segunda-feira, 6 de abril de 2020

Heranças da pandemia, Daniel Martins de Barros, O Estado de S.Paulo

A covid-19 não cria quase problema, e sim amplifica os que já nos cercam há tempos


06 de abril de 2020 | 05h00
Tenho dado muitas entrevistas e conversado com muita gente sobre os aspectos emocionais e psicológicos da pandemia em que nos encontramos. E embora os públicos sejam variados, as perguntas são mais ou menos as mesmas. O que não surpreende, já que estamos todos atravessando a mesma tempestade. 
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Refletindo sobre as questões mais frequentes, que vão de preocupações leves até grandes angústias, comecei a me dar conta de que a covid-19 não cria quase nenhum problema. O que ela faz é amplificar – em alguns casos em escala exponencial, é verdade – os problemas que já nos cercam há tempos. Muitos são tão entranhados em nossa sociedade, contudo, que achávamos que podíamos passar a vida os ignorando. Mas eis que chega uma pandemia e joga tanta luz sobre eles que já não conseguimos enxergar outra coisa. 
Faça o teste. Escolha qualquer uma das dificuldades atuais, sejam os desconfortos diários que não ganham as manchetes, sejam os enormes desafios enfrentados pelos líderes mundiais, e reflita sobre como aquela questão vinha sendo tratada antes da pandemia. Irá se surpreender ao descobrir que o problema já estava lá. 
Veja a angustiante questão dos idosos. População de risco especialmente alto para caírem vítimas do novo coronavírus, são eles os que mais precisam ficar isolados. E por isso de repente tomamos consciência de que eles estão lá, sozinhos, tendo que se virar para dar conta da vida, lutando contra a redução de sua autonomia, sem poder contar com nossa presença. Como se grande parte deles não estivesse exatamente na mesma situação antes. Isolados, perdendo autonomia, lutando para manter a dignidade, sem poder contar com nossa presença. Como estavam presentes nas reuniões de família, nem pensávamos que nos outros dias, sem festa nem ligações, continuavam lá, talvez precisando de uma assistência que não queriam pedir e ninguém lembrava de oferecer. A pandemia não nos deixa esquecer mais. 
E a falta de vagas em UTIs? Como qualquer funcionário da saúde pode confirmar, a falta de vagas de UTI está muito longe de ser um problema recente. Há anos minha falecida avó teve um mal súbito e precisou ficar entubada no pronto-socorro porque não havia vaga para ela na UTI. Quando finalmente surgiu um leito, um jovem vítima de acidente deu entrada no hospital. Era ele ou minha avó. Essa história de que os médicos precisarão escolher quem vive e quem morre, portanto, também não é de hoje, acontece todos os dias longe dos nossos olhos. O que a pandemia faz ao agravar o problema é nos impedir de virar o rosto. 
Até os problemas mais prosaicos podem ser enxergados dessa perspectiva. A aflição que muitos sentem por ter que ficar sozinhos com seus próprios pensamentos, revela mais sobre nós do que sobre o vírus. Há 400 anos o filósofo Blaise Pascal já havia dito que todos os problemas da humanidade vêm da incapacidade de as pessoas ficarem quietas num quarto. O horror que temos ao silêncio e ao tédio é porque trazem à tona os sentimentos e pensamentos dos quais fugimos usando toda distração de que nos cercamos no dia a dia. Distrações que a pandemia faz cessar. 

Enxurrada de divórcios, aumento da violência doméstica, dificuldade em participar da educação dos filhos, escassez de equipamentos de proteção para profissionais de saúde, carência dos cientistas, falta de verba para pesquisa. Diga um drama trazido à tona pela atual calamidade que já não estivesse aí. 
Sou bastante cético quanto ao que a pandemia pode nos ensinar. Mas, apesar disso, tenho uma esperança. Talvez, por termos sido forçados a olhar para diversos problemas que preferíamos ignorar, resolvamos corrigir algumas coisas. Se aproveitarmos para transformar estruturas, reformar normas, construir pontes, poderemos criar uma sociedade melhor. E quando no futuro nossos descendentes se perguntarem por que os cientistas ganham tão bem, por que os idosos são tão respeitados, por que a escola obriga que os pais participem das lições de casa ou qualquer outro costume que então será antigo, alguém dirá: ah, isso é herança da pandemia de covid-19. 
*É PSIQUIATRA

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