A imprensa rende-se ao julgamento do mensalão. Se você achava que o debate público não podia ficar mais pobre, pense de novo. Futricas do Supremo, dedo em riste da CUT e outras levezas serão nosso pão cotidiano durante as próximas semanas.
Esta coluna ignoraria o tema solenemente, não fossem os efeitos do mensalão sobre a política externa brasileira. A história começa há dez anos, em julho de 2002, quando José Dirceu foi aos Estados Unidos pela primeira vez.
Não falava nem entendia inglês. Não conhecia quase ninguém. Mas Lula crescia nas pesquisas de intenção de voto, Fernando Henrique patinava e o "Financial Times" sentia cheiro de calote no ar.
Não era a primeira crise financeira a coincidir com uma eleição presidencial. Em 1998, um Fernando Henrique acuado pedira socorro ao presidente Bill Clinton. Em 2002, Lula não tinha como fazer o mesmo com George W. Bush porque o PT estava longe dos centros americanos de opinião pública, pensamento e poder.
O "New York Times" tinha lá seu naco de razão: "Um governo esquerdista do PT e um governo conservador republicano podem ser uma combinação explosiva".
Lá foi José Dirceu com a "Carta ao Povo Brasileiro" debaixo do braço. Em Nova York, conversou com gente de JP Morgan, Citigroup, Morgan Stanley, Lehman Brothers, ABN Amro, Bear Stearns, da Alcoa e também da Moody's.
Em Washington, visitou a central sindical americana AFL-CIO, o Banco Interamericano, o Departamento de Estado, o Tesouro, o Conselho Econômico Nacional e o Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Tirou foto solene no Ground Zero. WikiLeaks e outros documentos abertos pela lei americana de acesso à informação revelam que ele convenceu.
Em poucos meses, Lula e Bush montariam a aproximação diplomática mais ambiciosa de uma geração. Patrocinaram o primeiro encontro ministerial dos dois países, consultaram um ao outro sistematicamente e a Casa Branca começou a argumentar que o Brasil era "uma potência global em ascensão". Em relações internacionais, reconhecimento é poder.
O mensalão jogou esse trabalho por terra porque era Dirceu quem mantinha o canal de comunicação desimpedido. Mais tarde, o Palácio do Planalto e a Casa Branca iriam às turras a respeito de Iraque, Cuba, Honduras, Irã, comércio internacional, direitos humanos e proliferação nuclear.
Longe de mim colocar azeitona na empada de José Dirceu. O homem não precisa de mais mitificação. Mago dos magos para uns, inimigo público para outros, ele é odiado e reverenciado ao mesmo tempo.
Sua iniciativa deu certo. Não porque ele fosse um grande estadista. Não era. Estava mais para bombeiro apagando incêndio. Teve êxito porque, na época, uma estratégia para lidar com os Estados Unidos era inexistente.
Dez anos mais tarde, pouco mudou. Quando se trata de gerir problemas na relação com os Estados Unidos, o Brasil ainda fica à mercê do talento de um ou outro indivíduo. Sexta economia do mundo, podíamos fazer melhor.
Matias Spektor ensina relações internacionais na FGV. É autor de "Kissinger e o Brasil e de Azeredo da Silveira: um depoimento". Trabalhou para as Nações Unidas antes de completar seu doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Foi pesquisador visitante no Council on Foreign Relations (Estados Unidos) e assina uma coluna no "International Herald Tribune". Escreve às quartas, a cada duas semanas, na versão impressa de "Mundo".