quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Águas turvas, José Renato Nalini, OESP

 convidado

Por José Renato Nalini

Nossas águas estão perecendo. Já tenho mencionado o perigo que ronda a represa do Guarapiranga, único reservatório abastecido com nascentes paulistanas, já que o sistema Cantareira é nutrido por água mineira. Mas também existe a poluição que vem do esgoto in natura ali despejado por onze afluentes, as substâncias químicas arremessadas por indústrias regulares e clandestinas, a imundície que a população joga nas águas, sem se lembrar de que é aquela mesma que saciará sua sede, será usada em sua alimentação e em sua higiene.

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O tratamento de água não elimina resíduos de antibióticos, anticoagulantes, antidepressivos, anticoncepcionais, cocaína e resíduos de microplástico. Tudo isso tem sido consumido por mais da metade da população paulistana. Como será a vida futura das crianças submetidas a esse tratamento covarde e cruel?

Os antidepressivos também estão no Tietê, cuja mancha de poluição aumentou mais de duzentos e oito quilômetros. O nível de concentração de antidepressivos na bacia do Alto Tietê foi objeto de estudos liderados pelo pesquisador Luís Schiesari, da USP, que investigou a bacia em onze municípios da região metropolitana de São Paulo, inclusive a capital.

Foram pesquisadas cinquenta e três microbacias do Alto Tietê, e os resultados indicam quatro possíveis causas para a presença dos fármacos nas águas: a dimensão populacional, a venda dos medicamentos, a falta de saneamento e a renda. Tudo está conjugado: quanto mais gente, mais consumo de medicamentos. Os estudos concluíram que 93% das bacias com algum nível de cobertura urbana continham de uma a oito moléculas diferentes de antidepressivos. Dentre eles, venlafaxina, bupropiona e setralina.

Foram detectadas cinco faixas de renda per capita das microbacias, de R$ 357 a R$ 1.138. Elas se aproximam da renda da classe C, que é considerada a classe média. Quando não há saneamento básico, e a renda é maior, a contaminação aumenta. É que o nível de acesso a tratamentos de saúde é muito mais expressivo nas classes mais favorecidas.

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Como é que isso chega às águas? Por descarte direto dos medicamentos nas águas. Muita gente não sabe que farmácias populares têm recipiente para entrega de medicamentos vencidos e até de embalagens da indústria farmacêutica, por força de lei. Mas também chegam por fezes e urina, por ligações clandestinas nos rios. Como a lei brasileira não fixa o limite máximo para concentração de fármacos na água tratada, os sistemas de tratamento não são eficazes em removê-los, nem se preocupam com a circunstância de serem encontrados em quase todos os cursos d’água.

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Infelizmente, o marco legal do saneamento básico tem sido postergado de maneira irresponsável. São obras que não aparecem e a preocupação maior da política profissional é com a eleição e com a reeleição. Isso fez com que os níveis de contaminação na região estejam entre os mais altos conhecidos no mundo. Os níveis de concentração de fármacos têm efeito no desenvolvimento de espécies vertebradas como o peixe-zebra e invertebradas, como microcrustáceos.

O pior é que a exposição a curto prazo à sertralina, à fluoxetina ou à venlafaxina conduz a comportamentos surpreendentes e efeitos na história de vida de até três gerações adiante. Para Schiesari, a bacia enfrenta outros problemas ambientais, como baixo nível de oxigenação, mas o mais grave é a contaminação por antidepressivo.

A população não sabe disso. Não é alertada. Dever do Estado, em seus vários níveis de governo. E nada faz para descartar corretamente os medicamentos, agindo como sempre fez em relação aos demais resíduos: o problema é da Prefeitura, não meu! Isso explica a deterioração de nossas águas nas insensatas conurbações cujo maior exemplo é a região metropolitana paulista.

Enquanto isso, as praias paulistas de Mongaguá e São Vicente estão em primeiro lugar em poluição com plástico. Foram examinadas 306 praias em todo o litoral e estas duas venceram o vergonhoso e lamentável ranking. O lixo vem para o mar por incúria da população, que descarta nas ruas aquilo que já não serve mais ou aquilo que não quer mais. O trabalho de voluntários como o daqueles que recolhem lixo e que já retiraram quase trinta toneladas do mar e dos manguezais, constatou que 90,7% disso era de plásticos.

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Todas as praias do país contêm resíduos plásticos: embalagens, tampas de garrafa, microplástico em volume superior ao do resto do mundo. Aqui, dos descartes no mar, 91% eram plásticos. No globo, são 70%. Filtros de cigarro, por exemplo, representam 25% do total.

É uma sujeira só, a contaminar a água e, por tabela, a abreviar a vida do insensato animal humano, que não sabe conservar seu habitat.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Análise |País se move e emprego cresce, mas falta garantir um avanço duradouro, Rolf Kuntz OESP

 


Com 102,5 milhões de pessoas trabalhando, a população ocupada bateu recorde no trimestre de junho a agosto e aumentou 2,9% em um ano. Com resultado geral também positivo, a produção industrial cresceu 0,1% em agosto, avançou 2,4% em um ano e superou por 1,5% o patamar pré-pandemia, de fevereiro de 2020. Mas ainda ficou 15,4% abaixo do recorde alcançado em maio de 2011 e, além disso, 18 dos 25 ramos cobertos pela pesquisa tiveram resultado mensal negativo. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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A economia tem crescido, e o desemprego de 6,6% ficou 0,5 ponto abaixo do registrado no período de março a maio. Esse foi o menor nível estimado para um trimestre móvel encerrado em agosto na série iniciada em 2012. O aumento da ocupação anotado na última pesquisa foi impulsionado principalmente pelo comércio, com aumento de 1,9%, ou mais 368 mil trabalhadores em atividade.

O comércio e outros segmentos de serviços continuam sendo as principais fontes de emprego. A indústria ainda se destaca pela qualidade dos empregos e pelo nível de remuneração, mas o setor, apesar de algum avanço recente, mantém o desempenho oscilante observado na maior parte do último quarto de século. Para ficar só no período mais recente: em seis dos dez anos contados entre 2014 e 2023, a produção geral industrial diminuiu. O balanço do setor de bens de capital, isto é, de máquinas e equipamentos, foi pior que o do conjunto, com recuo em sete anos.

Setor privado e governo têm investido muito menos que o necessário nos vários segmentos da infraestrutura, como rodovias, ferrovias, serviços de água e saneamento, instalações educacionais, centrais elétricas e redes de energia
Setor privado e governo têm investido muito menos que o necessário nos vários segmentos da infraestrutura, como rodovias, ferrovias, serviços de água e saneamento, instalações educacionais, centrais elétricas e redes de energia Foto: Filipe Araújo/Estadão

Para você

O desempenho do setor de bens de capital é explicável principalmente pelo baixo investimento em ampliação e modernização da capacidade produtiva. Setor privado e governo têm investido muito menos que o necessário no sistema empresarial de produção e também nos vários segmentos da infraestrutura, como rodovias, ferrovias, serviços de água e saneamento, instalações educacionais, centrais elétricas e redes de energia. A aplicação nesses bens e serviços públicos e privados, frequentemente inferior a 18% do Produto Interno Bruto (PIB), tem sido proporcionalmente menor que a registrada em muitas outras economias emergentes.

Juros altos e insegurança econômica são as principais explicações do baixo valor investido pelo setor privado. Internamente, o investimento empresarial tem sido pouco estimulado pelas condições objetivas da economia. Essas condições, também pouco atraentes para o capital externo, talvez comecem a mudar com a melhora da avaliação do País pelas agências de classificação de risco.

Mas a melhora da imagem poderá depender também das perspectivas das contas públicas, por enquanto marcadas por muita insegurança. A alteração desse quadro dependerá principalmente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, isto é, de sua disposição, visível e convincente, de conter gastos e buscar o equilíbrio fiscal. Ele terá de se esforçar mais do que até agora para transmitir essa imagem. Se aceitar esse esforço, contrariando seu partido e parte de seu ministério, poderá mobilizar capitais, estimular investimentos e favorecer uma expansão econômica mais segura.

Foto do autor
Análise por Rolf Kuntz

Jornalista

Deirdre Nansen McCloskey - Notícias sem curadoria, FSP

 Eu só consigo encarar museus de arte por duas horas. Minha mãe, por outro lado, uma vez visitou Madri e passou o dia inteiro no Prado, da abertura ao fechamento, durante cinco dias. Eu não sou muito informada, digamos.

Mas, como dizem, para minhas empreitadas de duas horas eu sei do que gosto. Gosto de museus de arte com curadoria profissional, como o Prado ou o MASP, ou meu amado Art Institute em minha terra de longa data, Chicago.

O contraste é com as coleções de amadores ricos. O Gardner em Boston, por exemplo, tem uma coleção variada, informada pelo gosto de Isabella Stewart Gardner, não por um estudo profundo e profissional da história da arte. A Phillips Collection em minha nova cidade, Washington, é menor, mas igualmente idiossincrática e amadora. O pior que visitei foi o Barnes na Filadélfia, agora em seu próprio prédio, construído para esse fim no centro da cidade, a algumas quadras do grande e profissionalmente curado Museu de Arte da Filadélfia.

O Barnes tem 140 Renoirs. Cento e quarenta! Renoir é adorável. Mas uma profissional teria vendido a maioria deles para comprar, digamos, alguns Manets ou Tarsilas, ou mesmo a coleção de móveis americanos Shaker no terceiro andar do Filadélfia, que me levou literalmente às lágrimas. E ela teria se livrado das centenas de dobradiças e fechaduras antigas que o testamento de Albert C. Barnes insistiu que fossem exibidas junto com os Renoirs.

Qual é o ponto? Este: nossas notícias já tiveram curadoria, como os museus de arte profissionais. A Folha, fundada em 1921, é composta por jornalistas profissionais comprometidos com os fatos –e de vez em quando um jornalista amador como eu. As estações de TV eram poucas, e com equipes profissionais.

Banca de jornal em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Agora a internet trouxe os amadores para o negócio de notícias. Hoje somos informados, ou grosseiramente desinformados, por amadores como Gardner, Phillips ou Barnes. Durante o século 19 e estendendo-se até a era de ouro das notícias curadas, antes da internet, a invenção da prensa a vapor trouxe os jornais de grande circulação para seu próprio campo, tornando-os independentes de partidos políticos, se quisessem, por suas grandes receitas de publicidade. No século 18, no qual foi inventado o jornal, ele só podia ser impresso em pequenas tiragens. Os jornais proliferavam, mas não tinham independência de receita. Durante a década de 1790, por exemplo, metade dos numerosos, mas pequenos jornais da Grã-Bretanha, eram secretamente propriedade do governo. Isso na terra das nossas primeiras liberdades.

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As "notícias" sem curadoria arruinaram nossa política. As pessoas, especialmente os homens, obtêm suas "notícias" de lunáticos divertidos que povoam a internet. O rádio já esteve nesse negócio de circular maluquices, e ainda está com os comentaristas fascistas. Mas a internet permite que as pessoas façam o que consideram longas "pesquisas", atraindo-as, para usar a metáfora de "Alice no País das Maravilhas", para várias tocas de coelho. As teorias conspiratórias proliferam, como a afirmação de Trump de que ele venceu a eleição de 2020.

Talvez isso se ajeite, produzindo notícias responsáveis e curadas como as da Folha ou do New York Times. Mas não vejo como.