[RESUMO] Ainda não se sabe quais medidas do Doge (Departamento de Eficiência Governamental), chefiado por Elon Musk até a semana passada com base em mentiras e estratégia de choque, vão persistir, mas a experiência dos EUA mostra a urgência da agenda de transformação do Estado brasileiro para tornar o serviço público do país mais efetivo e resiliente a choques externos.
Elon Musk caiu atirando, possivelmente tomando cetamina. Na berlinda há dois meses, chutou o balde criticando Trump pelo aumento de gastos públicos. Logo depois, saiu do governo.
O segundo mandato de Trump completou cem dias, e o que dominou nossa atenção foi sua política de comércio exterior —para alguns, disruptiva, para outros, demencial. Isso acabou por eclipsar uma das iniciativas mais controversas e potencialmente consequentes do novo governo Trump: o Doge, a agência para eficiência governamental, liderada por Elon Musk.
Até aqui, a agência foi uma história de contabilidade criativa para tentar cortar US$ 2 trilhões em custos do governo federal —número inventado por Musk, como admitido por um de seus colegas— e de interrupção em serviços para a população dos EUA.
Se da guerra tarifária só se espera mais inflação e menor crescimento para todo o mundo, a estratégia de mentiras, "choque e apavoramento" de Musk para o Estado nos EUA pode, por vias tortas, acelerar debates positivos no serviço público em países como o Brasil, que necessitam valorizar os servidores, ao mesmo tempo que precisam de maior eficiência da máquina pública.
Francisco Gaetani publicou um longo balanço sobre os primeiros cem dias do Doge, que resume como "destruição e desorganização". Sobre o governo Trump como um todo, Gaetani adaptou um antigo provérbio: "Aos amigos tudo, aos inimigos nem a lei".
Ainda é cedo para dizer o que dos arremedos de Musk vai ficar de pé. Assim como na política anti-imigração de Trump, o Judiciário estadunidense vem julgando como ilegais diversas iniciativas do Doge. No entanto, instâncias superiores, como lembra Gaetani, têm muitas vezes revertido decisões contrárias ao governo. Por outras vezes, como nas políticas de imigração, o governo simplesmente não acata decisões judiciais desfavoráveis.
Delírios do Doge à parte, nenhum país hoje pode ignorar uma detida análise de seus serviços públicos. Fica cada vez mais evidente a necessidade de atender melhor os anseios da população, em resposta a uma queda da confiança no Estado e nas instituições públicas. No Brasil, especificamente, 32% das pessoas afirmaram em 2023 ter muita ou alguma confiança no governo. Em 2010, esse número era 55%. Mais terreno fértil para os aventureiros.
Os modelos de Estado de bem-estar social pós-guerra ajudaram a reestruturar as nações europeias, provendo serviços públicos universais. Mas esses modelos foram alterados por reformas gerenciais durante os anos 1990, que, com uma lógica de eficiência, corte de gastos e diminuição do Estado, geraram efeitos muito diversos.
Entramos na década de 2020 com um diagnóstico claro, ainda que heterogêneo: os serviços públicos enfrentam problemas sérios. A eficiência prometida pelas reformas não se concretizou e, em muitos casos, agravou disfunções. Soma-se a isso a fragmentação do Estado, excesso ou ausência de procedimentos, falta de transparência e escassa participação social. Isso alimenta a crescente desconfiança nas instituições públicas, expressa também em eleições populistas que prometem retornar a um passado idealizado e inexistente.
No Brasil, o debate sobre reformas administrativas segue os movimentos internacionais, ainda que com atraso e lacunas. A administração pública estruturada por Getúlio Vargas na década de 1930 jamais alcançou todo o Estado. O decreto-lei 200, durante a ditadura, e a Constituição de 1988, assim como a reforma de 1995 liderada por Bresser-Pereira, propuseram mudanças importantes, mas nunca plenamente implementadas.
Em 2021, a PEC 32, proposta pelo governo Bolsonaro, trouxe novamente a discussão sobre reforma. No entanto, ao focar a eliminação da estabilidade do servidor sem enfrentar temas estruturais como carreiras, resultados e desempenho, a proposta revelou-se limitada. No final, acabou se transformando em instrumento para reforçar privilégios, principalmente na área da segurança pública.
Mas, para não ficar apenas no tom alarmante e crítico, a pergunta que quem deseja um país mais includente e democrático deveria se fazer é: que reforma devemos defender? Parte do impasse se deve à rejeição do termo "reforma" por setores progressistas, que o associam a agendas neoliberais. Mas é possível —e necessário— defender reformas para um Estado melhor, não menor. Evitar esse debate é permitir que termos como eficiência e transparência sejam apropriados por quem não se preocupa com inclusão ou acesso a direitos.
Porque governos importam. No ensino fundamental, 83% das crianças brasileiras estão em escolas públicas. Na saúde, 76% da população não tem plano de saúde e conta inteiramente com o SUS. E, pasmem, o serviço público brasileiro é bem avaliado pela população. Em recente pesquisa Datafolha, 81% o consideram ótimo, bom ou regular.
É urgente a apropriação do debate por defensores de um Estado mais justo e eficaz. Chamar reformas de "transformações do Estado", como faz o atual governo, é um passo, mas precisa vir acompanhado de um projeto coerente. Essa ausência de agenda é um vazio que enfraquece o progresso do país. Aqui destacamos alguns temas que deveriam ser centrais nessa discussão.
O primeiro é a qualidade dos serviços públicos. O Brasil realizou um feito extraordinário ao universalizar o acesso à saúde, à educação e a outros serviços públicos em poucas décadas. Isso se fez possível com o crescimento de servidores nos municípios, tendo o Executivo municipal partido de 2,3 milhões de vínculos em 1995 para 7,4 milhões em 2022. Mas essas carreiras, nos municípios, ainda recebem atenção e peso indevido em discussões sobre remuneração, avaliação e formação continuada.
Colocamos crianças na escola, garantimos atenção primária à saúde, expandimos o acesso à água, energia e benefícios sociais. No entanto, a qualidade desses serviços não acompanhou a expansão. Pesquisa recente mostra que 29% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais, o mesmo percentual de 2018.
As filas nos hospitais são imensas, com 57 dias de espera em média para atendimento em uma consulta, podendo chegar a mais de 170 dias em algumas regiões do país. Enquanto isso, 38% da população não é atendida por rede de esgoto, enfrentando ainda dificuldades de moradia, transporte e outros serviços essenciais.
A melhoria da qualidade e da efetividade dos serviços públicos deve ser a prioridade central de qualquer proposta de reforma. Aumentar a eficiência do serviço público é imprescindível, mas precisa ser orientada à solução de problemas —e não à simples perseguição de metas internas manipuláveis, sem impacto real na vida da população.
Nesse aspecto, aguarda-se deste governo um projeto de lei complementar que trate da gestão de desempenho de forma articulada com o desenvolvimento e a formação continuada dos servidores públicos. Isso é fundamental para orientar os 550 mil profissionais da administração federal direta e servirá também aos outros 11 milhões de servidores pelo Brasil, nos demais Poderes e esferas do Estado.
O segundo eixo central de uma agenda reformista deve ser fortalecer a resiliência do serviço público. Resiliência, aqui, significa a capacidade de instituições, políticas e servidores de responder rapidamente a choques externos como pandemias, mudanças climáticas, crises políticas ou econômicas ou ainda ataques autoritários. Para isso, é necessário combinar estabilidade institucional com flexibilidade para adaptação.
Uma administração pública resiliente precisa de processos claros, serviços responsivos, servidores qualificados, bem remunerados e protegidos legalmente. Mas também precisa de agilidade e capacidade de inovação. Nesse debate, tem ganhado força a ideia de estabilidade ágil, que propõe reformas capazes de proteger o serviço público ao mesmo tempo que promovem maior flexibilidade.
No Brasil, o exemplo mais evidente dessa discussão é a revisão do decreto-lei 200, ainda vigente desde a ditadura militar. Uma comissão foi instalada há um ano pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e pela Advocacia-Geral da União e está encarregada de propor justamente uma combinação entre estabilidade e agilidade. Resta saber se conseguirá transformar essas ideias em medidas concretas.
Além da revisão do decreto, é urgente retomar debates ausentes: como criar estruturas organizacionais que promovam maior integração entre políticas públicas. A fragmentação atual impõe um enorme ônus ao cidadão, que precisa percorrer diferentes serviços, sites e instituições para resolver um único problema. O Poupatempo e o portal SouGov são bons exemplos de soluções aqui.`
O terceiro eixo de uma agenda para um Estado melhor é o da participação social, representatividade e comunicação. Em tempos de redes sociais desreguladas, a comunicação tornou-se um instrumento central de poder. Governos populistas têm sabido explorá-la com habilidade, sejam de direita ou de esquerda. Por sua vez, quem se interessa por avanços reais, com informações idem, precisa encontrar formas éticas, assertivas e eficazes de dialogar com a sociedade.
Isso envolve mais do que reforçar conselhos e espaços institucionais já conhecidos. É preciso inovar em mecanismos de escuta e participação, criar canais efetivos de diálogo e resposta, investir em ouvidorias e em transparência ativa. Os cidadãos precisam entender o funcionamento das instituições —conhecer a escola dos filhos, compreender como funciona o posto de saúde, acompanhar o Orçamento público.
A representatividade burocrática pode ser um passo importante: garantir que servidores públicos reflitam a diversidade da população em termos de raça, gênero e origem. Isso passa por políticas afirmativas nos concursos públicos e nos cargos de liderança. Uma boa notícia recente foi a renovação das cotas de diversidade para o serviço público. Isso traz continuidade e melhorias, ao ampliar para 30% as vagas para pessoas negras em concursos públicos.
A maior parte do serviço público é composto por mulheres e pessoas negras, mas isso não se reflete nos altos postos da administração. Na esfera federal, por exemplo, mulheres negras representam apenas 12% dos postos de liderança (na população como um todo, este grupo soma 28%).
Investir em representatividade é humanizar a imagem do Estado, torná-lo mais acessível, confiável e próximo das pessoas. Com isso, teremos um diálogo melhor com a população e, espera-se, melhores respostas às nossas necessidades.
Em um cenário de crescente descrença nas instituições, os pontos acima ajudam a pensar como o Brasil precisa transformar seu Estado, antes que ele seja capturado de forma irresponsável ou tirana. Melhorar a qualidade dos serviços, fortalecer a resiliência institucional e construir um Estado mais próximo da população são passos fundamentais para evitar esse risco e construir uma democracia mais forte.
Em meio ao atordoamento e desmoralização das instituições burocráticas e legais dos EUA, devemos encontrar a urgência para de fato transformarmos o Estado brasileiro, tornando-o cada vez mais competente, efetivo e presente.
Isso antes que um aventureiro lance mão —e o faça de maneira delinquente, como Musk e Trump.
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