O governo brasileiro precisa ajudar seu povo a comer melhor. Mas essa tarefa é mais difícil do que combater a fome. Esse é o diagnóstico de quem criou o programa Fome Zero e dirigiu o braço da ONU dedicado a erradicar a insegurança alimentar no mundo.
Aos 75 anos, José Graziano da Silva avalia que o Brasil precisa avançar em ações para conter o avanço do sobrepeso e da obesidade no país, que afetam mais de 60% da população, de acordo com o Ministério da Saúde.
Entre as medidas estão a tributação de bebidas açucaradas e a regulação da publicidade de alimentos como forma de desencorajar o consumo de alimentos ultraprocessados.
"Não é responsabilidade da mãe que alimenta o filho. Ela tem que ser instruída. Ninguém é obrigado a entender as letras miúdas do rótulo. É um direito nosso saber o que estamos comendo em um país que tem um Ministério da Saúde encarregado de regular a saúde da população", avalia.
Ao fundar em 2020 o Instituto Fome Zero, Graziano diagnosticou uma mudança clara nos hábitos alimentares dos brasileiros, que recorriam aos congelados e enlatados diante de feiras e sacolões fechados na pandemia.
No entanto, diz ele, a carne e o feijão foram deixando de fazer parte do prato e dando lugar à salsicha muito antes, com a urbanização e mudanças no mercado de trabalho.
"O mundo produz mais alimento do que precisa, mas não o suficiente para alimentar todos de maneira saudável", diz o ex-diretor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) que hoje vive no Chile. De lá, ele elenca um conjunto de medidas que levaram o país a frear essa epidemia, como a proibição da venda de alimentos ultraprocessados nas imediações de escolas chilenas.
Em entrevista à Folha, o pai do programa que ajudou a tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU em 2014 —tendo retornado em 2022, com os impactos da pandemia— fala da obesidade como "tema ignorado ou debatido com preconceito".
Como o sr. avalia que o Brasil foi do Mapa da Fome à epidemia de obesidade? Quando lançamos o Fome Zero, nos anos 2000, o excesso de peso entre brasileiros não era uma preocupação. O problema se agravou com a urbanização e as mudanças no mercado de trabalho.
Ficou mais difícil produzir a própria comida e fomos expostos a uma indústria alimentícia que oferece produtos de baixa qualidade. O pobre que foi expulso do campo em busca de dignidade foi morar em um deserto alimentar na cidade, onde não encontra estabelecimentos para comprar produtos frescos.
Vinte anos depois, enquanto víamos o crescimento assustador da fome na pandemia, também diagnosticamos uma mudança clara nos hábitos alimentares dos brasileiros. As pessoas foram impedidas de ir a feiras livres e sacolões para evitar aglomerações. Foi uma época de inflação elevada dos alimentos, que acentuou a facilidade de comprar comida ultraprocessada, que é mais barata. O brasileiro mais pobre trocou a carne pelo frango e, depois, pela salsicha.
E agora o Brasil lida novamente com inflação dos alimentos. Temos a contradição de sermos um grande produtor e um grande exportador de alimentos. Por um lado, nossa comida é barata comparada a outros países, pois tem menos taxação, mas nosso salário ainda é muito baixo.
Cada vez mais produtos agrícolas têm preço fixo, sem margem, pois seu custo envolve petróleo, maquinário, fertilizantes, são como produtos industriais. E tem a exposição ao mercado internacional, que ‘dolariza’ tudo. O feijão, por exemplo, não é vendido em dólar, mas depende da comercialização de produtos como a soja. Isso faz com que a inflação do Brasil seja muito mais estrutural do que um problema agrícola, de safra.
O mundo produz mais alimento do que precisa, mas não o suficiente para alimentar todos de maneira saudável. Sobram cereais. Trigo, milho, arroz. E faltam frutas, verduras e legumes, pois em uma dieta considerada saudável é preciso consumir cinco porções por dia desses alimentos. Isso é fruta e verdura de monte. O mundo não produz o suficiente para isso.
A obesidade é um problema mais complexo do que a fome? Você não tem ideia da ginástica que fiz para começar a pagar o cartão Fome Zero no interior do Nordeste, em 2003. Não tínhamos nome e endereço das pessoas, precisava pegar no telefone da farmácia. Hoje chegamos no mais longínquo cidadão.
A fome é facilmente resolvida no Brasil se tiver vontade política. As pessoas não comiam porque não tinham dinheiro, o Fome Zero melhorou o acesso à alimentação. O sobrepeso e a obesidade são mais complexos, implicam uma mudança de hábitos e participação cidadã.
É mais difícil combater a obesidade do que a fome. Comer todo mundo quer. Ninguém quer passar fome. Mas não necessariamente todo mundo quer ou pode comer bem. E a obesidade se soma a problemas de ordem médica, a distúrbios, deficiências, diferentes metabolismos.
O sobrepeso e a obesidade são considerados epidêmicos no Brasil e no mundo. O governo precisa interferir no que é consumido pelas famílias? Costumo dizer que quando faço uma opção pela homeopatia é uma opção individual. Não é uma orientação pública. Mas quando me alimento, como o que está disponível e que tem um preço que é, de alguma maneira, influenciado pelas políticas públicas. Então, é uma responsabilidade pública.
Não é responsabilidade da mãe que alimenta o filho. Ela tem que ser instruída. Ninguém é obrigado a entender as letras miúdas ou aqueles aditivos todos do rótulo.
É um direito nosso saber o que estamos comendo em um país que tem um Ministério da Saúde encarregado de regular a saúde da população. E a diferença no padrão regulatório da indústria alimentícia no Brasil em relação a outros países é notável.
Quais políticas públicas têm ajudado a tornar o prato do brasileiro mais saudável? Começa com a FAO e a OMS (Organização Mundial da Saúde) definindo o que é uma dieta saudável, fazendo alertas sobre consumo excessivo de açúcar, sal e gordura trans. Uma centena de países estão taxando bebidas açucaradas.
No Brasil, esteve em consulta pública a estratégia de prevenção da obesidade, em um plano ambicioso do MDS (Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome). Enfim temos um plano. E acredito que a escola seja lugar de ensinar a criança a comer bem. A nossa merenda escolar é copiada no mundo inteiro.
O que o Brasil precisa fazer para combater essa epidemia? A obesidade é um tema ignorado, pouco debatido ou debatido com preconceito.
É fundamental regular a publicidade de alimentos e taxar bebidas açucaradas, não deixar o ultraprocessado entrar na escola ou ser vendido nas proximidades. Não pode ter aqueles ambulantes vendendo todo o tipo de porcaria na porta da escola.
E incentivar o pequeno produtor é um caminho para uma alimentação melhor, como a obrigatoriedade imposta a prefeituras de comprar 30% de produtos oriundos de agricultura familiar, meta que infelizmente não é cumprida.
Que países estão atacando o sobrepeso com mais efetividade? O Chile está na vanguarda e conseguiu barrar o crescimento da obesidade. Criou a política de selos nos alimentos, proibiu a venda de ultraprocessados nas cantinas e nas redondezas das escolas e não permite que esses produtos fiquem na altura dos olhos nas prateleiras do mercado.
O México, caso histórico de obesidade pelo alto consumo de milho e farinha, subsidia produtos frescos com taxação de bebidas açucaradas. A França valoriza a experiência de cozinhar, seus chefs, é toda uma cultura que promove a alimentação saudável.
Como o sr. vislumbra o futuro da nossa alimentação? Eu vejo uma segmentação se acentuando. Aqueles com renda mais baixa ainda vão depender basicamente de produtos ultraprocessados e commodities, pelas questões de preço e qualidade. E aqueles de classe média e alta vão optar cada vez mais por alimentação saudável e nutritiva.
Eu não vejo que a curto prazo a gente consiga superar essa dicotomia na alimentação brasileira. Enquanto o Brasil não for um país mais igual, não conseguiremos ter uma alimentação mais saudável.
Raio-X
José Graziano da Silva foi diretor-geral da FAO (2012 e 2019) e ministro da Segurança Alimentar no governo Lula (2003-2004), quando criou o programa Fome Zero. É professor titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Fundou em 2020 o Instituto Fome Zero.
Nenhum comentário:
Postar um comentário