26 de abril de 2014 | 17h 16
Ariel Dorfman - O Estado de S. Paulo
Nem só de literatura são feitas as lembranças de Gabo, agora que o seu corpo já não está entre nós. Acredito que nos sete anos que passei, desde 1973, conspirando com ele, graças ao exílio e a Pinochet, juntando-me a ele, almoçando em sua casa em Barcelona e jantando no Pedregal de San Ángel, sentados nos cafés de Paris e de Roma e até, acho, certa vez, em Estocolmo, sempre conspirando, conjurando, tramando, sempre em busca da maneira mais rápida e imaginativa para acabarmos com as ditaduras que assolavam nossa América Latina.
Thomas Bravo / Reuters
Gabriel García Márquez faleceu em 17 de abril
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Que mais poderia desejar um jovem escritor latino-americano, como eu era naquela época, senão passar horas e horas na companhia do autor de Cem Anos de Solidão? Era possível pedir algo mais, em meio àquele caudal de encontros, Gabo abrindo suas agendas de contatos, Gabo atendendo ao telefone nas madrugadas e Gabo entrevistando figuras da resistência, sempre disposto a intervir para salvar uma vida, transpor uma porta, escrever um artigo? Era possível pedir mais?
Eu não tinha sequer me colocado a questão quando o destino me ofereceu, em agosto de 1980, a oportunidade de compartilhar com Gabo e vários outros escritores uma semana inteira em Cocoyoc como jurados de um concurso literário sobre militarismo na América Latina. Digo que o destino me proporcionou essa graça, porque é uma delícia narrar a própria vida com uma frase típica do próprio García Márquez, mas a verdade é que o convite não veio do destino e sim de Julio Scherer, o lendário diretor da revistaProceso. Assim que recebi o convite, tive consciência do que me fizera falta ao longo desses sete anos anteriores, com a revelação de que, durante tantas sessões insubstituíveis e amáveis com Gabo, estimulados pela urgência da política, quase nunca havíamos tido tempo de falar sobre literatura, daquelas obras que, em tempos mais normais, teriam sido tema cotidiano e incessante de conversação.
E aconteceu que a semana que passamos nesse balneário mexicano foi uma interminável tertúlia estética. O tema, para mal dos nossos pecados, era o militarismo na nossa triste América e não o modo como Chekov fazia fluir um conto ou a terna violência com a qual Cervantes tratava e maltratava seus personagens. Mas a Dama do Cachorrinho, o Jardim das Cerejeiras , o Quixote e uma quantidade de outros livros que nos rondavam iam se infiltrando nas conversas que acompanhavam as comilanças e as deliberações. Como não falar de Kafka e de Dante quando discutíamos romances ou as fronteiras imprecisas entre ficção e testemunho, fantasia e jornalismo, quando nos perguntávamos se cabia em nossa seleção um compêndio de fotografias? E foi nessa semana que tive inúmeras ocasiões para discutir Sófocles com Gabo, ou La Vorágine, ou as vicissitudes do thriller. Mas, ele e eu não estávamos sozinhos, e às vezes me bastava simplesmente presenciar às escaramuças de Gabo com Julio Cortázar, outro dos jurados, ou a tenacidade e finura com que ele defendia um texto diante de Pablo González ou René Zavaleta ou Theotonio dos Santos; bastava-me isso para sentir que, vagamente, ia me aproximando de García Márquez de uma maneira nova.
O que trouxe comigo, isto sim, dessa semana foi uma lembrança precisa e imorredoura.
Na primeira noite em que chegamos, enquanto bebericávamos do lado de fora de seu chalé, observei que Gabo segurava debaixo do braço um manuscrito, e não o soltava nem sequer para beber ou para servir-se de um tira-gosto; por nada neste mundo ele queria pôr essas folhas sobre a mesa. Acho que esperava que eu perguntasse do que se tratava, que misterioso e fino objeto ocultava. E não o decepcionei, perguntei. Ele sorriu de maneira quase provocadora e certamente maliciosa e me deixou espiar o título: CRÓNICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA. Quis sequestrar o romance imediatamente, esquecer os vários volumes que esperavam meu veredito e benevolência em meu quarto, mas Gabo não permitiu. "As duas mulheres mais importantes da minha vida", sentenciou, referindo-se a Mercedes, sua esposa, e a Carmen Balcells, sua agente, "declararam que se eu deixar este livro sair das minhas mãos antes de ser publicado vão me matar." Era um exagero. Julio Scherer, que ouvia com uma expressão sagaz e um tanto maliciosa nosso diálogo sentado em sua cadeira embaixo dos coqueiros, admitiu que já havia lido a crônica na noite anterior. Mas isso não me dava nenhum direito, tampouco esperança, pois nunca se soube que ninguém decente pudesse negar algo a Scherer quando ele pedia com seu habitual entusiasmo e intensidade. De maneira que decidi não insistir.
Então, para aliviar minha frustração, Gabo me presenteou com uma revelação. Contou que acabara de receber, acrescentando que foi depois que terminou de escrever o romance, uma cópia da autópsia do cadáver de Cayetano Gentile, um amigo seu que em 1951 foi assassinado a facadas e cuja desamparada sombra e destino exigiam havia décadas um depoimento intenso e inesquecível.
Gabo se inclinou para a frente e baixou a voz, como se fosse me confidenciar um segredo extraordinário.
"O único ferimento mortal", disse García Márquez, "encontrado no cadáver foi nas costas, justamente na terceira vértebra lombar, e lhe perfurou o rim. E, sabe de uma coisa? Foi ali, exatamente nesse ponto, que eu, desconhecendo em absoluto esse detalhe, imaginei a lesão do meu personagem Santiago Nasar; pus uma chaga na minha ficção que imitou, recordou e antecipou a exatidão do real."
Os olhos de Gabo brilhavam como os de uma criança maravilhada, como devem ter brilhado os olhos de Bernal Díaz del Castillo quando, não muito distante do local em que eu conversava com meu amigo, viu a capital dos astecas e declarou que o lembrava das cidades fictícias de Amadis de Gaula. E meus olhos também brilhavam por essa viagem instantânea até as origens, pela vertigem que experimentava ao poder aproximar-me da maneira como García Márquez criava suas obras. Para ele, como para nossa América, tudo era ao mesmo tempo verídico e fabuloso, história e invenção, dor e mito.
Então, nossos olhos brilharam simultaneamente, os meus e os dele, por compartilharmos da alegria de quem descobre um rio imenso no instante obscuro em que nasce da fonte mais remota de uma montanha. Porque o arcanjo Gabriel me presenteava com a certeza de que, depois de tudo, talvez não estivéssemos tão sós, se podíamos imaginar a praga da nossa violência e a praga da nossa desventura de uma maneira tão minuciosa, excessiva e perfeita.
Uma certeza que continua e continuará nos presenteando uma América agora de luto./TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
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