sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Uma Paris de esgoto

GESNER OLIVEIRA E FERNANDO S. MARCATO

Indústrias que não investem no tratamento de efluentes obtêm vantagem competitiva indevida perante concorrentes com políticas sustentáveis
Ainda que 100% do esgoto doméstico da Grande São Paulo fosse tratado devidamente, o descarte clandestino de efluente industrial traria à região poluição equivalente àquela que toda a população da Região Metropolitana de Paris (12 milhões de habitantes) gera com o seu esgoto doméstico.
Recente estudo elaborado pelo Grupo de Economia da Infraestrutura & Soluções Ambientais da Fundação Getulio Vargas indica que o total de efluentes líquidos industriais descartados na Região Metropolitana de São Paulo é de 2,7m3/s ou 9,7 milhões de litros a cada hora. É volume suficiente para encher em um dia aproximadamente dois lagos do parque Ibirapuera.
O descarte ocorre de duas formas. A primeira delas está associada ao efluente coletado por redes públicas, mas que não é tratado. Aproximadamente 50% dos esgotos residencial e industrial coletados ainda não são tratados, em que pese o avanço ocorrido nos últimos anos graças ao Projeto Tietê, conduzido pela Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), e à ampliação do tratamento de esgotos em Guarulhos (Bonsucesso, São João e Várzea do Palácio).
Essa fonte representa, porém, aproximadamente 10% (0,28m3/s) do volume total lançado. Os outros 90% são ilegais, diretamente lançados pelos geradores de efluentes na natureza sem qualquer tratamento ou com tratamento insuficiente.
Além dos prejuízos causados à saúde e ao ambiente, a poluição de mananciais com efluentes de alta carga poluidora encarece os custos de tratamento e, em alguns casos, inviabiliza sua captação para fins de produção e distribuição de água potável. Esses impactos são particularmente importantes na região metropolitana de São Paulo, onde a disponibilidade hídrica é de 201 mil litros/habitante/ano --um décimo do volume considerado adequada pelas Nações Unidas.
A razão que leva certas indústrias a descartar irregularmente seus efluentes tem natureza econômica. O lançamento desses efluentes em corpos hídricos ou na rede pública de esgotos deve atender a determinados padrões de qualidade. Consequentemente, os efluentes devem passar por pré-tratamento ou ser enviados a estações especializadas em tratamento de efluente industrial, o que representa custo adicional.
Indústrias que não investem no tratamento de seus efluentes obtêm vantagem competitiva indevida perante concorrentes que desenvolvem políticas sustentáveis de disposição adequada de seus resíduos.
Para reverter essa situação, é necessário um conjunto de ações que envolvam os setores público e privado. A primeira delas é o fortalecimento da fiscalização e aumento do efetivo da Cetesb (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental) na aplicação de multas.
Também é importante a mobilização da sociedade civil e o estabelecimento de protocolo de cooperação entre Cetesb e organizações não governamentais para auxiliar no monitoramento do descarte irregular. Para tanto, seria oportuno replicar o modelo de sucesso de mobilização promovido na década de 1990 pela mídia e pela sociedade civil que levou o governo do Estado a criar o projeto de despoluição do Tietê.
Outra providência é a de condicionar a renovação de alvarás e autorizações à conformidade do lançamento de efluentes. Teria grande impacto a criação de um selo de lançamento sustentável atribuído anualmente às empresas.
Por fim, se faz necessário o engajamento do Ministério Público no papel de fiscalização e denúncia. Seria fundamental que o importante trabalho feito pelo órgão na regularização de aterros sanitários fosse estendido à regularização do lançamento dos efluentes industriais.

FIM À PENA DE MORTE

A ditadura que sobreveio ao golpe de 1964 produziu 426 mortos e desaparecidos. A maioria das mortes "oficiais" foi justificada por um artifício do regime militar: uma medida administrativa designada auto de resistência, ou resistência seguida de morte. Era o salvo-conduto para que policiais matassem opositores: o simples registro de um auto de resistência relegava a investigação às gavetas.
Cinquenta anos depois, o ato administrativo continua intocado e é considerado legítimo por autoridades policiais e judiciárias. Hoje, na mira da arma policial está, em maioria, uma população civil jovem, negra e sem antecedentes criminais.
O auto de resistência é um entulho da ditadura cuja motivação, antes política, passou a ter viés social. Em abril de 2008, ao justificar o assassinato de nove pessoas pela Polícia Militar na favela de Vila Cruzeiro (Rio), o coronel Marcus Jardim assim expressou a filosofia que norteia esses assassinatos: "A PM é o melhor inseticida social". A ideia que legitima a ação de maus policiais é a de que pobreza, cor da pele e criminalidade são sinônimos. A sociedade incorporou esses preconceitos --ou os preconceitos da sociedade contaminaram as polícias?
O relatório "Segurança: Tráfico e Milícia no Rio de Janeiro" examinou 12.560 autos de resistência na década de 1990 e concluiu: todas as mortes em ações policiais ocorreram nas favelas; 65% dos assassinados levaram pelo menos um tiro nas costas ou na cabeça, o que permite concluir que foram sumariamente executados. Os mortos foram sentenciados num julgamento em que o policial é o juiz e o carrasco.
Entre janeiro de 2010 e junho de 2012, 2.882 pessoas foram mortas pela polícia no Rio, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e São Paulo, numa média de três por dia --no ano passado, chegou a cinco.
Os Estados Unidos, no mesmo período, tiveram 410 desses casos. Em Nova York, a polícia atirou em 24 pessoas e matou nove em 2011. Naquele ano, o Rio teve 283 mortos por policiais; em São Paulo, 242.
Em 2012, eu e os deputados Fabio Trad (PMDB-MS), Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) e Miro Teixeira (Pros-RJ) apresentamos à Câmara o projeto de lei nº 4.471. Ele acaba com o auto de resistência, obriga a preservação da cena do crime, a perícia imediata e a coleta de provas e define a abertura de inquérito. Fica vetado o transporte das vítimas em "confronto" com os agentes, que devem chamar socorro especializado.
O Estado de São Paulo, no ano passado, tomou medidas para coibir a violência policial, em resposta à elevação constante das mortes em autos de resistência. Em 2012, o Estado registrou 546 mortos, contra 439 em 2011.
Relatório da ONG "Human Right Watch" registrou que, em 2012, 95% das pessoas feridas em confronto e transportadas por policiais morreram no trajeto ou no hospital. No início de 2013, o governo proibiu o registro dos autos de resistência e impediu que os policiais socorressem as suas vítimas. Em um ano, foi registrada queda de 39% dessas mortes no Estado e 47% na capital.
A aprovação do projeto de lei estenderá as medidas tomadas por São Paulo ao país. Será um tiro de morte em um dos mais perversos entulhos que o país carrega da ditadura, a licença para matar.

PETROBRAS BATE RECORDE DE PRODUÇÃO NO PRÉ-SAL ( Brasil 247)