terça-feira, 3 de junho de 2025

Em texto achado em pirâmide, rei do Egito diz que devora deuses, FSP

 Reinaldo José Lopes

As crenças dos antigos egípcios acerca da vida após a morte são muito associadas, ao menos na imaginação moderna, ao chamado "Livro dos Mortos". Mas a civilização do Nilo, como a gente às vezes se esquece, foi uma das mais longevas do mundo antigo, durando uns três milênios. O que significa que o "Livro dos Mortos" foi uma inovação relativamente recente.

Muito antes que ele fosse escrito e se popularizasse, havia os chamados Textos das Pirâmides, uma "miscelânea de preces, feitiços e hinos, todos compostos para ajudar o rei em sua jornada pós-vida pelo reino cósmico, com o objetivo de se juntar às indestrutíveis estrelas circumpolares", escreve o egiptólogo britânico Toby Wilkinson em seu livro "The Rise and Fall of Ancient Egypt" ("A Ascensão e Queda do Egito Antigo").

Pirâmide de Unas (semidesmoronada, na frente) e de Djoser em Saqqara, no Egito - Susanne Beck/Saqqara Saite Tombs Project, Universidade de Tübingen/Divulgação/Reuters

Os textos passaram a ser escritos nas paredes da câmara mortuária do rei (repare que eu não disse "faraó" – a palavra só virou sinônimo do título monárquico tardiamente na história egípcia) durante o governo do monarca Unas, que morreu em 2345 a.C. (Ou seja, mil anos antes de Tutancâmon!)

As colunas de texto eram pintadas de azul, para retratar o abismo aquático do submundo. Mas o mais impressionante era o conteúdo dos textos, nos quais o rei Unas arrogava a si mesmo um poder que abarcava não só seus súditos humanos como também os próprios deuses.

E a tal ponto que Unas, no chamado "Hino Canibal", arroga-se o direito de devorar homens e divindades. Eis o que diz o texto, na tradução de Wilkinson:

"Unas é aquele que come seres humanos, que se alimenta dos deuses/Unas é aquele que come a magia divina, engole seus espíritos/Os grandes são sua refeição da manhã/Os médios são sua refeição da tardinha/Os pequenos são sua refeição da noite/Os velhos e as mulheres são queimados como oferenda a ele."

Eis o que conclui o egiptólogo: "Os teólogos e autores de hinos no séquito do rei fizeram o máximo para transmitir a mais tremenda das mensagens: Unas era onipotente porque tinha literalmente consumido e assimilado os poderes do reino divino, em todas as suas manifestações. Nada nem ninguém podia atrapalhar seu objetivo de adquirir a imortalidade cósmica".

Não conheço melhor testemunho da estranheza da visão de mundo da elite egípcia, se comparada à nossa.

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Autor do blog Darwin e Deus, sobre ciência e religião, e especialista em história do catolicismo

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