quinta-feira, 24 de outubro de 2019

SP ainda tem ribeirinhos e 4,6 milhões de excluídos do saneamento, FSP

Em capital do estado mais rico do país, falta de água tratada e doenças trazidas por ela persistem

Emaranhado de canos e torneiras em calçada ao lado de um muro com um nicho para um registro, pintado de laranja, onde se lê CASA NÚMERO 336
Comunidade na rua Monte Carlo em Guarulhos; cidade tem um dos piores índices de tratamento de esgoto do país entre as cem maiores Zanone Fraissat/Folhapress
Artur RodriguesZanone Fraissat
SÃO PAULO
Nos dias secos, é como se a garganta de Maria Auxiliadora Silva, 58, travasse. Ela não consegue colocar alimento nenhum na boca.
“A gente não suporta comer, porque o fedor do Tietê é demais. Não dá para se acostumar com esse cheiro”, diz, de pé sobre uma montanha de lixo na margem do rio. 
Maria Auxiliadora vive com familiares em uma favela à beira do Tietê, na Chácara Três Meninas, zona leste de São Paulo. O lugar é uma espécie de comunidade ribeirinha, sem água encanada e nem esgoto, onde cobras, ratos e capivaras dividem espaço com crianças descalças.
A situação mostra que nem a capital do estado mais rico do país, ranqueada entre as 20 melhores cidades quando o assunto é saneamento, escapa dos bolsões de excluídos da água encanada e esgoto. 
No estado de São Paulo, cerca de 4,6 milhões de pessoas não têm acesso ao sistema de esgoto, o equivalente a duas vezes a população de Sergipe, segundo dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento). Aproximadamente 1,7 milhão não recebe água tratada. 
Na Chácara Três Meninas, 2.000 famílias estão cercadas pelo esgoto, que escorre em meio a barracos rumo ao Tietê. Eventualmente, essa água fétida cruza com um sistema improvisado de mangueiras azuis responsável por levar a água usada pelos moradores para beber e tomar banho. 
“Essa água que a gente toma está contaminada. Tem até fezes”, diz Maria Auxiliadora. 
Vazamentos visíveis aumentam o risco de as partículas serem sugadas pela mangueira e consumidas pela vizinhança.
O pintor Flaviano Nunes, 23, escova os dentes usando o líquido que vem desses canos sem filtragem. Naquele dia, ele, que é neto de Maria Auxiliadora, não havia ido trabalhar por estar se sentindo mal. “Aqui a gente vive doente. Dor de cabeça, dor de dente, dor de barriga.” 
 
Com uma filha de um ano no colo e de olho em outra que brinca no chão, a manicure Flávia Rodrigues, 20, se junta à conversa: “O corpo do meu marido ficou cheio de manchas pretas depois de ele tomar banho um dia desses. Ele ficou até com vergonha de sair de casa”.
As condições precárias de saneamento, porém, não são o que mais amedronta os moradores do bairro. É o rio, que rapidamente pode levar tudo que eles têm e trazer coisas indesejáveis. “É difícil morar aqui, porque quando dá enchente, chega na porta de casa, a gente fica preocupada para não vir rato, cobra”, diz ela. 
A Chácara Três Meninas enfrentou longas enchentes em que os moradores passaram quase um mês alojados em escolas próximas. Flávia era menina, mas seu receio persiste.
Com mais de 200 cursos d’água, São Paulo tem muitas comunidades às margens de rios, algumas delas no Tietê e seus afluentes.
Outras margens, mesmo mais distantes, acabam sendo tomada por elas ciclicamente. Segundo IBGE, 674 mil pessoas na capital paulista vivem em áreas de risco que incluem enchentes. 
Na mesma região da Chácara Três Meninas, a Vila Itaim sofreu com um alagamento prolongado no início deste ano. Logo depois, de abril a fevereiro, um surto de diarreia atingiu mais de uma centena de pessoas naquela área.
A cabeleireira Luciana Medega foi uma delas. Com 35 dos seus 40 anos vividos no bairro, ela se recorda de quando o pai construiu um andaime dentro de casa para evitar o alagamento. O nível da residência foi subindo e, na última enchente, só a garagem se encheu de água suja. Na rua, a enxurrada chegava à cintura. 
A vida seguiu em meio à inundação. Quando a água secou, além de Luciana, deixou doentes uma filha de 4 anos, o filho de 10 e uma sobrinha de 1. “Todo mundo ficou com diarreia, durou uns quatro dias. Eu achei até um bicho aqui em casa, não sei que bicho é. Levaram para análise”, conta. 
A falta de saneamento influi diretamente no índice de doenças como diarreia, esquistossomose, dengue e leptospirose. O contato direto com água contaminada também afeta o desenvolvimento e a performance escolar das crianças, segundo o Instituto Trata Brasil, responsável pelo ranking sobre as melhores e piores cidades nesta área. 
O bairro de Luciana fica num cinturão da falta de saneamento. Perto dali, está Guarulhos, cidade que é a grande poluidora do Tietê —o município trata hoje apenas 10% do esgoto, estima a prefeitura. 
Embora São Paulo tenha 11 cidades entre as 20 melhores do ranking Trata Brasil (feito com base em dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento de 2017), o estado surge também na ponta inferior da tabela, com municípios nos arredores da capital como Guarulhos, Itaquaquecetuba e Diadema. 
É fácil entender por que Guarulhos é a pior cidade paulista no levantamento, em 81º lugar de 100 cidades. Cortado por córregos que deságuam no Tietê, o município tem bairros inteiros à beira de cursos d’água. E canos, muitos deles, despejando esgoto bruto ininterruptamente. 
 
O autônomo Manoel Vilson, 50, morador de uma comunidade no bairro Cocaia, diz que tanto água quanto esgoto ali são ‘gatos’ (improvisados e irregulares). No entanto, afirma que não são só as moradias da favela estão nessa situação.
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“Aqui, mesmo as casonas lá de cima despejam o esgoto no rio”, diz. O fluxo de pessoas para moradias precárias à beira de córregos é contínuo. A reportagem encontrou muitas casas e barracos recém-construídos, habitados por migrantes vindos neste ano do Norte e Nordeste. 
Gisele da Conceição, 22, chegou há três meses do Maranhão para morar em uma comunidade ainda sem nome, próximo do aeroporto de Cumbica. A vista de sua janela é um córrego formado basicamente por esgoto e lixo.
De tempos em tempos, é possível ver alguns sacos sendo arremessados pelas janelas. Assim como outros ali, ela veio com a família para São Paulo em busca de emprego, mesmo que para isso tenha que tolerar a sujeira.
Pelo menos ali o cheiro de esgoto não é tão forte. Gisele e outros moradores desconfiam que produtos químicos descartados lá por empresas da região amenizem o odor. 
O presidente do Trata Brasil,  Édison Carlos, afirma que geralmente as empresas de saneamento não conseguem chegar às invasões devido a limitações pela Justiça. “Elas só entram após algum tipo de acordo, seja com a prefeitura ou no Judiciário”.
Carlos diz, no entanto, que a situação do estado é boa na comparação com o resto do país. “O desafio é o tratamento de esgoto e redução de perdas no sistema de água [de cerca de 35%]”, diz. 
Segundo dados do sistema nacional, há no estado de São Paulo 89,6% de atendimento (coleta) de esgotos, e 64,56% de tratamento —sim, parte do esgoto recolhido é descartada sem tratamento. No Brasil, o índice de coleta é de 52,4%.
Apesar disso, nos últimos anos, com a crise econômica, o saneamento básico sofreu cortes. Em 2018, sob a gestão de Geraldo Alckmin (PSDB) e depois Márcio França (PSB), o governo estadual gastou no serviço R$ 100 milhões a menos do que em 2013, quando despendeu R$ 768 milhões na área, em valores corrigidos. 
Sabesp, empresa de capital aberta controlada pelo governo estadual, atende cerca de 60% da população paulista. Nas cidades servidas por ela, o índice de esgoto tratado é de 76%. 
A empresa afirma que tem atuado junto ao Ministério Público para ao menos levar água aos pontos excluídos do saneamento, com uma tarifa menor. O programa Água Legal já levou água potável a 100 mil residências no Jardim Ângela, extremo sul da capital.
“Nesse caso, uma pessoa pagava R$ 50 ao mês para ter água em casa. Ela ficou felicíssima porque iria pagar R$ 7”, diz Benedito Braga, presidente da empresa. A Sabesp pretende ampliar o projeto para atender 700 mil pessoas excluídas do sistema de água, incluindo a Chácara Três Meninas.
Para Braga, em casos como esse, o principal problema não é saneamento. “É um problema social, habitacional que nós temos no país. Temos pessoas que não têm onde morar e que moram em áreas que não detêm a posse do terreno.” 
Só na Grande São Paulo, estima a empresa, são cerca de 3 milhões em favelas e invasões, sem acesso a saneamento. 
Apesar da questão social, porém, residências de classe média e alto padrão também contribuem com o despejo irregular de esgoto. 
Há estimativa de que só na bacia do rio Pinheiros 20 mil residências poderiam ter coleta esgoto, mas não a possuem porque seus donos não querem ou mesmo desconhecem o problema. Até mansões no valorizado bairro do Panambi, zona sul, estão no meio. 
Maria Auxiliadora Silva, 58, mostra o entorno da comunidade Chácara Três Meninas no Jardim Helena, onde vive, na periferia de São Paulo
Maria Auxiliadora Silva, 58, na Chácara Três Meninas; mangueira azul leva água que comunidade usa para beber e tomar banho - Zanone Fraissat/Folhapress
 

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