A racionalidade da maquinaria do desaparecimento não contava com a reviravolta da maré da história
24 de maio de 2014 | 16h 00
Francisco Foot Hardman
Arquivo de família
Retrato. O deputado com a muLher, Eunice: morto sob tortura no DOI-Codi em 1971
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Francisco Foot Hardman é professor de Teoria e História Literária na Unicamp
Assassinos da memória dependem, entre outros auxiliares funcionais, desses “agentes da desaparição”, ofício que as ditaduras militares e totalitárias da história contemporânea tornaram peça indispensável na produção e reprodução deliberadas do esquecimento. Configuraria até uma atividade específica a compor perfil dos afazeres daqueles funcionários do aparelho repressivo do Estado designados, na cadeia hierárquica de comandos, para forjar cenas mentirosas da morte e apagar todo e qualquer rastro de evidência do corpo torturado e sem vida, de seus restos em diferentes escalas da decomposição e, mais do que nunca, de sua identidade. Quantas habilidades clandestinas requer tamanho atentado às leis da natureza e da cultura dita civilizada! Quantos mecanismos humanos mobiliza a sanha desumana do Estado assassino! Mas nada que a racionalidade técnico-burocrática do Estado moderno não seja capaz de meter em movimento.
Se a maquinaria do esquecimento fosse infalível, nosso déficit civilizatório já teria ultrapassado a linha do completo colapso e estaríamos plenamente mergulhados na Era da Barbárie Superior, isto é, aquela que soube potencializar, científica e tecnologicamente, desde Auschwitz e Hiroshima, a eliminação genocida e o assassinato da memória como atributos inarredáveis do mundo humano contemporâneo. Muitas vezes podemos nos perguntar se já adentramos, com efeito, este período, para cujo cenário apocalíptico seria obrigatório agregar, nuclearmente, o Antropoceno como último elo da vida planetária, como derradeiro ato de tragédia.
Mas, no movimento da história, o vaivém das marés pode, inesperadamente, modificar a dinâmica repetitiva da máquina da morte e do esquecimento. E isso não só quando, por exemplo, ocorrem revoluções. Também na passagem dos dias, na continuada e às vezes desesperadamente monótona sequência da cronologia, as ondas podem trazer, com força, o passado que julgávamos morto. E, com ele, os mortos, que julgávamos desaparecidos, voltam a falar. E seus restos adquirem nome, rosto, memória, identidade narrativa.
E os perpetradores do mal, criminosos contra a humanidade, solitários em sua certeza de obedientes serviçais do Estado dominado pelo aparato policial-militar, que lhes concedia a ilusão de um poder eterno, em seu arrogante desafio ao direito, à ética, à resistência e à memória, são agora relegados ao chão de sua repelente e mísera condição de carrascos. Morrerão, quem sabe, impunes e sem culpa, como bons psicopatas para os quais torturar, matar e fazer cadáveres desaparecerem eram apenas ossos do ofício, ou até, na ideologia dominante própria da guerra fria, “missão patriótica”.
Mas o revés da história, neste 2014 que nos restitui, com tantas violentas verdades, o golpe de 1964 e o pesadelo daquele “dia que durou 21 anos” – para retomar o título certeiro do excelente filme de Camilo Tavares –, acaba por produzir efeito até certo ponto inesperado. Os algozes da ditadura militar, entre eles os cinco militares ora indiciados pelo Ministério Público Federal por homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual no caso do deputado federal cassado Rubens Paiva, independente de futura e desejável condenação judicial, permanecem aderidos às próprias sombras das quais fizeram de tudo para se livrar. São as sombras de suas silhuetas nos porões da Aeronáutica e do Exército que serviram para a tortura e morte de Paiva e de muitíssimos outros opositores. A racionalidade da maquinaria do desaparecimento não contava, evidentemente, com a reviravolta da maré da história. Com a sobrevivência e coragem de algumas testemunhas. Com a preservação e acesso, mais de quarenta anos passados, a alguns documentos irrefutáveis.
Esta lei de aderência do mal aos próprios cenários submundanos do maquinário de terror do Estado, essa colagem do que restou de consciência nesses seres amigos da dor e da morte ao solo sanguinolento de porões acusticamente mal vedados (talvez pela fé cega na impunidade ou por perversão sado-exibicionista) é como certa vertigem labiríntica da qual será impossível sair. Podem ainda sorrir, alguns deles, pisando o chão tortuoso de nossa “transição transada” que lhes garantiu, até aqui, a ilusória medalha do “dever cumprido”. Mas quando este frágil chão cede, cola-se no agente do mal a sombra que pensava ter deixado para sempre no porão, junto ao codinome de sua brutalidade.
De outro lado, nós, amigos da memória, continuaremos a ensinar a nossos estudantes, filhos e netos porque devemos adotar como palavra de ordem unificadora a perspectiva “Ditadura nunca mais!” Para isso, será sempre altamente instrutivo retornar à literatura, ao cinema, ao teatro, à música e outros muitos discursos da resistência para nos aproximarmos daquele tempo e daquelas vozes.
Assim, Rubens Paiva se faz de novo presente e tem seu mandato restaurado. Não apenas por sua viúva Eunice e pelos filhos Vera, Marcelo, Eliana, Ana Lúcia e Beatriz. Não só pelos tantos outros filhos e entes próximos dos mortos e desaparecidos da ditadura. Mas igualmente pelos milhões de brasileiros que hoje continuam a protestar nas ruas, a lutar e a crer na mudança social profunda. E a fazer da memória instrumento da vida boa e justa contra o esquecimento orquestrado.
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