Uma ficha amarelada pelo tempo, que pertenceu ao
extinto Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e hoje está no Arquivo Público do Estado de São Paulo, revela que cinco jovens estudantes foram indiciados em inquérito policial no dia 8 de outubro de 1968, com base na Lei de Segurança Nacional, porque “tomaram” o prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
O episódio da invasão da faculdade, que havia começado meses antes, em julho daquele mesmo ano, foi o primeiro de uma série de acontecimentos que acabaram se desdobrando na Batalha da Maria Antônia: conflito ocorrido nos dias 2 e 3 de outubro de 1968, entre alunos da USP e do Mackenzie, que transformou essa rua onde ficavam os campi das duas universidades em praça de guerra, com a morte de um estudante. O atirador nunca chegou a ser identificado.
O ano de 1968
havia começado tenso no Brasil e no mundo. No Rio de Janeiro, em março, o Restaurante Central dos Estudantes, conhecido como Calabouço, foi palco da morte de um secundarista pela ditadura militar. Ali, durante a repressão a uma passeata, a polícia invadiu o local e atirou no jovem Edson Luís.
Na Tchecoslováquia, o movimento denominado
Primavera de Praga, liderado por intelectuais reformistas do Partido Comunista Tcheco, mobilizou a população na tentativa de promover mudanças no país, então sob ocupação da União Soviética —que reprimiu as manifestações.
No dia 2 de outubro, aconteceu no México o Massacre de Tlatelolco, quando estudantes invadiram as ruas da capital em protesto contra a ocupação militar da Universidade Nacional Autônoma, em greve por nove semanas. Manifestantes e transeuntes, incluindo crianças, foram atingidos por disparos das tropas de repressão. Ao anoitecer, centenas de corpos se amontoavam na praça. O número exato de vítimas nunca foi divulgado.
Nesse contexto mundial, tem início no mesmo dia 2 de outubro o conflito da Maria Antônia, em São Paulo.
De um lado estavam os alunos da USP, que lutavam por uma reforma universitária e pela criação de uma assembleia paritária, formada por estudantes, funcionários e professores, como órgão máximo e soberano da instituição, para traçar suas diretrizes.
Do outro, universitários do Mackenzie alinhados à extrema direita, alguns militantes do chamado CCC (Comando de Caça aos Comunistas). O estopim foi aceso quando os uspianos resolveram montar pedágios na rua com o objetivo de angariar recursos para o congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), que aconteceria naquele mês.
Por volta das 10h do dia 2 de outubro, um grupo que pedia pedágio foi atacado por uma “chuva de pedras”, conforme depoimentos depois prestados por alguns desses participantes. Houve reação e os ânimos se acirraram.
Segundo relatos, o armamento inicialmente usado, de paus e pedras, foi acrescido por parte dos mackenzistas de panos embebidos em ácido, que teriam causado queimaduras em alguns alunos da USP. Ao fim do dia, o prédio da Faculdade de Filosofia tinha vidros quebrados por todos os lados.
No dia 3, a manhã transcorreu sem incidentes, até que por volta das 11h estudantes da USP penduraram na fachada da faculdade faixas com frases contra o CCC. Neste momento começou um novo ataque por parte dos alunos do Mackenzie, postados no alto de um dos edifícios de seu campus. Eles já não usavam apenas pedras e paus: foi iniciado um bombardeio com coquetéis molotov e até tiros com arma de fogo, segundo testemunhas.
Por volta das 12h30 um secundarista, José Guimarães, 20 anos, que estava participando da manifestação junto aos alunos da USP, foi atingido por uma bala calibre 45 e tombou morto. A partir daí instaurou-se total descontrole: carros foram tombados e incendiados e uma multidão saiu em passeata pelas ruas do centro da cidade quebrando tudo que via pela frente.
Cinco décadas depois desses episódios, o relançamento de dois livros pela atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, com
distribuição da Edusp (Editora da Universidade de São Paulo), a partir de 3 de outubro, joga luzes nesses acontecimentos já esquecidos por muitos e pouco conhecidos pelas novas gerações.
O primeiro deles, “Maria Antônia: Uma Rua na Contramão”, organizado por Maria Cecília Loschiavo dos Santos, foi lançado pela primeira vez em 1988 e traz depoimentos de professores e pessoas envolvidas nos conflitos, como o crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017), o economista Paul Singer (1932-2018) e o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, 87, que davam aulas na faculdade da USP.
O segundo volume, “Livro Branco sobre os Acontecimentos da Rua Maria Antônia”, traz relatos colhidos no calor da hora dos fatos por funcionários, vizinhos e protagonistas do conflito.
Embora tenha sido feita uma primeira e modesta edição do texto, também em 1988, é a primeira vez que ele será publicado com a íntegra de todos os documentos colhidos pela comissão de professores entre 4 e 8 de outubro de 1968, imediatamente após o conflito dos dias 2 e 3.
Na nota de apresentação desta segunda edição, surge uma história curiosa: o conjunto de documentos agora divulgados havia desaparecido durante o regime militar, mas sobreviveu graças ao professor Antonio Candido. Ele guardou uma cópia de todo o material e confiou a sua guarda à também professora Irene Cardoso.
Entre as novidades da segunda edição, estão fotos e recortes de jornais e revista, um texto de autoria do próprio Antonio Candido, intitulado “Notas para o Livro Branco”, e um manifesto dos alunos do DCE do Mackenzie, que defendiam a radicalização das ações alegando que eles haviam sido agredidos primeiro pelos estudantes da USP.
De acordo com o professor Abílio Tavares, organizador dessa reedição, o material inédito deve ter ficado fora da primeira edição, de 1988, por cautela dos editores. “Naquela época, apenas 20 anos depois dos fatos, ainda se temia um acirramento dos ânimos com a publicação de algo mais contundente”, diz.
Com relação aos cinco estudantes citados na ficha do Dops, o primeiro, Luiz Gonzaga Travassos, era presidente da UNE e comandou a resistência por parte dos estudantes naquele outubro de 1968. Antes disso, fora um dos líderes da Passeata dos Cem Mil,
manifestação da sociedade civil, artistas e estudantes contra o governo militar, realizada no centro do Rio, no dia 26 de junho de 1968.
No dia 12 de outubro, ele seria preso junto com outros 800 estudantes no Congresso da UNE, em Ibiúna, no interior de SP. Um ano depois, foi banido do Brasil, junto com outros 14 presos políticos, em troca da libertação do embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick, sequestrado por militantes de esquerda no Rio.
Depois de dez anos de exílio em Cuba e na Alemanha, Travassos retornou ao Brasil com a Lei da Anistia, em 1979, e passou a ganhar a vida como tradutor de alemão. Morreu no Rio, aos 37 anos, em 1982, num acidente de carro no bairro da Glória.
Outra citada na ficha é Catarina Meloni, 74, que cursava letras na USP e fazia parte da diretoria da UEE (União Estadual dos Estudantes).
Participante da ocupação da faculdade, ela não participou da Batalha da Maria Antônia porque havia sido presa um mês antes, durante o desfile militar do Dia da Independência do Brasil, quando um grupo de jovens promovia panfletagem contra o regime militar. “Eu estava lá no período da ocupação da faculdade, mas fui presa em 7 de setembro de 1968 e saí no dia 10 de outubro, com o mundo revirado”, diz Catarina.
Em seu livro de memórias, “1968: O Tempo das Escolhas”, ela, que se tornou especialista em literatura brasileira, lembra que entrou no movimento estudantil por “uma motivação pessoal e não altruísta”: apaixonou-se por um líder “bonito, culto, educado, cordial, alegre, bem-humorado, o máximo”.
Suas escolhas tiveram custo alto: a prisão e o exílio. “Tornei-me clandestina em 13 de dezembro de 1968”, escreve. “E acho que nunca saí completamente dessa condição. Desde então tenho vivido modalidades diferentes de clandestinidade, segundo a etapa por que passo e as circunstâncias que me cercam. Clandestina dos outros e de mim mesma.”
Bernardino Ribeiro de Figueiredo, 71, o terceiro citado, era presidente do grêmio da Faculdade de Filosofia da USP. Participou ativamente da ocupação mas também não esteve na Batalha da Maria Antônia: foi preso no dia 28 de julho, numa passeata que reuniu cerca de 300 estudantes no centro de São Paulo.
Hoje professor aposentado do departamento de geologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), seu relato contribui para esclarecer as motivações ideológicas e intelectuais daqueles dias de 1968: “O movimento estudantil tinha como objetivo aumentar a participação dos estudantes e docentes nas discussões sobre a reforma universitária da USP e oferecer resistência à ditadura aliando-se a experiências de lutas que vinham ocorrendo em muitos outros países”.
“Em 1968 fui condenado por Tribunal Militar, à revelia, com prisão preventiva decretada em janeiro de 1969”, conta. “Nessa condição de perseguido político, não regressei mais ao curso de geologia e saí do país no final de 1969, voltando apenas após da aprovação da Lei da Anistia.”
Bernardino conta ter residido no Chile durante todo o governo de Salvador Allende (1970-1973) e na Suécia no período de 1973-1980, países onde completou os seus estudos até a obtenção do doutorado em ciências. “Regressei ao Brasil para assumir a função de professor e participar da implantação do Instituto de Geociências da Unicamp, a partir de abril de 1980. Nessa universidade realizei a minha carreira acadêmica até a aposentadoria em 2013.”
Quem não regressou foi o quarto citado na ficha. Marcelo Augusto Abramo, 70, cursava antropologia na USP, participou da ocupação da faculdade e também foi preso na passeata do centro, em 28 de julho, junto com Bernardino.
Depois disso exilou-se no México, em 1969, e lá ficou. “Os episódios de 1968 mudaram completamente a minha vida”, diz ele, hoje pesquisador do Instituto Nacional de Antropologia e Historia do México. “Não quis voltar na anistia de 1979 e construí toda minha vida longe do meu país.”
O quinto citado,
José Dirceu de Oliveira e Silva, 72, tornou-se figura conhecida de todos os brasileiros. Presidente da UEE na ocasião dos fatos, liderou a resistência dos estudantes na Batalha da Maria Antônia e promoveu um ato de protesto pelas ruas do centro depois da morte do secundarista no conflito. Em seguida, foi preso no congresso da UNE, em Ibiúna, e também banido do Brasil no episódio da troca pelo embaixador Charles Burke Elbrick.
Depois dos anos na clandestinidade, José Dirceu se tornou um dos fundadores do PT, em 1980, e o homem mais forte do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2002. Deixou o governo acusado de ser o mentor do mensalão. Desde então sofreu uma série de condenações na Justiça por crimes de corrupção.
Solto desde junho por um habeas corpus do STF, Dirceu não quis falar sobre os acontecimentos de 1968. Mas em um dos livros agora relançados, “Maria Antônia: Uma Rua na Contramão”, ele diz que “a Maria Antônia era uma rua privilegiada, concentrava estudantes, conversas, ideias, amores” —uma rua que impressionou o jovem do interior e o levou a “dar um salto para o movimento estudantil”.
Passados 50 anos, uma volta pela Maria Antônia de hoje mostra que a política não dá mais o tom por ali. Sentados na mureta da antiga Faculdade de Filosofia, hoje Centro Universitário Maria Antonia, estudantes do vizinho Mackenzie admitem o desinteresse pelo assunto.
“Política não é mais assunto predominante aqui”, diz Felipe Esteves, 18, que cursa o primeiro ano de publicidade. O colega José Henrique Kfouri , 19, do mesmo curso, completa: “Preferimos falar de coisas do dia a dia, como baladas, meninas ou assuntos ligados a nossa faculdade.”
Dentro do Centro Universitário Maria Antonia, hoje um órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP para promoção de exposições de arte e cursos na área de humanidades, a estudante Thais do Nascimento Pedro, 20, discorda dos colegas mackenzistas: “Política ainda é um tema relevante dentro da USP. Não tanto a questão partidária, mas sobretudo aspectos como tolerância, desigualdade etc.”
No Bar do Zé, na esquina com a rua Doutor Vila Nova, em mesas onde antes se discutiam táticas para driblar a censura, hoje o assunto predominante é futebol. “Parece que o povo cansou de tanta roubalheira e agora prefere esfriar a cabeça com outras coisas”, diz o gerente Rodrigo Pinto Ribeiro, 35. “Só mesmo quando vem alguém daqueles tempos, para matar a saudade, é que relembram aquelas histórias do passado. No mais, a vida seguiu para outro rumo.”
A Maria Antônia segue desconhecida para a maioria da população, como era em 1968. Num dos depoimentos do livro agora relançado, a ex-estudante Maria Adélia Aparecida de Souza lembra que naquele ano, quando avisou a mãe que iria ocupar a faculdade e dormir na Maria Antônia, ouviu dela: “Filha, essa é uma amiga que não conheço? Deixe o telefone dela para qualquer coisa”.
Fernando Granato, jornalista e escritor, é autor, entre outros livros, de “O Negro da Chibata” (Objetiva) e “Nas Trilhas de Quixote” (Record).