“Vou guardar um lugar para ti junto aos portugueses. Se chegares mais cedo que eu, procura o teu nome nos papéis colados nas mesas.” Começou assim meu primeiro ano como correspondente da Folha na Europa: com muita aglomeração, zero distanciamento social e sem sombra de máscaras.
Rita Siza, correspondente em Bruxelas do jornal português Público, me explicava como navegar entre os mil correspondentes estrangeiros que praticamente acampavam no edifício em que os presidentes e premiês dos 27 países da União Europeia discutem o bloco, de manhã até a madrugada, às vezes por vários dias, no Conselho Europeu.
Minha primeira vez começara como o imaginado, com colegas de todo o mundo reportando de perto disputas por recursos e manobras políticas. No meu roteiro seguiam-se muitas viagens, conflitos, encontros e arte.
Coronavírus? Ainda era uma doença misteriosa que se agravava na China, e o temor de que viesse para a Europa cancelou um megaevento de tecnologia em Barcelona, em fevereiro. Na verdade, o microvilão já estava no continente havia quase um mês, mas visível só no norte da Itália. Tão subestimado era naquele começo de ano que virara blague entre os colegas lusitanos: “A Portugal, nem casos de coronavírus chegam”, brincavam, focados na divisão do orçamento plurianual europeu.
Lisboa era justamente minha próxima parada, e lá fomos eu e meu colega Danilo Verpa percorrer ruas cheias e descampados para o capítulo europeu da série Estado Alterado (sobre drogas e políticas públicas). Bastou uma semana, porém, para a piada dos meus amigos cair por terra. De segunda para terça, apareceu no elevador do hotel um comunicado do governo: o bicho chegou, sim, a Portugal, e medidas de prevenção serão adotadas.
O patógeno ganhou nome, Sars-Cov-2, a atípica pneumonia virou Covid-19, a Lombardia confinou 16 milhões de pessoas e em 11 de março meu título era “Europa é o centro da pandemia de coronavírus, diz OMS”. Mensagens internas da Redação falavam da pandemia como "o único assunto que importa".
A cobertura do Conselho Europeu já era século passado, e o avanço da videochamada sobre o face-a-face foi um vento gelado. Mas o corpo-a-corpo jornalístico sobreviveu sob a Covid-19, nos protestos contra o racismo (10 mil pessoas de máscaras no auge da primeira onda), nas disputadas eleições na Polônia (quando uma simples viagem de avião tinha ares de ato de bravura) e nos desafiadores protestos contra a ditadura na Belarus.
Até a Bélgica, em geral ausente do noticiário, ganhou manchetes ao assumir o topo do ranking de países com mais mortes por habitante no mundo. A palavra coronavírus foi central em 446 textos enviados da Europa neste ano, boa parte escrita no país que sustenta até hoje essa liderança letal —pouco evidente nas ruas da capital, mas retrato de uma tragédia nos asilos de idosos do país.
Certamente as 11 letras terão presença garantida neste meu segundo ano como correspondente, mas agora o coronavírus já aparece em companhia mais animadora. No dia em que aterrissei em Bruxelas de volta das férias, 27 de dezembro, a União Europeia botou em marcha sua campanha de imunização, e vacina já apareceu em 13 textos nesses 8 dias.
Que puxe a fila de outras boas notícias. Além de viagens, eleições, conflitos e manifestações, está faltando cumprir a parte da arte e dos encontros no meu roteiro, de preferência com meus colegas por perto.
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