'Problema maior da polícia brasileira é a mentalidade militar de reagir à violência com violência', diz estudioso americano
01 de fevereiro de 2014 | 16h 46
Lúcia Guimarães - O Estado de S. Paulo
A conduta do Departamento de Polícia de Nova York, o NYPD, foi um tema central da campanha política de 2013 e ajudou a eleger o prefeito Bill de Blasio. Não foi, portanto, surpresa a decisão que De Blasio anunciou na quinta-feira: a cidade vai indicar um monitor para o NYPD e dar fim à disputa judicial de 14 anos sobre a prática de stop and frisk, deter e revistar, que uma juíza considerou altamente discriminatória contra minorias. O novo prefeito cumpriu uma promessa de campanha e espera autorização judicial para chegar a um acordo com os nova-iorquinos que processaram a cidade por se sentir intimidados pela polícia.
Jason Redmond/Reuters
Nos EUA, o erro mais frequente é o motivado por discriminação
Desde o 11 de Setembro, a questão do policiamento em Nova York pode se confunde com o terrorismo e serve de licença para suspender críticas aos excessos. "Terrorismo é a palavra mágica", diz Paul Chevigny, professor emérito da Escola de Direito da New York University. Ele é autor, entre outros, do clássico Poder da Polícia, Abusos Policiais em Nova York (1969). A pedido da organização Human Rights Watch, Chevigny produziu o estudo Abusos Policiais no Brasil (1990) e, em 1995, publicou O Fio da Navalha - Violência Policial nas Américas, em que dedica um capítulo à polícia de São Paulo. Chevigny acha que a polícia de Nova York, embora cometa erros e injustiças, é competente para lidar com multidões, uma experiência que acumulou a partir dos protestos contra a Guerra do Vietnã, na década de 1960. "Quando querem", diz ele, "agem com eficiência e correção." Na entrevista a seguir ele faz também uma avaliação das polícias brasileiras, que conhece de perto.
O sr. está surpreso com as manifestações no Brasil, já que não visita o País desde os anos 1990?
Não. O que temos é a clássica revolução das expectativas elevadas. O PT fez um bom trabalho, aumentando o grau de consciência dos brasileiros sobre seu direito de protestar contra o governo e eles não esperam ser reprimidos. O público está se comportando diante da desigualdade como se esperava. O motivo dos protestos do ano passado, contra o preço das passagens de ônibus, é típico. São pequenas questões econômicas como essas que servem de impulso para grandes protestos. Eu li que agentes da polícia teriam se infiltrado nas manifestações. Considero isso grave. Mas se o Fabrício Chaves, baleado na semana passada, enfrentou policiais com um canivete, a polícia não cometeu crime ao atirar nele, ainda que possa ter agido de maneira incompetente.
Como se policia multidões sem violência?
Sou um libertário, defensor dos direitos civis. Acredito que a polícia deva ser mais competente na coleta de informações, na inteligência. Monitorar uma multidão, tirar fotos, se forem autorizadas, identificar quem está se misturando a um protesto para se aproveitar e começar um quebra-quebra. E, da próxima vez, a polícia pode isolar os violentos. Mas isso é trabalho intenso. Não dá para policiar uma manifestação, se surpreender com a violência e sair prendendo indiscriminadamente. O protesto seguinte vai ser pior, os manifestantes vão ter mais raiva da polícia e se tornar alvo da violência.
Seria mais fácil municipalizar a polícia?
Não acho que a questão mais importante seja a polícia ser ou não controlada pelo governo do Estado. É ser militar. É a mentalidade militar, de reagir à violência com violência, ou como eu tanto ouvia, "acabar com os vagabundos". Lembro das manifestações contra o presidente Collor, as primeiras em larga escala desde o fim da ditadura. Foram pacíficas. Eu estava acompanhado de um ex-oficial da polícia numa delas e ele ficou de queixo caído: "Nunca vi nada parecido no Brasil". Havia um clima de festa e unidade contra o presidente.
O sr. testemunhou tolerância social à violência da polícia de São Paulo?
Esse é o problema. Parte da população espera que o controle social seja feito através da violência. Quando fazia pesquisa no Brasil, perguntava: "E o problema da violência policial?" Cientistas sociais respondiam: "Ninguém se importa". Violência policial não é um tema de protesto social no Brasil. Quantas vezes ouvi "ladrão tem que morrer". Apesar da democracia, a noção da sociedade liberal não parece se estender ao policiamento. Então, quando a polícia mata a sociedade encara isso como um preço a pagar. É absurdo. O dever da polícia é proteger e salvar vidas, não ser dura. E junte-se a isso a desconfiança de que a lei não se aplica a todos. Quando trabalhei no Brasil, a polícia sabia que eu era adversário dela, estava lá para investigar seu trabalho e eles me tratavam muito bem. Afinal, eu era um "doutor."
Por que os americanos querem bem, de maneira geral, às suas polícias?
Os casos de violência grave não são tão comuns. O fato de que são polícias municipais faz com que a população pense mais no policial como "um de nós", não um agente de um Estado distante. Mas aqui há divisões. A polícia de Nova York é bem mais apreciada do que a de Los Angeles. Você vê um policial nova-iorquino falando com uma criança, ele é afetuoso. Eu não acho que policiais americanos, a não ser o desequilibrado, uma exceção, acreditem que cabe a eles matar um bandido só porque ele é bandido. Eles acreditam que seu papel seja proteger a população e só atirar sob ameaça. A cultura policial que vi no Brasil, a do "pode atirar, esse cara não vale nada", não prevalece aqui. A polícia nos Estados Unidos mata porque a ação é justificada ou porque cometeu um erro sério de avaliação: o negro estava ameaçando a mulher branca. E depois descobrem que o sujeito nem estava armado. É o erro motivado por discriminação. Isso acontece, sim, com frequência.
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