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Seria engraçado, se não fosse trágico. Na semana passada, uma penca de contas de Twitter publicaram um mesmo post. Contava, com as mesmas palavras e vírgulas, a história da família de um porteiro indignado porque ele teria morrido num acidente mas, na certidão de óbito, foi posto Covid-19. Quem lê o tuíte, muitas vezes, não percebe que se trata de um robô. O que vê é um testemunho pessoal. Sai com a impressão de que, talvez, exista algo de falso na estatística dos mortos pelo novo coronavírus. Uma conspiração tenta aumentar artificialmente o impacto da pandemia. A história, evidentemente, é falsa. Na verdade, por conta da falta de testes, o problema é justamente o contrário. Muita gente está morrendo da nova doença mas, sem a certeza, o registro só indica pneumonia. Robôs, assim como sua versão humana — as pessoas pagas para publicar em diversas contas falsas da rede social —, custam dinheiro. Está em curso uma campanha paga cujo objetivo é desinformar. Não surpreende, claro. Nos habituamos. Faz parte do cenário político corrente.
O primo do porteiro tbm, ele morreu pq o pneu estourou na cara dele. Vocês todos moram nesse mesmo prédio?
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Mas isso pode estar mudando. A decisão pelo Twitter, logo seguida por Facebook e Instagram, de apagar posts do presidente Jair Bolsonaro são marcos importantes. Já haviam feito antes, com Nicolás Maduro, da Venezuela. Só que ninguém presta muita atenção em Maduro. Trata-se de um ditador mambembe. Com Bolsonaro é diferente. Ele atua seguindo o modelo do presidente americano, Donald Trump. Até há pouco, as redes sociais adotavam por política não questionar o que publicam políticos importantes, incluindo chefes de Estado. Só que o coronavírus os forçou a rever esta decisão.
Há um dilema, claro. Afinal, se uma pessoa recebeu votos a ponto de ser elevada a um cargo público, o alcance de sua voz foi ampliado por decisão democrática. Quem tem o direito de calar esta voz? Dilema semelhante vivem os repórteres que, diariamente, cobrem à porta do Alvorada as coletivas informais de Jair Bolsonaro. Estão ali, em essência, para serem ofendidos e extrair pouca informação. Mas ele é o presidente da República e o trabalho de repórter é levar sua voz a leitores e espectadores. É direito dos brasileiros saberem o que fala seu presidente, independentemente do que ele fala.
Só que personagens como Bolsonaro e Trump dão uma invertida nas normas democráticas padrão. Porque sua estratégia é a de alimentar desinformação. É de confundir. Aproveitam-se das fraquezas estruturais das redes sociais para distorcer o debate público. Estas fraquezas são duas. A primeira é que os algoritmos lançam à frente para mais pessoas tudo aquilo que gera indignação. E uma boa história falsa, como a do tal porteiro, entra neste pacote. A segunda fraqueza é humana — a hesitação, por critérios honestos e defensáveis, de apagar o que publica um presidente, ou mesmo um deputado.
Como se defende uma democracia se um dos grupos fortes que disputam espaço nela atua para quebrar o debate público? Na falta da capacidade de argumentar em defesa do indefensável, inventa fatos, distorce a realidade. Como, por exemplo, ignorar a quarentena alegando que o vírus não oferece perigo real. É só mais uma gripe que talvez até mate alguns, mas isso ocorre todo ano.
Quando as redes tomam a decisão de apagar o que publicou um presidente por ser falso, um limiar importante foi cruzado. A decisão de defender a democracia de quem a sabota foi tomada. Agora é só discutir quais os critérios para decidir quando pode e quando não pode desinformar. Será que terão coragem de fazer o mesmo com Donald Trump? A ver. Se sim, o Vale do Silício terá atingido maturidade política. Terá compreendido que a responsabilidade é também de suas empresas.
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