domingo, 25 de maio de 2014

Rubens Paiva: presente!


A racionalidade da maquinaria do desaparecimento não contava com a reviravolta da maré da história

24 de maio de 2014 | 16h 00

Francisco Foot Hardman
Retrato. O deputado com a muLher, Eunice: morto sob tortura no DOI-Codi em 1971 - Arquivo de família
Arquivo de família
Retrato. O deputado com a muLher, Eunice: morto sob tortura no DOI-Codi em 1971
Francisco Foot Hardman é professor de Teoria e História Literária na Unicamp
Assassinos da memória dependem, entre outros auxiliares funcionais, desses “agentes da desaparição”, ofício que as ditaduras militares e totalitárias da história contemporânea tornaram peça indispensável na produção e reprodução deliberadas do esquecimento. Configuraria até uma atividade específica a compor perfil dos afazeres daqueles funcionários do aparelho repressivo do Estado designados, na cadeia hierárquica de comandos, para forjar cenas mentirosas da morte e apagar todo e qualquer rastro de evidência do corpo torturado e sem vida, de seus restos em diferentes escalas da decomposição e, mais do que nunca, de sua identidade. Quantas habilidades clandestinas requer tamanho atentado às leis da natureza e da cultura dita civilizada! Quantos mecanismos humanos mobiliza a sanha desumana do Estado assassino! Mas nada que a racionalidade técnico-burocrática do Estado moderno não seja capaz de meter em movimento.
Se a maquinaria do esquecimento fosse infalível, nosso déficit civilizatório já teria ultrapassado a linha do completo colapso e estaríamos plenamente mergulhados na Era da Barbárie Superior, isto é, aquela que soube potencializar, científica e tecnologicamente, desde Auschwitz e Hiroshima, a eliminação genocida e o assassinato da memória como atributos inarredáveis do mundo humano contemporâneo. Muitas vezes podemos nos perguntar se já adentramos, com efeito, este período, para cujo cenário apocalíptico seria obrigatório agregar, nuclearmente, o Antropoceno como último elo da vida planetária, como derradeiro ato de tragédia. 
Mas, no movimento da história, o vaivém das marés pode, inesperadamente, modificar a dinâmica repetitiva da máquina da morte e do esquecimento. E isso não só quando, por exemplo, ocorrem revoluções. Também na passagem dos dias, na continuada e às vezes desesperadamente monótona sequência da cronologia, as ondas podem trazer, com força, o passado que julgávamos morto. E, com ele, os mortos, que julgávamos desaparecidos, voltam a falar. E seus restos adquirem nome, rosto, memória, identidade narrativa.
E os perpetradores do mal, criminosos contra a humanidade, solitários em sua certeza de obedientes serviçais do Estado dominado pelo aparato policial-militar, que lhes concedia a ilusão de um poder eterno, em seu arrogante desafio ao direito, à ética, à resistência e à memória, são agora relegados ao chão de sua repelente e mísera condição de carrascos. Morrerão, quem sabe, impunes e sem culpa, como bons psicopatas para os quais torturar, matar e fazer cadáveres desaparecerem eram apenas ossos do ofício, ou até, na ideologia dominante própria da guerra fria, “missão patriótica”. 
Mas o revés da história, neste 2014 que nos restitui, com tantas violentas verdades, o golpe de 1964 e o pesadelo daquele “dia que durou 21 anos” – para retomar o título certeiro do excelente filme de Camilo Tavares –, acaba por produzir efeito até certo ponto inesperado. Os algozes da ditadura militar, entre eles os cinco militares ora indiciados pelo Ministério Público Federal por homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual no caso do deputado federal cassado Rubens Paiva, independente de futura e desejável condenação judicial, permanecem aderidos às próprias sombras das quais fizeram de tudo para se livrar. São as sombras de suas silhuetas nos porões da Aeronáutica e do Exército que serviram para a tortura e morte de Paiva e de muitíssimos outros opositores. A racionalidade da maquinaria do desaparecimento não contava, evidentemente, com a reviravolta da maré da história. Com a sobrevivência e coragem de algumas testemunhas. Com a preservação e acesso, mais de quarenta anos passados, a alguns documentos irrefutáveis.
Esta lei de aderência do mal aos próprios cenários submundanos do maquinário de terror do Estado, essa colagem do que restou de consciência nesses seres amigos da dor e da morte ao solo sanguinolento de porões acusticamente mal vedados (talvez pela fé cega na impunidade ou por perversão sado-exibicionista) é como certa vertigem labiríntica da qual será impossível sair. Podem ainda sorrir, alguns deles, pisando o chão tortuoso de nossa “transição transada” que lhes garantiu, até aqui, a ilusória medalha do “dever cumprido”. Mas quando este frágil chão cede, cola-se no agente do mal a sombra que pensava ter deixado para sempre no porão, junto ao codinome de sua brutalidade.
De outro lado, nós, amigos da memória, continuaremos a ensinar a nossos estudantes, filhos e netos porque devemos adotar como palavra de ordem unificadora a perspectiva “Ditadura nunca mais!” Para isso, será sempre altamente instrutivo retornar à literatura, ao cinema, ao teatro, à música e outros muitos discursos da resistência para nos aproximarmos daquele tempo e daquelas vozes.
Assim, Rubens Paiva se faz de novo presente e tem seu mandato restaurado. Não apenas por sua viúva Eunice e pelos filhos Vera, Marcelo, Eliana, Ana Lúcia e Beatriz. Não só pelos tantos outros filhos e entes próximos dos mortos e desaparecidos da ditadura. Mas igualmente pelos milhões de brasileiros que hoje continuam a protestar nas ruas, a lutar e a crer na mudança social profunda. E a fazer da memória instrumento da vida boa e justa contra o esquecimento orquestrado.

País compacto


Escritor lusitano fala de uma São Paulo que não é nem Portugal nem Brasil: ‘É um problema sozinho ou uma solução sozinha’

24 de maio de 2014 | 16h 00

Valter Hugo Mãe
Minhocão no domingo. ‘Pura liberdade de expressão e íntima procura da felicidade’ - DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO
Minhocão no domingo. ‘Pura liberdade de expressão e íntima procura da felicidade’
Valter Hugo Mãe, escritor português nascido em Angola, é autor, entre outros livros, de 'A máquina de fazer espanhóis' e 'O filho de mil homens' (Alfaguara). Este texto saiu originalmente no jornal Público.
São Paulo é um país compacto. Os edifícios acumulam-se como se precisassem de garantir segurarem-se uns nos outros com um braço esticado. As ruas ficam irregulares, serpentes emaranhadas no dorso das quais gente e automóveis passam num equilíbrio esperto. São Paulo é para espertos.
As serpentes são tão sedutoras quanto terminais, e há uma língua bífida procurando alimento incansável. Atarefada. Adoro a portuguesa língua bífida do Brasil. Isso de ser lusa e índia, de ser paisagem campestre e construção. O português do Brasil é uma babélica solução de sucesso.
Os taxistas perguntam-me como fui arrumar de falar tão bonito. Digo que estou num outro Portugal. Um senhor respondeu-me que São Paulo não é nada, nem Portugal nem Brasil. É um problema sozinho. E eu perguntei se não seria uma solução sozinha. Ele achou que sim. Só por existir solução se podia formular o problema. Rimos.
Umas moças passavam para o caríssimo shopping Iguatemi. Estavam de pernas abundantes à mostra. Ele comentou: perninha de asfalto, trabalhada meticulosamente a salto alto. As melhores pernas do mundo. Rimos. A nova garota da nova Ipanema. Sem praia. Só praça e avenida. Um amor em cada segundo. Todos os homens são candidatos. Achei demasiado generoso. Mas quero acreditar.
Pode levar anos a criar conforto. Quando o código bem encriptado da metrópole começa a ser quebrado, São Paulo é uma força bruta, uma central eléctrica que opera no coração. Ficamos com o coração predial, quer dizer, feito de assoalhadas, andares, janelas e terraços, vistas, esconsos de subir e descer, vãos, síndicos que dizem sim, sorriem. Montes de gente. Ficamos com montes de gente no coração. Como um verdadeiro condomínio.
O coração arranha os céus. É verdade que em cidade gigante o coração também sabe crescer. Ele pode bem arranhar os céus.
Domingo cedo, o minhocão voador está fechado ao trânsito, a folia da saúde põe gente a correr, andando, passeando os cachorros, paquerando num certo flagrante descomplicado. Num país compacto não dá para complicar o desnecessário. As pessoas ficam satisfeitas com a normalidade. Tudo o resto é pura liberdade de expressão e íntima procura da felicidade. Gostamos todos de olhar e ser olhados. No minhocão, domingo de manhã, não há gente feia. Somos todos desportistas e lindos. Passamos lindos ao nível do segundo ou terceiro piso dos prédios. Somos tão exuberantes quanto copas de árvores. Poderíamos acolher pássaros, não seria nada de estranho. Sentimos que qualquer coisa pode acontecer. Qualquer coisa boa, quero dizer.
Há uma mulher a vender água de coco bem fria. Diz umas palavras, recebe dois reais ou três. Acerta com a lâmina no coco e tem todos os dedos intactos. Perguntei se algum dia deu medo. Ela diz que não. No início dava raiva, por ser lenta a servir os clientes. O tempo dá pressa ao trabalho e dá lentidão ao amor.
Fiquei a matutar nessa ideia. O tempo dá pressa ao trabalho e lentidão ao amor.
Respondi-lhe que ia anunciar a alguns homens passando que ela estava ali disponível. Ela gritou. Disponível mas em segredo, que o seu marido ainda abria coco mais certinho do que ela. Para lhe abrir a cabeça, ele precisava só de um dedo. Quando a cumprimentei com um até logo, ela murmurou: mas diz, sim, baixinho. Se for de valer a pena, a gente morre por amor.
São Paulo é um país assim. De valer a pena. Contendo tudo, os perigos enrolados nas coisas boas, as aventuras, as esperanças, a inexistência da fealdade, a sensação intensa de estarmos vivos, de termos sempre alguém. Em São Paulo temos sempre alguém. Conta-se que há maluco para tudo. Há, claramente, uma maluca para nós. Que maravilha, saber que somos sempre alguém para alguém.
Só em lugar pequeno é que há quem fique proscrito. Lugar grande absorve. Todas as pessoas renascem ao virar da esquina. Todas as pessoas renascem ao descer de um transporte público. A oportunidade de voltar a ser feliz está na base de cada instante.
Em São Paulo, todas as pessoas renascem ao virar da esquina. Isso faz-me tão bem. Gosto por de mais.

Apologia do boné


Lei que veta uso do acessório no Rio violenta um símbolo de identidade da periferia

24 de maio de 2014 | 16h 00

MV Bill
'Bonezaço' ocupou o Parque Madureira - Fabiano Rocha / Agência O Globo
Fabiano Rocha / Agência O Globo
'Bonezaço' ocupou o Parque Madureira
MV Bill, rapper, documentarista e escritor carioca, é co-autor, com Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares, de'Cabeça de porco' (Objetiva, 2005). Seu último CD é 'Monstrão' (2012). 
Vivemos numa época assustadoramente violenta. Sair para o trabalho ou mesmo para comprar pão podem se tornar verdadeiras aventuras. Para ser franco, meus pais diziam o mesmo do tempo deles. Mas é fato que passam os anos e as formas de violência no Brasil tomam novos contornos. As pessoas têm medo de sair de casa e até de ficar em casa. Nesse caos diário, é preciso que a sociedade dê respostas em diversas áreas, como segurança e ética, entre outras - já que não é possível conviver com tantas anomalias sem reagir. No entanto, medidas totalitárias não são bem-vindas. Medidas que reforcem o preconceito e a discriminação não são bem-vindas. E medidas que só atingem grupos historicamente marginalizados também não são bem-vindas. 
Uma delas, a meu ver, é a bem-intencionada lei estadual que entrou em vigor no sábado, dia 17, no Rio. Em termos gerais, a lei 6.717/14, de autoria da deputada estadual Lucinha (PSDB-RJ), proíbe “o ingresso ou permanência de pessoas utilizando capacete ou qualquer tipo de cobertura que oculte a face nos estabelecimentos comerciais, públicos ou abertos ao público”. A justificativa da autora do projeto é “impedir que criminosos tentem driblar as câmeras de segurança durante abordagens e assaltos”, como afirmou em uma entrevista. 
Não tenho nada contra a deputada, inclusive acho coerente que as pessoas sejam proibidas de andar com rostos cobertos fora do carnaval e das manifestações populares. Em minha opinião isso deve mesmo ser proibido, pois significa um risco à segurança. No que se refere especificamente aos bonés, diz a redação da lei: “Os bonés, capuzes e gorros não se enquadram na proibição, salvo se estiverem sendo utilizados de forma a ocultar a face da pessoa”.
É aí que vejo o problema. A expressão “salvo se estiverem sendo utilizados” dá margem a uma subjetividade na interpretação da lei que não me agrada em nada. Nem a mim nem a nenhum dos milhões de brasileiros historicamente marginalizados que sabem, desde pequenos, que a tal da subjetividade nunca será favorável a nós. É a subjetividade que nos impede de ser bem atendidos em uma loja de grife. A subjetividade no Brasil é construída no contexto de uma sociedade que nivela pobres a marginais que estão sempre na iminência de cometer algum delito - aguardando apenas uma oportunidade e uma forma de se esconder.
Não podemos incluir uma manifestação cultural como é o uso de bonés numa esfera de critérios que nada tem de objetiva, nem está expressa na referida lei. Particularmente, não consigo imaginar os seguranças do Jockey Clube apreendendo os lindos chapéus dourados das socialites cariocas ou paulistanas com o argumento de que seus olhos precisam ser vistos pelas câmeras de segurança. Tão pouco os empresários que igualmente desfilam seus chapéus importados pelas tribunas da vida.   
Não estou aqui fazendo uma comparação apressada entre “os bacanas” e a periferia, nem estou dizendo que a lei em si vá contra os jovens das favelas. Estou chamando a atenção para uma reflexão que os parlamentares devem fazer sempre, antes de votar uma lei: ouvir todos os interessados, para levar em conta os hábitos e costumes de um povo. Como no Jockey Clube, em que os chapéus de luxo fazem parte de uma cultura - e suprimi-los seria uma violência contra ela -, no caso dos jovens de periferia ligados ao funk, ao rap e todas as manifestações culturais do hip-hop, o boné faz parte de uma cultura real, de construção de identidade, resistência e atitude. 
Não é de hoje que esses jovens sofrem com a agressividade de policiais que, em suas batidas, identificam os que usam bonés com bandidos. O boné incomoda talvez por ser exatamente um equipamento que identifica a origem e o orgulho dessas pessoas. Não seria o caso de ouvi-las antes de elaborar e votar uma lei como a 6.717/14? Mas não. O que ocorreu foi uma opção pela subjetividade de quem vai arbitrar sobre esse tema e julgar se o boné esta ou não dentro dos padrões da lei: gerentes de estabelecimentos comerciais, seguranças privados e policiais.  Não estamos aqui reproduzindo a lógica do “sabe com quem você tá falando”?
Eu também quero viver em um lugar seguro, onde o comércio funcione tranquilamente e as pessoas, seja nas favelas, nas periferias ou nos centros urbanos, tenham os mesmos direitos de ir e vir em paz. E tenham, inclusive, os mesmos direitos de terem suas culturas preservadas. 
Faço aqui uma “apologia” do boné porque não vou deixar de usar e não vou permitir que me achem um bandido por isso, como sempre acharam. Não me posiciono contra a lei para criar polêmica, mas porque penso de verdade que bonés, assim como outros tipos de chapéu e quaisquer peças de vestuário fazem parte de períodos históricos determinados e identificam pessoas e grupos que não podem ficar sob o julgamento arbitrário de cada um. 
Da mesma forma que peças memoráveis como a boina de Che Guevara, o chapéu-coco de Charlie Chaplin ou o chapéu de frutas de Carmem Miranda marcaram época, também poderemos lembrar dos bonés que meus amigos Dexter e Mano Brown, assim como tantos outros MCs, sempre usaram - e se tornaram referência para muitas pessoas. Seja o chapéu do Gog, rapper de Brasília, ou o do grande mestre Cartola, da Mangueira, cobrir a cabeça com histórias não pode ser sinônimo de cobrir o rosto de vergonha - por terem te impedido de circular com algo que, para muitos, é quase uma parte do próprio corpo.
Leis foram feitas para serem cumpridas, mas também emendadas, questionadas ou revogadas. Acredito que a intenção foi boa e torço para que ela dê certo. Porém, seus critérios de aplicação têm que estar expressos na própria lei e não baseados no que cada um acredita. Se for assim, aí tiro o meu boné pra lei.