Vocação de poder
Peronistas têm disposição para mudar de rumo a fim de manter o poder
Bom conhecedor da vida pública de seu país, o jornalista Rosendo Fraga, falando da figura mais importante da Argentina contemporânea, o três vezes presidente Juan Domingo Perón (1895-1974), disse que “(ele) podia girar da esquerda para a direita sem perder seu objetivo político, que era alcançar, reter ou recuperar o poder”.
O mesmo se aplica às principais lideranças do peronismo, movimento de muitas faces e facções que detém —nas ruas e nas urnas— o indisputado apoio das camadas populares. Apoio de raízes fundas, porque ser peronista é uma forma duradoura de identidade política para milhões de argentinos, sejam eles trabalhadores, pobres sem trabalho ou membros das camadas baixas da classe média.
“Desde bebê/ em minha casa havia uma foto de Perón na cozinha/ e agora que sou grande/ unidos e organizados estamos com Cristina” cantam por toda parte os fervorosos apoiadores da vice-presidente recém-eleita.
De 1946 em diante, os peronistas só perderam eleições para a Casa Rosada quando foram proscritos entre 1955 e 1973; durante a ditadura militar de 1976 a 1982; ou quando concorreram, divididos, com mais de uma candidatura. Feitas as contas, ocuparam a Presidência durante 24 dos 36 últimos anos. No governo, aplicaram pragmaticamente, conforme as circunstâncias, políticas neoliberais, com Carlos Menem, ou redistributivas, com Nestor Kirchner e sua viúva e sucessora, Cristina K. Sobretudo mostraram enorme vocação para o mando quando a hiperinflação e os movimentos de rua fizeram desmoronar duas vezes —e antes do tempo regulamentar— os mandatos de seus adversários do Partido Radical, Raúl Alfonsin (em 1989) e Fernando de la Rua (em 2001).
Há quem atribua ao peronismo a culpa pelo crônico impasse político que teria gerado a decadência econômica da Argentina. Diz-se também que os peronistas, mobilizados nas ruas e dilacerados por dissidências, são os maiores inimigos daqueles a quem elegeram. O que nenhum analista nega é o realismo político de seus dirigentes e sua disposição para mudar de rumo a fim de manter o poder.
Eis por que é no mínimo prematura a crença de todos quantos, a começar pelo amargurado Bolsonaro, auguram que o presidente eleito, Alberto Fernández, repetirá inevitavelmente as políticas de Cristina Kirchner que deixaram em má situação a moeda e as contas públicas nacionais. A vocação de poder e o pragmatismo que cimentaram a união dos peronistas em torno de Fernández, somados à força relativa dos derrotados e à delicadíssima situação econômica do país, poderão dar outros rumos ao novo governo.
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