Hanna Manente Nunes
Nos primeiros dias de outubro de 1918, João Francisco Carreira, sua mulher e cinco filhos deixaram Socorro onde moravam com destino à capital do estado. Pedreiro de profissão, o objetivo de Carreira era tornar-se operário da emergente indústria paulistana. Por infortúnio do destino, junto com a família chegou a São Paulo a gripe espanhola.
Em carta enviada ao então prefeito Washington Luís (Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, Fundo PAH, 384) Carreira narra suas tentativas frustradas de conseguir serviço. A epidemia, escreve, “frustrou a todos nós”. Na ausência de uma fonte de renda, as pequenas economias da família esgotaram-se em menos de um mês. Como último recurso, escrevia ao prefeito rogando colocação nos serviços municipais. “Senhor, tenho horror à miséria,” sentenciou ao fim da carta.
O pedido foi repassado para diversos serviços municipais, da polícia aos cemitérios, a fim de que o nome de Carreira fosse lembrado “quando haja necessidade ou falta de pedreiro”. Se ele foi de fato chamado, não sabemos, mas em algum momento entre o fim de 1918 e fevereiro de 1921 Carreira voltou a residir em Socorro. Sobreviveu à epidemia para, infelizmente, presenciar a morte de uma de suas filhas. Mariquinha e seu namorado recriaram, para tristeza dos familiares, a cena fatídica de Romeu e Julieta, trocando o veneno e o punhal por balas de revólver. As tragédias, tal como hoje, vêm de todos os lados.
Para quem quiser entender como a gripe espanhola afetou a milhares de outros Joãos, a leitura de “Influenza, a medicina enferma” de Liane Maria Bertucci (Editora Unicamp) é uma experiência que beira ao surrealismo. Das primeiras notícias que traziam depoimentos tranquilizantes sobre a não letalidade da doença a relatos sobre a proliferação de curas milagrosas, os paralelos com os dias atuais são desconcertantes. Da epidemia de 1918 sobraram, como abordamos recentemente, números ainda não bem esclarecidos e a impressão de que, guardados os anacronismos, a história é de fato cíclica.
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