segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

No fio da navalha ( sobre a polícia brasileira)


'Problema maior da polícia brasileira é a mentalidade militar de reagir à violência com violência', diz estudioso americano

01 de fevereiro de 2014 | 16h 46

Lúcia Guimarães - O Estado de S. Paulo
A conduta do Departamento de Polícia de Nova York, o NYPD, foi um tema central da campanha política de 2013 e ajudou a eleger o prefeito Bill de Blasio. Não foi, portanto, surpresa a decisão que De Blasio anunciou na quinta-feira: a cidade vai indicar um monitor para o NYPD e dar fim à disputa judicial de 14 anos sobre a prática de stop and frisk, deter e revistar, que uma juíza considerou altamente discriminatória contra minorias. O novo prefeito cumpriu uma promessa de campanha e espera autorização judicial para chegar a um acordo com os nova-iorquinos que processaram a cidade por se sentir intimidados pela polícia.
Nos EUA, o erro mais frequente é o motivado por discriminação - Jason Redmond/Reuters
Jason Redmond/Reuters
Nos EUA, o erro mais frequente é o motivado por discriminação
Desde o 11 de Setembro, a questão do policiamento em Nova York pode se confunde com o terrorismo e serve de licença para suspender críticas aos excessos. "Terrorismo é a palavra mágica", diz Paul Chevigny, professor emérito da Escola de Direito da New York University. Ele é autor, entre outros, do clássico Poder da Polícia, Abusos Policiais em Nova York (1969). A pedido da organização Human Rights Watch, Chevigny produziu o estudo Abusos Policiais no Brasil (1990) e, em 1995, publicou O Fio da Navalha - Violência Policial nas Américas, em que dedica um capítulo à polícia de São Paulo. Chevigny acha que a polícia de Nova York, embora cometa erros e injustiças, é competente para lidar com multidões, uma experiência que acumulou a partir dos protestos contra a Guerra do Vietnã, na década de 1960. "Quando querem", diz ele, "agem com eficiência e correção." Na entrevista a seguir ele faz também uma avaliação das polícias brasileiras, que conhece de perto.
O sr. está surpreso com as manifestações no Brasil, já que não visita o País desde os anos 1990?
Não. O que temos é a clássica revolução das expectativas elevadas. O PT fez um bom trabalho, aumentando o grau de consciência dos brasileiros sobre seu direito de protestar contra o governo e eles não esperam ser reprimidos. O público está se comportando diante da desigualdade como se esperava. O motivo dos protestos do ano passado, contra o preço das passagens de ônibus, é típico. São pequenas questões econômicas como essas que servem de impulso para grandes protestos. Eu li que agentes da polícia teriam se infiltrado nas manifestações. Considero isso grave. Mas se o Fabrício Chaves, baleado na semana passada, enfrentou policiais com um canivete, a polícia não cometeu crime ao atirar nele, ainda que possa ter agido de maneira incompetente.
Como se policia multidões sem violência?
Sou um libertário, defensor dos direitos civis. Acredito que a polícia deva ser mais competente na coleta de informações, na inteligência. Monitorar uma multidão, tirar fotos, se forem autorizadas, identificar quem está se misturando a um protesto para se aproveitar e começar um quebra-quebra. E, da próxima vez, a polícia pode isolar os violentos. Mas isso é trabalho intenso. Não dá para policiar uma manifestação, se surpreender com a violência e sair prendendo indiscriminadamente. O protesto seguinte vai ser pior, os manifestantes vão ter mais raiva da polícia e se tornar alvo da violência.
Seria mais fácil municipalizar a polícia?
Não acho que a questão mais importante seja a polícia ser ou não controlada pelo governo do Estado. É ser militar. É a mentalidade militar, de reagir à violência com violência, ou como eu tanto ouvia, "acabar com os vagabundos". Lembro das manifestações contra o presidente Collor, as primeiras em larga escala desde o fim da ditadura. Foram pacíficas. Eu estava acompanhado de um ex-oficial da polícia numa delas e ele ficou de queixo caído: "Nunca vi nada parecido no Brasil". Havia um clima de festa e unidade contra o presidente.
O sr. testemunhou tolerância social à violência da polícia de São Paulo?
Esse é o problema. Parte da população espera que o controle social seja feito através da violência. Quando fazia pesquisa no Brasil, perguntava: "E o problema da violência policial?" Cientistas sociais respondiam: "Ninguém se importa". Violência policial não é um tema de protesto social no Brasil. Quantas vezes ouvi "ladrão tem que morrer". Apesar da democracia, a noção da sociedade liberal não parece se estender ao policiamento. Então, quando a polícia mata a sociedade encara isso como um preço a pagar. É absurdo. O dever da polícia é proteger e salvar vidas, não ser dura. E junte-se a isso a desconfiança de que a lei não se aplica a todos. Quando trabalhei no Brasil, a polícia sabia que eu era adversário dela, estava lá para investigar seu trabalho e eles me tratavam muito bem. Afinal, eu era um "doutor."
Por que os americanos querem bem, de maneira geral, às suas polícias?
Os casos de violência grave não são tão comuns. O fato de que são polícias municipais faz com que a população pense mais no policial como "um de nós", não um agente de um Estado distante. Mas aqui há divisões. A polícia de Nova York é bem mais apreciada do que a de Los Angeles. Você vê um policial nova-iorquino falando com uma criança, ele é afetuoso. Eu não acho que policiais americanos, a não ser o desequilibrado, uma exceção, acreditem que cabe a eles matar um bandido só porque ele é bandido. Eles acreditam que seu papel seja proteger a população e só atirar sob ameaça. A cultura policial que vi no Brasil, a do "pode atirar, esse cara não vale nada", não prevalece aqui. A polícia nos Estados Unidos mata porque a ação é justificada ou porque cometeu um erro sério de avaliação: o negro estava ameaçando a mulher branca. E depois descobrem que o sujeito nem estava armado. É o erro motivado por discriminação. Isso acontece, sim, com frequência.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Aprender a aprender, por Celso Ming - O Estado de S.Paulo


31 de janeiro de 2014 | 2h 21


Mais relevante do que a nova queda no desemprego, desta vez para o nível recorde de 4,3% da população ativa, é a informação de que a participação dos trabalhadores na indústria em 2013 caiu para 15,8%. Dez anos antes, eram 17,6%. (Nesse segmento estão incluídos também os empregados na indústria extrativa, distribuição de eletricidade, água e gás.)
Isso poderia ser tomado como mais uma indicação de desindustrialização. É mais consequência do forte crescimento do setor de serviços, que hoje pesa quase 70% no PIB. Em 2003, o subsetor de serviços prestados às empresas (mais aluguéis, atividades imobiliárias e intermediação financeira) empregava 13,4% da mão de obra. Hoje já são 16,2%.
O principal recado passado por essas estatísticas é o de que a indústria de transformação e também os sindicatos dos trabalhadores da área estão perdendo a capacidade de pressão, na proporção em que o setor de serviços vai absorvendo cada vez mais a força de trabalho: "A Volks vai dispensar 4 mil antes ocupados com a linha de montagem da Kombi? Ora, não é uma tragédia. O resto da economia absorverá essa gente...".
Além disso, o mais baixo índice de desocupação da série histórica do IBGE reafirma o diagnóstico do Banco Central de que o mercado de trabalho continua atuando como importante fator de aumento de custos para o setor produtivo e, nessas condições, de foco de inflação.
Economistas se perguntam o que pode ser feito para aumentar a produtividade do trabalho. As soluções definitivas são de longo prazo: implicam melhoria no nível da educação e do treinamento.
Mas há um fator cujo resultado vem sendo pouco avaliado, que é o emprego crescente de Tecnologia da Informação, com sua enorme bateria de recursos, que começa no chip, passa pelos grandes sistemas operacionais e alcança hoje a impressão em terceira dimensão (3D).
A simples transmissão de informações instantâneas dispensa recursos de todos os níveis: instalações, máquinas, almoxarifados, estoques, capital de giro e, inclusive, mão de obra. Mas são recursos que encurtam os prazos, reduzem os erros e facilitam o planejamento.
Com mais Tecnologia da Informação à sua disposição, a mão de obra, mesmo a não especializada, se torna mais eficiente e, portanto, mais produtiva. O caixa do supermercado ou o auxiliar de funilaria podem ser hoje muito mais eficientes do que trabalhadores de sua idade há apenas dez anos.
Na última terça-feira, em artigo no Estadão, o especialista em Economia do Trabalho José Pastore advertiu para impressionantes mudanças no setor de logística que começam a surgir com o emprego intensivo de drones (pequenos aviões teledirigidos) na distribuição. Em Israel, leituras automáticas a distância de consumo de água e eletricidade são feitas há anos por meio de drones.
É claro, o aumento da produtividade da mão de obra depende substancialmente da qualidade da educação e do ensino. No entanto, essas novidades sugerem que, mais do que simplesmente enfiar informações na cabeça das pessoas, o maior desafio consiste em levar a população a aprender a aprender.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Para que serve a celebridade?


ROBERTO DAMATTA
Publicado: 
Quero começar com uma nota sobre a celebrização como um problema e como um valor. A ultima besteira aprontada pelo jovem cantor Justin Bieber, que minhas netas mais novas idolatram (ou idolatravam), ajuda e, intrigantemente, coincide com o que elaborei na semana passada sobre esse tema.
Uma sociologia da modernidade avançada, globalizada e marcada pelo hiperconsumo não pode deixar de meditar sobre a celebrização e o sucesso como paradoxos. Pois como distinguir e buscar a fama que inevitavelmente leva as pessoas para cima ou para baixo numa sociedade fundada num individualismo igualitário que horizontaliza?
Deste ponto de vista, a celebrização traz à tona a hierarquia (ou um centro desejado) como um valor implícito ou até mesmo envergonhado num sistema que, idealizadamente, se pensa como descentralizado porque é feito de iguais. A celebrização revela também como o sistema oscila entre a ênfase no individual (ou nas suas peças ou partes) e em como essas partes se relacionam entre si formando um tecido ou uma totalidade. A regra é salientar a parte, mas a celebrização não nos deixa esquecer o todo. Talvez essa seja sua principal função e ela está contida na pergunta: por que ele (ou ela) e não eu?
Não se trata, como bem viu Tocqueville, de achar que o regime igualitário suprima a excelência ou a singularidade extraordinária que dimensionam o ideal da aristocracia; mas de ter suficiente lucidez para compreender que a igualdade não suprime a gradação; e que a ênfase no individuo ou na parte não acabam com o todo. O numero um em alguma esfera das artes não liquida os elos entre as pessoas. As coletividades humanas são reconhecidamente humanas, justamente porque preservam essas dimensões.
Há o momento da celebrização e o momento em que ela, como o Justin Bieber condenado, revela o jovenzinho banal, igualzinho aos nossos filhos e netos.
Num mundo igualitário, o processo de celebrização legitima a crença de que todos são iguais e alguns se diferenciam pelo talento. É o caso especifico do esporte e das artes musicais e cênicas, mas isso não exclui paternalismos, favores, preferências e familismos que marcam todos os campos, sobretudo o do poder.
O que chama a atenção hoje em dia é o acasalamento às vezes patológico entre uma hiperdistinção (caso de alguns astros da música popular e do esporte) e uma espécie de autoflagelação por meio do uso abusivo da liberdade. Um menino que fica milionário aos 15 anos e vive numa sociedade que lhe garante o espaço de ser feliz a seu modo corre o risco de ser engolido e, eventualmente, morto pelo seu tão desejado sucesso!
Como naquela famosa capa da “New Yorker”, comentada nesta coluna, na qual os Oscars comiam como sobremesa os artistas premiados. Afinal, se os cavalos não são domados, eles acabam nos guiando.
Para que serve então a celebridade? Ela agencia uma diferenciação num mundo que se deseja construído de iguais. Os seus perigos são claros: toda pessoa célebre tem uma superespecialização que se confunde com um dom. O famoso é a tela na qual as pessoas comuns projetam os que lhes falta. Os mitos das celebridades insistem em dizer como elas foram pessoas simples e pobres antes de obterem a tão desejada fama. O astro é, entre outras coisas, um especialista no que faz e um modelo do que faz. Daí a tendência a confundir o seu papel público com a sua intimidade. A suposição de uma excepcionalidade em tudo se desfaz e decepciona quando ocorre um desvio entre a figura que aparece no palco e a figura que surge — bêbado, burro, arrogante, desonesto, corrupto e, acima de tudo, infeliz como todo mundo — na vida real. Isso é acentuado pela nossa busca de coerência, a qual inventou sua tecnologia.
Do outro lado do universo das celebrizações para cima, há o conjunto de empregados e de inferiores que congrega as “celebridades para baixo”. Os garçons, engraxates, motoristas, porteiros e empregados em geral que fazem a nossa comida, lavam a nossa roupa, vigiam nosso lar e nos protegem do mundo. Esses fornecedores de amor, atenção e carinho preenchem um espaço que não ocupamos e passam a impressão de que vivem apenas para o que fazem. Para muitos, ver a empregada namorando é tão surpreendente quanto descobrir que a sua celebridade favorita tem um péssimo caráter.
Esse time de empregados: secretários, assessores e subdiretores que, na política, desculpam-se pelos seus superiores quando a Fifa ou Comité Olímpico Internacional ou uma chuvarada revela como nada está pronto e há um atraso crônico e insuportável na infraestrutura nacional.
No Brasil, as autoridades não pedem desculpas. No máximo, elas dãodesculpas por meio dos seus “peles” ou asseclas. As obras que jamais ficam prontas em tempo e o cara de pau ministro diz que as empreiteiras precisam ser mais responsáveis. Mas quem contrata essas empresas?
Se as celebridades não podem ser escusadas dos seus delitos, o mesmo deve ocorrer com a autoridade que, na maioria dos casos, lamentavelmente torna-se uma celebridade pelo que não fez; ou, pior que isso, pela sua inestimável contribuição ao atraso do país.