade. De maneira que decidi não insistir.
Então, para aliviar minha frustração, Gabo me presenteou com uma revelação. Contou que acabara de receber, acrescentando que foi depois que terminou de escrever o romance, uma cópia da autópsia do cadáver de Cayetano Gentile, um amigo seu que em 1951 foi assassinado a facadas e cuja desamparada sombra e destino exigiam havia décadas um depoimento intenso e inesquecível.
Gabo se inclinou para a frente e baixou a voz, como se fosse me confidenciar um segredo extraordinário.
"O único ferimento mortal", disse García Márquez, "encontrado no cadáver foi nas costas, justamente na terceira vértebra lombar, e lhe perfurou o rim. E, sabe de uma coisa? Foi ali, exatamente nesse ponto, que eu, desconhecendo em absoluto esse detalhe, imaginei a lesão do meu personagem Santiago Nasar; pus uma chaga na minha ficção que imitou, recordou e antecipou a exatidão do real."
Os olhos de Gabo brilhavam como os de uma criança maravilhada, como devem ter brilhado os olhos de Bernal Díaz del Castillo quando, não muito distante do local em que eu conversava com meu amigo, viu a capital dos astecas e declarou que o lembrava das cidades fictícias de Amadis de Gaula. E meus olhos também brilhavam por essa viagem instantânea até as origens, pela vertigem que experimentava ao poder aproximar-me da maneira como García Márquez criava suas obras. Para ele, como para nossa América, tudo era ao mesmo tempo verídico e fabuloso, história e invenção, dor e mito.
Então, nossos olhos brilharam simultaneamente, os meus e os dele, por compartilharmos da alegria de quem descobre um rio imenso no instante obscuro em que nasce da fonte mais remota de uma montanha. Porque o arcanjo Gabriel me presenteava com a certeza de que, depois de tudo, talvez não estivéssemos tão sós, se podíamos imaginar a praga da nossa violência e a praga da nossa desventura de uma maneira tão minuciosa, excessiva e perfeita.
Uma certeza que continua e continuará nos presenteando uma América agora de luto./TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA