Nazareth Folli tem 65 anos, mas não aparenta mais que 50. Diz, meio ironizando, que a vida de guerreira mantém a pele assim. "O que eu já sofri, você não tem ideia", emenda. Sua mãe era irmã de Maria Sierra, casada com José Ferreira de Almeida, e ela cresceu com seus pais e os tios em casas vizinhas que compartilhavam o quintal, na Rua Ibirajá, zona sul de São Paulo. Como os tios não tinham filhos, Nazareth foi adotada por eles também. Para não gerar ciúme, chamava-os de Nona e Nono, porque mãe e pai já tinha.
Seu Nono é o personagem desta história. Nascido em 1911, José Ferreira de Almeida saiu de Piracaia para São Paulo atrás de uma vida melhor. Fez carreira na Guarda Civil e, com a extinção da guarda em 1969, virou tenente da Polícia Militar. Não tinha estudos, mas era perspicaz. Preservava as amizades dentro e fora da Guarda Civil e sempre parecia disposto a ajudar os outros. "Por isso acho que aconteceu o que aconteceu com ele", diz Nazareth.
Ela chora. "É ruim mexer numa ferida, a minha está assim, com uma casca bem grossa, até hoje não tive muita condição de falar para que ela cicatrizasse. Ainda temos medo." Interrompe a entrevista. "Se eu parar de falar é porque minha mãe chegou. Vou dizer que você foi minha aluna, tudo bem? Ela tem 91 anos, por que vou lembrá-la agora de uma história dessa?" Nazareth é professora de biologia aposentada. Evita que a mãe recorde o destino do tenente Almeida, também conhecido como Piracaia, preso em 7 de julho de 1975 e morto um mês depois, no DOI-Codi paulista, centro de repressão e tortura da ditadura militar.
Em julho de 1975, 63 policiais militares foram presos e processados, acusados de serem comunistas. Entre eles estava o tenente Almeida, então diretor do Clube dos Oficiais da Reserva, à época uma espécie de sindicato dos policiais. Segundo Nazareth, e diferentemente do que alguns afirmam, o tenente não era do Partido Comunista Brasileiro (PCB). "Só tinha ideias avançadas demais pro período", já que lutava por salários melhores e fazia outras reivindicações para sua categoria.
Os agentes da repressão iam com frequência à casa de Almeida. Num sábado apareceram na de Nazareth, que tinha 28 anos, e deram um ultimato: "Ou ele se entrega ou levamos você". Na segunda-feira, dia 7 de julho, o tenente se entregou e foi detido.
Piracaia ficou dez dias incomunicável até que Luiz Eduardo Greenhalgh, o advogado da família, conseguiu vê-lo no Dops. Tinha 63 anos e apresentava sinais evidentes de tortura. Ao conversar com o advogado, ficou meio de lado. Não conseguia sentar direito na cadeira. Olhou para ele e disse: "Saí do inferno, estou melhor aqui". O inferno era o DOI-Codi. Greenhalgh conseguiu examiná-lo rapidamente: tinha as costas cortadas, a parte posterior dos joelhos roxos por causa do pau de arara, hematomas pelo corpo todo e o lóbulo da orelha e o nariz queimados.
Frutuoso Luiz Martins, hoje com 77 anos, dividiu a cela com Piracaia. Era diretor do Centro Social dos Guardas Civis de São Paulo e bem mais jovem que o amigo, com quem conviveu por 12 anos. "Para a ditadura", conta, "todo mundo que era das entidades de representação da categoria fazia parte do Partidão, era comunista." Frutuoso também foi preso em 1975. Quando chegou à cela e viu o amigo, chegou cumprimentando, querendo dar um abraço. "Eu não podia fingir que não conhecia aquele companheiro", lembra. A reação de Almeida foi estranha. Depois, sentindo-se menos vigiado, explicou o porquê da frieza e pediu perdão.
Conversavam pouco. Não demorou, Almeida mudou de cela e o amigo não teve mais notícias dele. Frutuoso passou 31 dias preso e, depois de solto e expulso da PM, foi absolvido por "inexistência de crime". Mais tarde, reintegrado à Polícia Militar, seus superiores não queriam que nem ele nem os demais ex-prisioneiros voltassem à ativa. Assim, ainda jovens, foram aposentados por invalidez e suas esposas passaram a receber a mesma pensão de viúvas de PMs mortos.
Outro militar preso em 1975 foi Francisco Jesus da Paz. Ele era de uma organização de luta armada, a Política Operária (Polop), mas afirma que sua ficha no Dops o vinculava ao PCB. Francisco presidia a Associação dos Sargentos da PM nos anos 1970. A entidade defendia o voto para cabos e soldados. Pregava a democratização da carreira, vista como muito elitizada. Foi um dos primeiros a ser preso e o último a sair: passou mais de 45 dias entre o DOI-Codi e o Dops. Ao ser preso, foi logo submetido a sessões de tortura e de acareação com Almeida. "Ele estava muito machucado. A tortura que sofríamos era muito mais pesada porque, além de sermos tachados de comunistas, éramos traidores, e isso tornava nossos torturadores mais selvagens, mais perversos", conta Francisco.
Quando Nazareth e Maria conseguiram finalmente visitar Almeida no Dops, colocaram-nas em uma sala totalmente revestida de carpete vermelho. Ele pediu que não o abraçassem: "Estou muito dolorido". Foi a única vez que viram o Nono. O advogado até conseguia agendar visitas das duas no Dops, mas elas ficavam horas esperando até que alguém informava: "Ele não está aqui hoje", ou "Ele não vai poder receber visitas".
Maria começou a apresentar uma tosse muito forte logo nos primeiros dias da prisão do marido. A tosse era decorrente de um problema cardíaco, que deu seus primeiros sinais logo depois da prisão. "Nos sentíamos impotentes", lembra Nazareth. Uma amiga dela passou a dirigir seu carro para que perambulassem pela cidade em busca de notícias.
Até que um dia bateu na porta da casa de Nazareth, onde Maria também estava, um oficial de alta patente da Polícia Militar. Trazia a notícia de que o tenente havia se enforcado. Em choque, Maria gritou: "Mataram ele!" A família recebeu o corpo em um caixão lacrado e, com honras de policial, ele foi velado no Hospital da Cruz Azul, da PM. Durante a noite inteira entravam no velório pessoas que ninguém conhecia. Eram militares à paisana. Desobedecendo às ordens, o advogado abriu o caixão lacrado. Ele e Maria puderam ver que o tenente tinha vários hematomas pelo corpo e dois sulcos no pescoço, um inclinado e outro reto. "Era claro que ele não tinha morrido asfixiado", diz Greenhalgh, que logo entraria com uma representação no Conselho Regional de Medicina contra Harry Shibata e Marcos de Almeida, legistas que assinaram o laudo da autópsia registrando como causa mortis asfixia mecânica. O CRM arquivou o processo logo depois. O advogado também entrou com um pedido na Auditoria Militar para que um inquérito fosse aberto, o que nunca aconteceu.
Dois meses depois, no dia 25 de outubro - esta semana completaram-se 37 anos do ocorrido -, o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, foi mostrado morto nas mesmas condições e na mesma cela, a número 1 do DOI-Codi, à Rua Tomás Carvalhal, 1030. O professor e pesquisador da USP Mário Sérgio de Moraes ironiza: "Eles foram enforcados com o mesmo cinto". Nas fotos oficiais, ambos estavam com os joelhos dobrados, ao lado de um colchão, e pendurados na mesma janela. E ambos tiveram no suicídio a versão oficial de morte, assinada pelo médico Harry Shibata. "Havia um modelo para dissimular as atrocidades, era o modus operandi para montar a farsa", explica o professor.
No dia 24 de setembro deste ano, Vladimir Herzog teve seu atestado de óbito retificado. Em vez de "asfixia mecânica", agora consta que a morte dele "decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército - SP (DOI-Codi)". O juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos do TJ-SP, atendeu ao pedido feito pela Comissão Nacional da Verdade. Além de Vlado e do tenente Almeida, outros morreram "suicidados" da mesma forma. Exemplo disso é o operário Manoel Fiel Filho, morto em janeiro de 1976. Segundo o jornalista Elio Gaspari, oficialmente, José Ferreira de Almeida era o 36º preso a se suicidar dentro de uma prisão da ditadura, o 16º enforcado e o 7º a fazê-lo sem vão livre.
Nazareth e um primo entraram com um pedido de indenização junto à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), indeferido em 1996, pois o requerimento fora encaminhado por dois sobrinhos, quando a lei impede o pleito por parentes indiretos. Maria Sierra, sua esposa, já havia morrido, o casal não deixou filhos e os ascendentes do tenente também já tinham falecido. Não existia mais nenhum parente que pudesse receber a indenização. No entanto, a CEMDP reconheceu a responsabilidade dos agentes do Estado brasileiro pela morte do tenente. Nazareth afirma que o dinheiro da indenização não importava, afinal "não há dinheiro nenhum que pague o que aconteceu com nossa família", mas entrou com o pedido para receber alguma declaração oficial do Estado.
A sobrinha, que já atravessou algumas crises depressivas, hoje vive rodeada de animais - em aquários, gaiolas e soltos pela casa. Em seu último tombo emocional comprou a cachorrinha Flufy, que vem atender na porta as visitas que chegam. Nazareth espera conseguir um atestado de óbito com a causa mortis real de seu tio: morto sob tortura. Concorda que o caso de Vlado abre um precedente para que outras famílias peçam o mesmo.
Maria Sierra morreu em 1977 por causa dos problemas cardíacos que começou a apresentar logo depois da prisão do marido. Contam que os dois eram grudados, eternos namorados. E que ela morreu de tristeza. O nome do tenente está na lista dos 140 mortos e desaparecidos que a Comissão Nacional da Verdade vai investigar. Mas, até agora, Tenente José Ferreira de Almeida é apenas a designação de uma rua no bairro do Jabaquara, na qual Nazareth nunca teve coragem de pôr os pés.