quarta-feira, 30 de abril de 2014

A única julgada


'Minha mãe foi morta por andar à noite, parar num quiosque e - cúmulo da provocação - ser mulher'

06 de abril de 2014 | 2h 09

CLARISSA THOMÉ - O Estado de S.Paulo
Conheci o que era maldade no carnaval de 1994. Na Quarta-feira de Cinzas, um pescador resgatou o corpo de minha mãe do mar de Piratininga, na Região Oceânica de Niterói, no Grande Rio. Ela estava nua, a calcinha enrolada no pescoço. Havia sido atacada no calçadão, a 600 metros da nossa casa.
Minha mãe, a jornalista Sílvia Thomé, tinha saído para andar na praia à noite, porque tinha uma reunião de trabalho bem cedo no dia seguinte - repórter de economia, deixara a rotina do jornalismo diário para se dedicar a um sonho que ela e meu pai dividiam havia algum tempo: um jornal de bairro, que fizesse "jornalismo de verdade", e não fosse apenas "espaço para anúncios". Juntos, tocavam o Caderno Oceânico.
Aos 40 anos, tentava parar de fumar e as caminhadas a ajudavam a reduzir a ansiedade. Ela reclamou do horário marcado para a reunião - impediria o exercício matinal. Meu pai, ao deixá-la em casa (já estavam separados), sugeriu que caminhasse à noite. Seguiu o conselho. Depois de andar, parou com minha irmã num quiosque. Minha mãe tomou uma cerveja, Giovana, uma Coca-Cola. Giovana voltou mais cedo; queria ver um filme na tevê. Minha mãe não voltou mais.
Nunca saberemos o que de fato ocorreu. Quando ela foi encontrada, calçava uma das sandálias; a outra estava junto ao quiosque - o que deixa claro que a agressão começou ali. Mas numa era pré-luminol (substância química que realça vestígios de sangue, mesmo depois de o ambiente ser lavado), pré-DNA, só tínhamos evidências. Nenhuma prova.
O que sabemos é que nossa mãe lutou muito contra seu agressor. O laudo do Instituto Médico Legal mostrou que ela sofreu hemorragia interna por perfuração do baço, provocada por espancamento. Teve o braço direito quebrado; tinha um grande hematoma na testa. Por fim, o sufocamento - constrição do pescoço é o termo técnico.
Como o corpo foi jogado no mar e passou um dia inteiro na areia, sob o calor daquele fevereiro infernal, os peritos não concluíram se ela foi ou não vítima de violência sexual. E por muito tempo isso me confortou, de alguma forma. Pelo menos essa dor a mamãe não passou, eu dizia para mim mesma, como se fosse possível encontrar consolo em meio à tragédia.
Sabemos ainda que ela foi morta por ser mulher. Se meu pai tivesse decidido tomar uma cerveja no quiosque, não teria sido importunado. Não teria ouvido gracejos. Teria voltado para casa. Minha mãe era presa fácil: um metro e cinquenta e cinco, pouco mais de 40 quilos. Sozinha, num trecho escuro do calçadão - o refletor naquele ponto da praia estava quebrado havia semanas.
Restamos três meninas apavoradas - eu tinha 18 anos, Giovana, 16, Maíra, 13. Além de perder nossa mãe, perdemos nossa casa. O assassino ainda estava solto. Como caminhar naquele calçadão? Como mergulhar naquelas águas? Fomos morar com nossos avós.
Uma morte violenta como essa deixa marcas profundas - todos nos sentíamos culpados. Giovana por tê-la deixado sozinha. Meu pai por ter sugerido a caminhada noturna. Eu e Maíra porque estávamos viajando - há 20 anos não viajo no carnaval. Meu avô, que estava no início do processo de Alzheimer, desligou-se de vez da realidade. Morreu dois anos depois.
Em 2004, um suspeito foi absolvido no tribunal do júri. Na verdade, só minha mãe foi julgada naquele dia. A promotora chegou a perguntar: "Mas ela estava sem sutiã?". Estava. E ninguém tinha nada a ver com isso. E a roupa que usava não justificava agressão alguma. Minha mãe também era culpada. "Isso era hora de estar na rua? O que ela estava querendo, bebendo sozinha num quiosque na praia?", ouvimos muitas vezes.
Falar sobre esse tema é muito doloroso. Giovana e Maíra muitas vezes disseram que nossa mãe havia morrido de câncer. Encerrava o assunto. Sustava os por quês. E poupava do inevitável olhar de pena. Eu sempre escolhi a verdade. Essa é a nossa sociedade - machista, preconceituosa, em que a impunidade é regra. Temos de lidar com isso para poder transformá-la. Passei a usar uma estratégia: falo sobre o crime como quem comenta uma matéria. Como se não tivesse acontecido com a gente.
A primeira vez que menti sobre a morte de minha mãe foi para meu filho, que tinha 4 anos quando quis saber "como a vovó morreu". Assalto, filho. Mas o bandido está preso. Não sabia como explicar para uma criança que alguém pode ser morto só por ser mulher. E que quem faz uma coisa dessas escapa ileso.
Decidi escrever sobre a minha mãe ao ler o depoimento da professora Daiara Figueroa, no Facebook. Em meio a tantas fotos com cartazes "não mereço ser estuprada", o dela surgiu assustador, com o verbo no passado. Escrevi em solidariedade. Acabei descobrindo que também não estava sozinha - foram mais de 7 mil compartilhamentos, dezenas de mensagens de apoio, e o que mais me impressionou: relatos de violência sexual, alguns cometidos na própria família.
Depois de 20 anos, a memória embaralha, as lembranças se confundem, muita coisa se perde. Há algum tempo uma amiga de infância da minha mãe perguntou: "Lembra da gargalhada dela?". Eu já não lembro. Mas não vou me esquecer nunca do amor intenso que ela sentia por nós. E é por causa desse amor que ficamos inteiras, unidas, apoiadas sempre num pacto quase infantil, feito no momento em que enterramos nossa mãe - juntas somos uma.   CLARISSA THOMÉ É REPÓRTER DO ESTADO NO RIO

A gestão da internet


26 de abril de 2014 | 2h 05

O Estado de S.Paulo
Embora não tenha agradado inteiramente a todos os representantes das dezenas de países participantes - e esteja longe de ser um documento perfeito, como reconheceu o presidente do comitê executivo do encontro, o brasileiro Virgílio Almeida -, o texto final aprovado no NETMundial resume as contribuições de diferentes regiões e de diferentes interessados na rede mundial de computadores que puderam ser aceitas pela maioria e, sobretudo, reafirma importantes princípios para a gestão e o uso da rede mundial de computadores.
De acordo com o documento, a gestão da internet mundial deve basear-se na preservação da liberdade de expressão e de associação, no respeito à privacidade e à diversidade cultural e na garantia da participação de todos os interessados, como governos, empresas, organizações da sociedade civil, instituições acadêmicas e os usuários em geral. Do ponto de vista prático, a declaração final do NETMundial - o encontro multissetorial sobre a governança da internet realizado na quarta e na quinta-feira em São Paulo - pode tornar-se a base para a elaboração de uma carta de princípios a ser seguida por todos os países.
Principal inspirador do encontro, em razão da divulgação da informação de que o governo americano havia espionado suas mensagens, o governo brasileiro conseguiu apresentar aos participantes do NETMundial como exemplo da governança na internet a lei do Marco Civil da Internet, cujo texto, aprovado na véspera pelo Congresso, foi sancionado pela presidente Dilma Rousseff na abertura da conferência internacional.
Trata-se de um documento que estabelece direitos e responsabilidades dos usuários da rede de computadores, do governo, das empresas operadoras e dos responsáveis por páginas na internet. O Marco Civil também define o modelo de governança na internet no Brasil. Está sendo considerado uma referência internacional, como reconheceram vários participantes do NETMundial, entre os quais o presidente da Icann - o organismo que, entre outras funções, tem a de atribuir os endereços da internet -, o libanês Fadi Chehadé. Em entrevista ao Estado, Chehadé citou o trabalho do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) como um modelo para um comitê internacional, por se tratar de uma experiência de gestão multissetorial.
Na tramitação do projeto do Marco Civil, o governo desistiu de impor a obrigatoriedade do armazenamento de dados em data centers instalados no País, o que era considerado financeira e tecnicamente impraticável. Defendeu corretamente, porém, a preservação do princípio da neutralidade. Ela garante que os provedores não poderão cobrar mais ou reduzir a velocidade de transmissão de dados de acordo com o conteúdo. Na prática, isso impede que os provedores apliquem tarifas maiores na transmissão de conteúdos considerados mais pesados, como vídeos.
O governo tentou, sem êxito, inserir o princípio da neutralidade da rede no texto final do NETMundial. No documento, a neutralidade aparece de maneira indireta, e como simples referência, com a indicação de que seja debatida em futuros fóruns internacionais.
A questão da espionagem, utilizada como pretexto pelo governo brasileiro para realizar o encontro mundial, foi tratada quando se discutiu o tema "vigilância em massa". O documento final resume-se a declarar que essa prática "sabota a confiança na internet e no ecossistema de governança da internet" e o tema "deveria ser conduzido de acordo com a Lei de Direitos Humanos". Dificilmente poderia ser mais óbvio.
Decerto houve descontentamentos. O representante russo discordou do texto, por ter sido, segundo ele, elaborado sem transparência. O americano, por sua vez, disse aoEstado que os EUA não concordam com a afirmação de que a vigilância é sempre uma violação da privacidade.
Para Demi Getschko, do CGI.br, no entanto, o texto representa um grande avanço, pois, como disse ao jornal Valor (25/4), "nunca tinha visto um resultado desse tipo em nenhum evento da internet".

O preço da tarifa congelada


26 de abril de 2014 | 2h 04

O Estado de S.Paulo
Como era inevitável, já começam a aparecer as consequências do congelamento da tarifa dos meios de transporte coletivo da capital em R$ 3, o que vem lembrar às autoridades estaduais e municipais - responsáveis respectivamente pelo sistema metroferroviário e o serviço de ônibus - que em algum momento, que não vai tardar, terão de enfrentar o problema. Tarefa difícil, pois não haverá como escapar das decisões corajosas e impopulares que o caso exige.
O prejuízo do Metrô e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) aumentou no ano passado, como mostram estudos das duas empresas, segundo reportagem do Estado. E o governo reconhece que uma das causas disso é a revogação do reajuste da tarifa, que de R$ 3,20 voltou para R$ 3, em resposta às manifestações de rua de junho passado. Os números impressionam. A subvenção para a CPTM, por exemplo, aumentou 43,7%, indo de R$ 537,5 milhões em 2012 para R$ 772,2 milhões no ano passado. Quanto ao Metrô, ele não recebe subvenção direta, mas compensações como a referente à gratuidade para idosos.
Quanto ao prejuízo, o da CPTM foi de R$ 507,4 milhões ante R$ 217,2 milhões no período considerado, um aumento de 133%. O do Metrô foi igualmente muito grande, pois passou de R$ 28,6 milhões para R$ 76,4 milhões. Prejuízos dessa ordem só podem ser explicados pela contenção da tarifa em níveis claramente irrealistas. O reajuste de R$ 0,20 já ficara abaixo da correção exigida pela inflação registrada entre um aumento e outro.
Ele foi, aos olhos do governo estadual e da Prefeitura, o máximo de concessão possível para evitar reações dos usuários. Mas, mesmo assim, os protestos não só vieram, como adquiriram dimensões impressionantes, com as manifestações que, a partir de São Paulo, se espalharam pelas principais cidades do País. Com a revogação do aumento, em resposta ao movimento, o peso dos subsídios ao transporte coletivo ficou muito maior do que aquilo que o Estado e a Prefeitura de São Paulo julgavam tolerável, ainda que com sacrifício.
Para enfrentar essa situação, o Metrô afirma em nota oficial que, "diante do congelamento das tarifas, a empresa, em sintonia com as diretrizes do governo do Estado para a racionalização e eficiência da utilização dos recursos, intensificou as ações de combate ao desperdício e promoveu a renegociação de contratos". Em outras palavras, está cortando tudo que é possível para fazer economia. O mesmo faz a CPTM. Segundo o secretário de Transportes Metropolitanos, Jurandir Fernandes, o ponto principal desse esforço, "a economia forte que nós fizemos, foi nas licitações, com reduções de até 40% no valor das obras".
Mas nada disso livra o governo de dois problemas. Em primeiro lugar, embora ele insista em que os cortes de gastos estão sendo feitos de forma a não prejudicar a segurança do sistema, é muito difícil de evitar que, conjugados com a superlotação dos trens do metrô e da CPTM, eles não a afetem. Certamente não é por acaso que as panes no sistema metroferroviário se tornaram mais frequentes.
Em segundo lugar, é evidente que, por mais importantes que possam ser as economias, elas não conseguirão cobrir por tempo muito longo os custos acarretados pelo congelamento da tarifa. Segundo o governador Geraldo Alckmin, "não tem nenhuma notícia de aumento de passagem" neste ano. Com a Copa do Mundo, as eleições e o temor de novas manifestações, não seria mesmo de esperar outra coisa. E tudo que vale para ele vale igualmente para o prefeito Fernando Haddad. Mesmo às voltas com subsídios ao serviço de ônibus, que com a tarifa congelada chegaram às alturas de R$ 1,6 bilhão, também ele certamente não a aumentará logo.
Mas, não importa por que motivos, quanto mais demorar o descongelamento, mais grave será o problema. O reajuste terá de ser maior, assim como crescerá o rombo financeiro. E não se terá como evitar o seu reflexo na segurança do sistema de transporte coletivo. Tudo à custa da população que, em última instância, é quem paga a conta com seus impostos.