domingo, 30 de setembro de 2018

Promiscuidade e castidade, Drauzio Varela, FSP

Drauzio Varella


Estudo australiano revê mitos dos homens promíscuos e das mulheres castas

Ilustração
Líbero/Folhapress
Reduzida à essência biológica, a vida é um eterno crescei e multiplicai-vos.
Descendemos de indivíduos que adotaram estratégias sexuais capazes de lhes garantir acesso à fecundação. Os genes dos que falharam nesse quesito foram eliminados do "pool" genético da humanidade.
Observador atentíssimo da natureza, Charles Darwin nos ensinou que nas aproximações para o acasalamento o desafio de ser escolhido recai sobretudo sobre os machos, na maioria das espécies. Por essa razão, eles desenvolveram habilidades funcionais e caracteres estéticos atrativos para o sexo oposto: a cauda dos pavões, o canto dos sabiás, a musculatura do leão.
No século 20, Angus Bateman e Robert Trivers concluíram que características como essas aumentam a probabilidade de transmissão dos genes masculinos à descendência, já que as fêmeas precisam ser seletivas, porque investem na reprodução da espécie muito mais energia do que a necessária para produzir espermatozoides. No caso dos mamíferos, o investimento envolve os custos energéticos e os riscos da gestação, do parto e da amamentação.
Enquanto nelas a atração sexual privilegia os machos que aumentam a probabilidade de sobrevivência da prole, para eles o número de encontros sexuais é que potencializa as chances de sucesso reprodutivo.
Cordelia Fine e Mark Elgar, da Universidade de Melbourne, na Austrália, publicaram uma revisão sobre esse tema, com o título de "Homens Promíscuos, Mulheres Castas e Outros Mitos".
Segundo eles, apesar de os princípios de Bateman-Trivers explicarem as principais estratégias sexuais do reino animal, nas sociedades humanas a dinâmica de gêneros ganha complexidade incomparável, uma vez que a maioria dos atos sexuais não tem finalidade reprodutiva; serve a interesses variados, como o prazer e o estreitamento de laços afetivos.
Além dessa característica fisiológica, a dicotomia clássica —que contrapõe machos ávidos por inseminar o maior número possível de parceiras e fêmeas com interesse oposto— foi subvertida pelo controle da fertilidade trazido pela pílula e por oportunidades e costumes sociais mais equitativos.
A autonomia feminina que veio à tona com a revolução sexual abalou o tabu da virgindade, criou a possibilidade de acesso a maior número de parceiros sexuais e a profissões em áreas dominadas por homens durante gerações.
Se analisamos as perspectivas dos gêneros de acordo com a disposição para correr riscos, característica até hoje considerada tipicamente masculina, a complexidade aumenta.
É a percepção dos custos e benefícios de uma ação perigosa que explica a decisão tomada pelo indivíduo: um piloto de Fórmula 1 pode considerar insano mergulhar em águas profundas. Da mesma forma, a avaliação dos riscos e vantagens da atividade sexual pode levar a comportamentos distintos em mulheres e homens, por causa de diferenças biológicas, normas sociais ou ambas.
Por exemplo, no sexo casual, a quase certeza de que o homem atingirá o orgasmo e de que não será agredido pode compensar o risco de adquirir doenças sexualmente transmissíveis. Para a mulher, ao contrário, chegar ao orgasmo será mais problemático, além do risco de violência, gravidez indesejável e infecções. Para desestimulá-la, ainda, será rotulada de "fácil", conotação repressora, preconceituosa, de forte conteúdo moral.
A ideia de que uma sociedade com igualdade de direitos civis e comportamentos sexuais seria capaz de apagar as diferenças nas estratégias reprodutivas de mulheres e homens é considerada irreal por muitos, com o argumento de que o sexo tem papel importante na configuração do cérebro.
No entanto, os filhos não herdam apenas o genoma dos progenitores, mas o ambiente social e ecológico aos quais seus genes serão forçados a se adaptar. Se o desenvolvimento de características físicas relacionadas com o sexo sofre influência do ambiente, por que razão o comportamento sexual também não o faria?
No histórico da seleção natural a que nossa espécie foi submetida, terão feito sentido as vantagens do comportamento exibicionista dos homens interessados em fecundar o maior número possível de mulheres, obrigadas a se defender deles.
Os avanços culturais das últimas décadas, entretanto, criaram padrões distintos de recompensas, punições e regras sociais que permitiram a mulheres e homens adotar comportamentos e preferências sexuais cada vez mais semelhantes.
Drauzio Varella
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Antonio Prata Antonio Prata Que que a gente faz?, FSP

Não há outra saída a não ser fazer essa joça dar certo

Uma amiga me liga, arfante. Acabou de ser assaltada no táxi. Arma na cabeça, coisa e tal. Quando se acalma um pouco vem um estranho sentimento de gratidão, afinal podia ter sido pior, está viva, não se feriu, que sorte a filha de 11 meses não estar junto. Depois faz-se em silêncio que é pura desolação. "Que que a gente faz?", me pergunta.
Ilustração
Adams Carvalho/Folhapress
Ela não se refere ao assalto, a como diminuir os índices de violência na cidade de São Paulo. A pergunta é mais ampla, a mesma que nos fazemos há alguns anos quando cai um prédio, uma vereadora é assassinada, um museu pega fogo, uma bala perdida mata uma criança, uma policial de 27 anos, de folga, é assassinada pelo PCC. 
Meus filhos têm cinco e três anos. A vida deles coincide com adegringolada nacional. (A mais velha nasceu em julho de 2013. O parto ia ser num hospital na Paulista, mas no dia em que rompeu a bolsa havia uma manifestação em frente ao Masp e a médica sugeriu irmos para outra maternidade —a médica, aliás, estava na manifestação).
Tal coincidência me traz uns sentimentos meio contraditórios: estes últimos cinco anos foram dos mais tristes da história do país e dos mais felizes da minha vida. Tiro os olhos do jornal cheio de desgraças e aqui do lado, na sala, vejo uma mini-Batman com tiara luminosa de chifrinhos vermelhos puxando por uma corda um triciclo com um moleque de cueca e luvas do Homem-Aranha. (Há poucos antídotos mais potentes contra o banzo atual do que uma mini-Batman com tiara luminosa de chifrinhos vermelhos puxando um triciclo com um moleque de cueca e luvas do Homem-Aranha). Um lado meu suspira, aliviado. Outro lado se angustia: "Que que a gente faz?". 
No começo do ano, passei com a minha filha pelo estádio do Pacaembu, onde uma enorme fila de torcedores sem camisa aguardava a abertura das bilheterias. "Eles são índios, papai?". Meu radar politicamente correto imediatamente ligou o alerta laranja: "Não, eles não são índios, eles são pessoas da cidade como eu e você". "Mas eles são marrons e não usam camisa. Eles são índios". Então abaixei um pouco a guarda e constatei que de fato nós éramos brancos e eles eram pretos e pardos e provavelmente havia naquela fila mais DNA indígena do que dentro do nosso carro. Senti um gosto amargo: minha filha estava tendo uma das primeiras aulas práticas de segregação racial e social. 
Se eu quisesse mandar um sincerão, diria "Veja, a base da população é composta por pretos e pardos e a ponta por brancos, porque os brancos vieram pra cá e escravizaram os índios e trouxeram milhões de escravos negros e mesmo depois de quase 150 anos da abolição nós temos conseguido, com rigor e aplicação, manter inalterada a pirâmide". 
Sem nenhum conforto para dar à minha amiga e numa atroz falta de inspiração, respondo à sua pergunta com a mesma pergunta: "Que que a gente faz?". "Não sei", ela diz e então conta, melancólica, que anteontem a filha deu seus primeiros passos. Três.
Era pra ser a epítome do pessimismo, era pra emburacarmos de vez e nos perguntarmos que país deixaríamos para os nossos filhos, mas a notícia daqueles passos solapa meu derrotismo, é quase como um chamado genético, uma ordem inscrita há milênios nas profundezas do meu DNA: se é aqui que viverão a mini-Batman, o Homem-Aranha de cuecas e a neocaminhante, não há outra saída a não ser fazermos essa joça dar certo. 
Concordo que a premissa é meio troncha, amigo, mas estamos tão desiludidos que qualquer farrapo serve como bandeira, vai?
Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.

Grande SP terá parque com elevador e passarela dentro da mata atlântica, FSP

Às margens da Imigrantes, local preza por sustentabilidade e acesso a todos

vista aérea do Parque ecológico Imigrantes
Vista aérea do Parque ecológico Imigrantes - divulgação
Jairo Marques
SÃO PAULO
​Subir a nove metros de altura até uma passarela plana de onde é possível contemplar a copa das árvores, brotos de flores e de frutos. Do alto, também fica mais fácil ver a dança dos passarinhos e o movimento da vegetação de mata atlântica com a força vento.
A partir de 29 novembro, de graça, esse passeio e a experiência de um contato muito próximo com a natureza vão estar quase ao lado da cinza e concretada realidade da Grande São Paulo, com a inauguração do Parque Ecológico Imigrantes, no km 34,5 da rodovia dos Imigrantes, a cerca de meia hora da capital paulista.
O local foi erguido ao custo de R$ 14 milhões, com recurso da Fundação Kunito Miyasaka, ligada à comunidade do Japão no Brasil. Ele ostenta duas premissas principais: é totalmente acessível a todos os públicos e sustentável, sendo que 94% do material usado na construção foi reutilizado dentro da própria instalação.
[ x ]
Para dar oportunidade de ser desfrutado por qualquer pessoa, dois elevadores e uma espécie de funicular dão um ar futurista ao parque, ao mesmo tempo em que levam conforto e viabilizam o passeio de cadeirantes, idosos e a quem tem mobilidade reduzida. O sistema sobe a 45 m de altura, no topo da mata, juntamente com uma passarela de 500 metros, feita de lâminas de resíduos de garrafas pet, de madeira e de restos de obras.
"Fizemos o parto, mas ainda queremos ver o filho se formar. Durante oito anos, fizemos tudo o que dependia de ajuda financeira, de licenças e autorizações. Agora falta ver as pessoas aproveitando esse sonho, ver as pessoas apreciando a mata, desfrutando do visual e mudando a mentalidade ecológica diante do que virem", afirma o ambientalista Ricardo Pimentel Maluf, do comitê executivo do parque e um dos idealizadores do local.
Além da suspensa, outras cinco trilhas, essas pelo meio do mato e inicialmente sem acessibilidade, também podem ser exploradas pelos visitantes, sempre com o acompanhamento de monitores.
A expectativa é que até 300 pessoas, a maior parte crianças em visita escolar, transitem pelo local todos os dias. Vai ser preciso agendar o passeio pelo site do parque (www.parqueecologico imigrantes.org.br).
Outro destaque da instalação são três lagos artificiais, que são mantidos por água captada da chuva e ornamentados com plantas e pedras.
Colocados em pontos estratégicos do parque, os lagos possibilitam ao visitante estarem sempre com um leve barulho de cachoeira por perto.
Mas o ponto alto do passeio é sem dúvida a subida do morro em uma espécie de funicular, todo transparente, que passa a sensação de estar atingindo o ápice da floresta. Feito com tecnologia brasileira, o equipamento leva três minutos para escalar de maneira inclinada 45 metros de altura. Não faz barulho e comporta até seis pessoas por viagem ou dois cadeirantes e duas pessoas em pé.
Logo que o usuário sai do funicular, uma outra sensação —que pode ser inédita para quem sempre viveu em grandes cidades— entusiasma: uma espécie de túnel feito de folhas e galhos de árvores passa a impressão de ser um portal que leva diretamente para o contato com árvores, flores, arbustos e insetos.
Desse ponto, é possível, a depender da época do ano, ver dezenas de tipos de borboletas, que chegam a pousar nos visitantes. Do alto também se vê toda a dimensão do parque, o movimento dos carros passando pela rodovia, os edifícios no horizonte e mais diversidade de árvores e plantas.
Um jardim sensorial, com ervas aromáticas, plantas e flores para tocar, cheirar e experimentar também se localiza nessa porção do parque, que, no futuro, terá uma concha acústica para pequenas apresentações e apreciação dos sons da floresta.
Hélio Oda, da fundação que patrocinou o parque, diz que uma das missões da instituição, que banca outros 30 projetos, é preservar a mata atlântica e a natureza. 
"O terreno do parque pertencia à fundação há décadas e era nosso desejo vê-lo protegido, valorizado por suas riquezas. Além de servir para visitação, a área [de 484 mil m²] vai estar aberta para pesquisas, principalmente as voltadas à educação ambiental", afirma Oda.
Segundo Flávio Lessa, coordenador de gestão socioambiental do local, o parque "possui uma vegetação em estágio secundário avançado de recuperação". Espécies como palmito jussara, embaúbas, manacás, aroeiras e samambaias estão presentes. A área registra também animais como raposas, antas, pacas, gatos-do-mato, veados, tatus, gaviões-carcarás e onças-pardas.
O local vai contar com cinco torres —atualmente só há uma instalada— de geração de energia eólica e solar. O aço utilizado na construção é reciclado e não houve processo de soldagem, apenas encaixes e uso de parafusos.
A maior parte dos funcionários da atração é de moradores de comunidades que ladeiam o novo parque.