domingo, 6 de outubro de 2013

Declínio do império antiamericano


29 de setembro de 2013 | 2h 18

DAWISSON BELÉM LOPES, DAWISSON BELÉM LOPES É PROFESSOR DE , POLÍTICA INTERNACIONAL, COMPARADA , NA UFMG, AUTOR DE POLÍTICA EXTERNA , E DEMOCRACIA NO BRASIL: ENSAIO DE , INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA (UNESP) - O Estado de S.Paulo
Como não acontece usualmente, o discurso feito pela presidente Dilma Rousseff na terça-feira, por ocasião da abertura da 68ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, chamou atenção. Não tanto pelo conteúdo, já sabido de antemão, e sim pela forma, contundente e frontal, de interpelação ao governo dos Estados Unidos - acusado de praticar espionagem eletrônica e, portanto, de violar os direitos humanos dos indivíduos e as leis internacionais que regem o relacionamento dos Estados.
Foi o suficiente, também, para desencavar velhos adjetivos que, com facilidade, têm sido pespegados na política externa do atual governo brasileiro, liderado pelo Partido dos Trabalhadores. Seria, segundo seus críticos mais contumazes, uma condução "ideológica", "terceiro-mundista" e "bolivariana" - logo, "antiamericanista" - dos assuntos internacionais do País. A versão, de tantas vezes repetida, ganhou o status de premissa, de ponto de partida para as análises mais respeitáveis.
Mas essa não foi a primeira vez que o Brasil pôs o dedo em riste e divergiu, abertamente, de seu coirmão do norte. E, dificilmente, terá sido a última. A rigor, desde o Barão do Rio Branco, considerado pela literatura o artífice da nossa "opção americanista" (em detrimento da histórica proximidade que mantínhamos com o continente europeu no século 19), colecionam-se momentos em que os interesses dos dois países - Brasil e Estados Unidos - não coincidiram.
Já no longínquo ano de 1907 o jurista Rui Barbosa, designado plenipotenciário brasileiro para uma grande conferência multilateral na Holanda, fez-se notar por sua postura altiva e, sobretudo, combativa das propostas então defendidas pela delegação estadunidense - daí se originando o apelido "Águia de Haia". Durante os primeiros anos da 2ª Guerra Mundial, entre 1939 e 1942, a política externa brasileira, sob a presidência de Getúlio Vargas, acomodou flertes explícitos com a Alemanha nazista - o que poderia nos levar ao confronto armado com os EUA. A declaração de guerra ao Eixo, contudo, sepultou dúvidas sobre a nossa lealdade hemisférica. Significava a volta ao velho ninho do americanismo.
Eurico Gaspar Dutra foi, provavelmente, ao longo de toda a história republicana da política exterior, o presidente que mais resolutamente alinhou o Brasil às posições estadunidenses. Mais até do que o marechal Castelo Branco (cuja diplomacia americanista foi chamada, didaticamente, de "a correção de rumos"). O mandato de Dutra (1946-1951) correspondeu ao que o historiador Gerson Moura batizou de "o alinhamento sem recompensa", uma vez que, embora o Brasil tivesse apoiado os Estados Unidos na guerra (a partir de 1942) e seguisse associado àquele país, pouco recebeu de concreto em contrapartida: não veio o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, tampouco um Plano Marshall para a América Latina.
Dessa maneira, era natural que todos os sucessores de Dutra se afastassem de seu padrão de americanismo, percebido como extremado e objetivamente malsucedido. Na exposição dos motivos para o aumento das divergências entre Brasil e EUA, a partir da segunda metade do século 20, ganhou força a narrativa de que o crescimento econômico e demográfico brasileiro, associado à urbanização e aos investimentos militares, teria tornado o País mais confiante para, gradualmente, distanciar-se do gigante do norte.
Todavia, não foi o mero acúmulo de recursos de poder que levou ao distanciamento brasileiro das posições estadunidenses. Deu-se, concomitantemente, o incremento de nossa capacidade de formular a própria norma de conduta para a política internacional. Ou, em chave diplomática, o País "autonomizou-se", progressivamente, em relação ao resto do mundo.
Senão, vejamos: em trabalho acadêmico recente, o cientista político Octavio Amorim Neto identificou, a partir da observação das votações na ONU, que as políticas externas de dois reputados americanistas da Nova República - FHC e Collor de Mello - eram consistentemente menos alinhadas às dos governos estadunidenses do que aquelas conduzidas por outros dois presidentes, abertamente comprometidos com ideais de esquerda na política externa e, alegadamente, "antiamericanistas" - Jânio Quadros e João Goulart.
A conclusão que se segue é imediata. O alinhamento diplomático aos Estados Unidos há que ser compreendido não como essência ou ideologia perene da diplomacia nacional, mas como uma escolha pragmática dos formuladores da inserção internacional brasileira, passível de reavaliação contínua, conforme o cálculo estratégico dos homens de Estado de um determinado momento histórico. É por isso que, à medida que passamos a caminhar com as próprias pernas, a tendência é convergir menos, em questões substantivas, com este ou aquele país em específico.
Assim, o processo de autoafirmação do Brasil no cenário internacional, transformado em orientação de política externa, guarda pouca conexão direta com o antiamericanismo. O discurso de Dilma, pronunciado há pouco e já tão repercutido, é antes a indicação de uma mudança qualitativa profunda em nossas relações bilaterais e multilaterais. Em suma: o fenômeno que está em discussão é mais estrutural do que conjuntural.

sábado, 5 de outubro de 2013

A dor dos outros, artigo Cacá Diegues, no Globo


  • Devemos prestar atenção à dor dos outros, para tentarmos atenuar a nossa
ARTIGO - CACÁ DIEGUES
Publicado:
Semana passada, andei uns dias por Marechal Deodoro, cidade histórica de Alagoas, antiga capital do estado, acompanhando a IV Flimar (Festa Literária de Marechal Deodoro), organizada pelo prefeito Cristiano Matheus e por seu secretário de cultura Carlito Lima, meu amigo de infância. Dias de reencontro com tanta coisa.
Durante a Flimar, redescobri, graças a Ricardo Ramos Filho, seu neto, a extraordinária carta de Graciliano Ramos a Cândido Portinari, publicada em 1946. Um verdadeiro manifesto que, em nossa juventude de esquerda, líamos como amargo chiste do velho Graça, ao qual não tínhamos que dar tanta atenção. E no entanto devíamos ter levado mais a sério o que nosso escritor dizia ao pintor seu amigo, para o bem de sua geração e das gerações de artistas que os sucederam.
“Caríssimo Portinari”, escreve Graciliano, “(...) receio que esta resposta já não o ache fixando na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo as deformações e miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram. (...) se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejamos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças? Dos quadros que você mostrou (...), o que mais me comoveu foi aquela mãe com a criança morta. Saí de sua casa com um pensamento horrível: numa sociedade sem classes e sem miséria seria possível fazer-se aquilo? Numa vida tranquila e feliz que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor de rosa, e isto me horroriza. Felizmente a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá. E seríamos ingratos se desejássemos a supressão dela (...).”
Gostaria muito de pensar, e faço sempre um grande esforço para isso, como Bachelard, filósofo francês: “O mundo é belo antes de ser verdadeiro, o mundo é admirado antes de ser verificado.” O que significa que descobrir e se encantar com o que está à nossa volta deve ter primazia sobre ouvir o que se diz sobre o que está à nossa volta. Esse talvez seja o principal conflito da inteligência humana, a disputa eterna entre cultura e conhecimento. Os artistas sofrem com isso.
De que dor e de que mundo devemos falar quando nos deparamos com um desastre como esse de Lampedusa? Mais de 300 imigrantes ilegais, fugindo pelo Mediterrâneo de países africanos em crise, tentam chegar ao sul da Itália e morrem no naufrágio previsível de um barco sem condições de fazer os 350km da viagem, controlado por gerentes da miséria humana que cobravam mais de 1.500 dólares por cada um dos 500 passageiros, número impossível de caber em seus poucos 20 metros de extensão.
Eu sei que isso não é novo, nem raro. Eu sei que já aconteceu com albaneses que tentavam chegar ao norte da Itália, com mexicanos que atravessavam a fronteira para os Estados Unidos, com cubanos que remavam em direção à Flórida. Eu sei que isso não deixará de acontecer enquanto houver fome, miséria, opressão e guerra por aí afora, enquanto houver seres humanos desejando com desespero viver outra vida. Mas não quero me acostumar a isso, não vou me acostumar a isso.
A dor a que Graciliano se refere e não deseja suprimir faz parte da natureza humana, está sempre dentro de nós e no mundo ao nosso redor, temos que contar com ela. Nascemos para parir e parimos com dor. Os animais, as plantas, a terra toda, tudo à nossa volta vive fugindo dela, viver é tentar escapar da dor. Mas a dor de Lampedusa, dos que morreram sem conhecer a felicidade, dos que sobreviveram inutilmente e dos que, como nós, assistem perplexos a esse espetáculo brutal, essa é uma vergonha e pode muito bem ser suprimida. Como disse Francisco, acertando mais uma vez, ela é o resultado da “globalização da indiferença”.
Devemos prestar atenção à dor dos outros, para tentarmos atenuar a nossa. Vejo o desastre de Lampedusa e penso, por exemplo, nessa irracional reação corporativista aos médicos estrangeiros que querem trabalhar no Brasil. Nossas corporações são mais importantes do que o bem-estar e a saúde dos outros, num país miserável como esse? Como penso também em nossos professores em greve. Destruir equipamentos públicos, como estação de metrô, transportes coletivos, pontos de ônibus, placas de sinalização, cabines de telefone, equipamentos que servem ao resto da população, sobretudo aos mais pobres que não têm nada a ver com isso, faz parte de suas reivindicações corporativas?
Nesse e em outros exemplos mais e menos modestos, que se dane o resto, aquele que não sou eu, o outro?


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/a-dor-dos-outros-10259153#ixzz2gu1K9BKF 
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Pra que servem as mulheres - MARCELO RUBENS PAIVA


O Estado de S.Paulo - 05/10

Pra que elas sevem? Foi a segunda pergunta que o moleque fez, quando começou a lista de perguntas essenciais sobre o sentido da vida. A primeira? Pra que serve esta bola?

O primeiro indício de que ele não as entendia nasceu da constatação de que a maioria não devolvia as bolas atiradas contra elas. Começava aí o dilema da divisão de papéis. Não entendia por que meninas conversavam com seres inanimados, designados "bonecas", que nomeavam, vestiam, penteavam, alimentavam com comida de mentira, agasalhavam e colocavam para dormir. Não entendia por que meninas reclamavam quando ele arrancava as cabeças de plástico com cílios e cabelos de náilon para ver o que tinha dentro. Não entendia a obsessão delas por cores cítricas e por pôsteres de meninos que cantam em bandas só deles. Não entendia o funcionamento de presilhas para prender cabelos, nem o sentido de esmaltar as unhas. Como não as entendia, passou a ignorá-las.

Até ser matriculado numa escola. Descobriu que uma mulher pilotava muito bem a van, outra, a lanchonete, outra, a classe barulhenta, outra, a própria escola. Aprendeu a ler livrinhos escritos por mulheres e ouvir musiquinhas compostas por elas. Ouviu dizer que países eram governados por elas. Descobriu que apenas as da sua idade eram desinteressantes.

Mas chegou a adolescência. Começou a desconfiar que garotas tinham alguma atribuição na composição social. Especialmente as que tinham irmãs mais velhas. Ele passou a ter uma ideia fixa quando organizaram o campeonato de vôlei feminino no colegial. E contrataram a nova professora de matemática.

Vítima de uma explosão hormonal que o deixou por anos monotemático, descobriu enfim que as mulheres escondiam uma coisa que ele queria muito. Então, descobriu que, entre o objetivo e a conquista, existia planejamento, método, projeto, a corte, algo que faz parte da espécie como o fogo e a flecha, e que os fins justificam os meios.

Passou a amá-las, idealizá-las, compará-las, desejá-las mais que tudo. A trocar jogos com bolas por fantasias solitárias. A sofrer de amor, escrever poemas, cantar, dançar, oferecer mimos, declarar, xavecar.

O xaveco é milenar. O humano conhecido popularmente como Homo sapiens, do grego homem sábio, achou por bem decorar o cantinho de cavernas com pinturas rupestres, exagerar seus feitos em caçadas, oferecer enfeites à base de marfim de mamute, saias de pele de onça e colares com dentes de sabre manipulados para convencer uma pretendente a visitar o escurinho sobre o qual Platão tanto se dedicou e criou um mito. Até o aperfeiçoamento da fala e a invenção da lira, gastou-se muita mímica para simular que o macho não pensava só naquilo, apesar de só pensar naquilo, e que iria mandar um dente decorativo no dia seguinte de algum animal ainda não extinto por ele mesmo.

Pirâmides foram construídas para impressionar amadas. Guerras foram proclamadas, monumentos com colunas, com abóbadas, com ou sem sentido, foram erguidos. Navios enfrentaram tormentas em busca de um amor pleno. Muito papiro, muita tinta, muito blá-blá-blá foi gasto para se conquistar uma mulher.

O moleque namorou, noivou, assinou um pacto e se casou. Descobriu também pra que elas servem na linha evolutiva, ao observar seu grande amor engravidar. Descobriu enfim que, por trás de tanto desejo, admiração, vontade de compartilhar a rotina, existe o corpo de uma mamífera que dá sentido ao tempo perdido em busca da resposta do pra que elas servem: elas procriam!

A cintura arredondada de uma mulher não é apenas para servir de suporte a um biquíni asa delta. Existe ali espaço para caber mais um. E produzir colo. Os peitinhos aumentam, são na verdade mamas. Olha lá, é um design milimetricamente perfeito para alimentar um, até dois, herdeiros. A protuberância chama a embocadura. A aréola circunda o bico para proteger a maciez e criar a ilusão de ótica de que um bebê que enxerga mal precisa. E, surpresa. De dentro, sai alimento na temperatura ideal. É uma pequena fábrica caseira de laticínio mais rico em nutrientes do que tudo que existe.

O ventre é o receptáculo para o acolhimento de genes. Para receber as qualidades do macho alfa, mais forte e capaz. Tem maciez, lubrificação. Para enfiarmos o veículo testado como num túnel de vento da NASA, que transporta informações genéticas que serão selecionadas dentro e escolhidas. Em bilhões, aceitarão um! Que será armazenado, alimentado e protegido com a placenta quimicamente balanceada, num reservatório com tubo personalizado e individual de alimentação, com isolamento acústico e calefação.

Mas o sujeito se pergunta se as mulheres são então apenas umas chocadeiras? Não! A evolução foi brilhante. Como sempre. Deu o quê? Um clitóris. Uma glande em forma de botão com 8 mil terminações nervosas, o dobro da mangueirinha pendurada aí. Que serve para o quê? Para apenas uma coisa. Dar prazer! Não é para "tirar água do joelho", expelir genes, se gabar. É para apenas e tão somente dar prazer, fazê-las gozar, e não uma vez, como um urro, uhhhh, mas muitas vezes, múltiplos. O homem tem uma espingarda de um tiro, um bacamarte, que sai chumbo pra todos os lados. Elas, um rifle de repetição, uma metralhadora, pá-pá-pá!

Elas têm no corpo um órgão que é só para o prazer. Que, se a evolução não nos tivesse dado, talvez elas nunca visitassem o escurinho da caverna que intrigou Platão. Se não fosse o mágico e hipersensível sininho, não haveria procriação, não haveria espécie humana, não haveria Quéops, Troia, Capela Sistina. Nem o sujeito da primeira pergunta, a bola. Nem perguntas haveria.