quarta-feira, 12 de outubro de 2011


Nova ciência da moral 
HÉLIO SCHWARTSMAN 
FOLHA DE SP - 12/10/11

SÃO PAULO - A notícia publicada ontem em Ciência de que bebês de 15 meses já dispõem de um senso de justiça rudimentar acrescenta mais um tijolinho à disposição dos pesquisadores que tentam fundar a nova ciência da moral.

Uma das ideias centrais dessa protodisciplina é a de que a faculdade moral é um instinto. A analogia que cabe é com a teoria da gramática universal de Noam Chomsky. Da mesma forma que nossos cérebros são equipados com um hardware linguístico, que nos habilita a aprender praticamente por osmose o idioma ao qual somos expostos na primeira infância, nossa cachola também já viria com uma moral de fábrica.

Não se trata, por certo, de um código penal, uma lista pronta e acabada de todas as ofensas possíveis e as respectivas punições, mas de um conjunto de princípios elementares, comuns a toda a humanidade, como as noções de justiça, pureza e autoridade. Elas se combinariam umas com as outras e também com elementos culturais para formar toda a exuberância de padrões morais observáveis nos mais diversos grupos.

A maioria dos estudiosos da moral para por aqui -o que já é um projeto para gerações. A exceção é o neurocientista Sam Harris, que, em "The Moral Landscape" (a paisagem da moralidade), sustenta que é possível, ao menos em princípio, usar a ciência para decidir quais valores morais são corretos e quais são errados.

O critério de verdade escolhido por Harris, na melhor tradição utilitarista, é o bem-estar. Assim, práticas morais que contribuem para aumentar a felicidade das pessoas, como tratar bem o próximo, são validadas pela nova ciência. Já hábitos que fazem crescer a miséria humana, como castigos corporais, tornam-se uma chaga a eliminar.

Com esse engenhoso mecanismo, Harris consegue, de um só golpe, atacar seus adversários à esquerda (multiculturalismo, relativismo) e à direita (religião, tradicionalismo).

Nomes que passam
RUY CASTRO 
FOLHA DE SP - 12/10/11

RIO DE JANEIRO - A comoção pela morte de Steve Jobs continua. Para milhões de pessoas, a vida perdeu o sentido -como sobreviver à perda de alguém que, de seis em seis meses, lhes fornecia um aparelhinho sem o qual, de repente, não podiam passar? Para elas, ele é insubstituível. Afinal, disse alguém, Steve Jobs era Leonardo da Vinci e Thomas Edison em um só. Outro previu que o impacto de suas criações se refletirá até o fim do milênio.
Com todo respeito pelos fãs enlutados, peço vênia para discordar. Acho que a memória do nome de Steve Jobs mal sobreviverá ao fim da década. Será soterrada pelo surgimento de outras criações e outros criadores, a um ritmo como o que foi imposto por ele próprio e pelos que o antecederam em seu ramo -programado para tornar caduco tudo que foi produzido outro dia mesmo. É o destino dos inventores. Seus inventos ficam ou não. Mas eles se evaporam.
Veja 1901. Coisas realmente originais surgiram naquele ano: a linha de montagem, a gilete, a câmera fotográfica portátil, o café solúvel, o transmissor de rádio, a lâmpada de mercúrio, a lente zoom, a laparoscopia, a radioterapia -estas últimas parecem-me mais importantes do que telefones com mil e uma utilidades. E alguém se lembra do nome dos responsáveis por tais maravilhas?
Não. Pior, suas façanhas foram atribuídas a outros. O criador da linha de montagem, por exemplo, foi o americano Ransom Olds (1864-1950), proprietário da Oldsmobile. Mas quem levou a fama foi Henry Ford, que a aplicou em suas fábricas. E King Camp Gillette (1855-1932) aposentou mundialmente a navalha e se tornou sinônimo de seu produto, mas quem entre nós sabe algo sobre ele?
Para não ir longe: o primeiro telefone celular surgiu na Finlândia, em 1991. Quem foi seu pai, se é que teve só um?

Três portas

por Ruy Castro na Folhasp
Antes que você comece a ler, devo adverti-lo: sou ignorante a respeito de carros. Nunca dirigi, não distingo um fusca de uma jamanta, e o único equipamento de bordo que, como copiloto, já manobrei foi o isqueiro do carro.
Páginas e páginas na mídia estão anunciando que “finalmente chegou o lançamento mais espetacular de todos os tempos”: o carro de três portas. Embatuquei: por que “finalmente”? Não sabia que a humanidade estava paralisada, sôfrega e expectante por essa novidade que vem alterar a ordem do universo. E o que impedia que tal maravilha fosse inventada antes? Também não sei. Mas, e daí? O fato é que finalmente temos o carro de três portas.
Virando a página do anúncio, leio que o carro de três portas é “simplesmente genial”. Exceto pelo apreço do redator por advérbios de modo, o texto informa pouco a respeito das vantagens de um carro ter três portas, e não duas ou quatro como de praxe desde 1900. Tirando os óculos para ler melhor, descubro em letras miúdas: “Total segurança para desembarque de passageiros somente pelo lado direito”.
Ah, bom. Significa que, a partir de hoje, ninguém será abalroado por outro veículo ao sair de forma atabalhoada de um carro pelo lado esquerdo -porque não existe mais a porta traseira esquerda. Mas, pelo visto, o motorista continuará correndo esse risco. Por que não eliminar também a sua porta, mantendo apenas as duas do lado direito?
Para o Rio, o carro de três portas chega em má hora. Com as pistas da direita reservadas agora somente aos ônibus e táxis em Copacabana, em Ipanema e no Leblon, os particulares são obrigados a trafegar, embarcar e desembarcar pela esquerda. Donde o carro de três portas nasceu impraticável em três dos bairros mais abonados do Brasil.
Autor: Ruy Castro