quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Jerson Kelman - O custo do climatologicamente correto, FSP

 "Prêmio verde" é a diferença de custo entre produtos com e sem uso de combustíveis fósseis na cadeia produtiva. Países "climatologicamente corretos" (cc), que optem pela descarbonização de suas economias, produzirão numa fase inicial bens mais caros do que países "climatologicamente incorretos" (ci). Portanto, os cc podem ficar temporariamente menos competitivos e com menos recursos para os investimentos de adaptação às mudanças climáticas.

Mercados de créditos de carbono visam amenizar o custo da transição de ci para cc, induzindo mudanças nos processos produtivos em que seja mais fácil diminuir a emissão de carbono. Como o efeito estufa tem escala global, deveria existir um único mercado global. Mas não é assim que a banda toca.

Países desenvolvidos apostam que o esforço de transição de ci para cc ensejará avanços tecnológicos que diminuirão o prêmio verde, talvez até tornando-o negativo. A aposta, sendo bem-sucedida, ajudará a mantê-los na liderança econômica do mundo.

O Brasil deve realizar a transição levando em consideração as nossas vantagens comparativas. Temos a possibilidade de exportar bens com baixo conteúdo de carbono, produzidos com energia renovável, que aqui está sobrando. Ou preservar as florestas, na forma de prestação de serviço ambiental. Ou ainda comercializar créditos de carbono derivados do replantio em pastagens degradadas, que aqui também há em abundância.

Pastagem degradada em área desmatada na APA do Rio Pardo, que integrava a Floresta Nacional Bom Futuro - Lalo de Almeida/Folhapress

O governo aposta nessas possibilidades ao conceder 15 mil hectares da Floresta Nacional do Bom Futuro (RO) e ao planejar o lançamento do fundo internacional Florestas Tropicais para Sempre, na COP30.

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Todavia, para que essas estratégias deem certo, é preciso que os países desenvolvidos estejam dispostos a remunerar os serviços ambientais e que suas empresas queiram comprar tanto produtos com baixo conteúdo de carbono, feitos com nossa energia renovável, quanto créditos florestais de carbono.

Lamentavelmente, o atual cenário global não é promissor.

Primeiro, porque tem diminuído o interesse pela descarbonização da economia nos países desenvolvidos devido ao fortalecimento de forças políticas nacionalistas, que estão mais preocupadas com a segurança energética do que com a transição energética, que é inflacionária.

Segundo, porque tem aumentado a oposição à comercialização de créditos de carbono florestais devido à possibilidade de que incêndios devolvam à atmosfera o carbono anteriormente sequestrado pela fotossíntese.

Nesse cenário inóspito, temos uma vantagem comparativa ainda pouco estudada: a transformação de resíduos orgânicos da agricultura em biocarvão, via pirólise (incineração sem oxigênio). O biocarvão, quando aplicado no solo, aumenta a produtividade agrícola e sequestra carbono sem possibilidade de contestação.

Imagem mostra máquinas movimentando bagaço de cana em unidade da Raízen produtora de etanol de segunda geração em Guariba (SP)
Máquinas movimentam bagaço de cana em unidade da Raízen produtora de etanol de segunda geração em Guariba (SP) - Marcelo Toledo/Folhapress

Recente edição do "Energy Report" (PSR) estima que a transformação do bagaço de cana no Brasil em biocarvão resultaria no sequestro anual de 100 milhões de toneladas de CO2eq, quantidade equivalente ao mercado regulado de carbono do Reino Unido.

A depender dos preços, tanto da energia elétrica quanto do crédito de carbono, essa rota poderia ser mais lucrativa do que usar o bagaço na produção de eletricidade.

Ilona Szabó de Carvalho - Brasil não precisa do petróleo da Foz do Amazonas, FSP

 Às vésperas do Dia da Amazônia (5 de setembro), cabe perguntar se queremos celebrar a data de forma perene. Além do fogo e da fumaça, a Amazônia está ameaçada pela falta de clareza do Brasil em seu projeto de transição energética, que corre em paralelo ao discurso governamental de que o país precisa explorar petróleo na Foz do Amazonas. Precisa?

Já abordei na coluna passada as contradições internas que levam o governo, por exemplo, apenas nas duas últimas semanas, a assinar um inédito pacto entre os três Poderes para um Plano de Transformação Ecológica e uma Política Nacional de Transição Energética que tem no gás natural –uma fonte fóssil– sua grande vertente.

Esse desalinhamento, no caso da Foz do Amazonas, resultou na queda de braço entre representantes do Ibama e da Petrobras. Os riscos ambientais têm sido o principal foco do debate, dada a enorme biodiversidade da região, que abriga 70% dos manguezais do país e um sistema de recifes ainda pouco estudado. Mas temos de destacar também os graves riscos sociais associados, como a ocupação desordenada do território, a intensificação da criminalidade e a pressão sobre as áreas protegidas.

Mapa da bacia Foz do Amazonas
A bacia chamada Foz do Amazonas - /Folhapress

A exploração do bloco 59, poço localizado na costa do Amapá, pode agravar um contexto precário. O estado, em 2023, apresentou a maior taxa de mortes violentas intencionais, e a capital, Macapá, tem hoje o pior índice de transparência entre as demais do país. Oiapoque, o município mais próximo do poço em questão e que abriga inúmeras comunidades indígenas, é ponto crucial da rota do narcotráfico da região.

O argumento sobre a importância dos royalties do petróleo para a região não se sustenta quando analisamos o mau uso histórico desses recursos, que falham em gerar qualidade de vida para populações locais e trazem corrupção, violência e desigualdades.

E há ainda o risco reputacional, com uma eventual perda de capital político global que pode impactar as negociações de acordos bilaterais e multilaterais, fundamentais para a atração de investimentos privados verdes em escala.

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As reservas nacionais provadas de petróleo garantem a produção até 2037 (fora as estimadas), enquanto a Associação Internacional de Energia (AIE) projeta o decréscimo da demanda global a partir de 2030.

A Petrobras prevê investir US$ 3 bilhões nos próximos cinco anos na Foz do Amazonas; a estimativa de investimentos futuros é de US$ 56 bilhões. São recursos que poderiam migrar para expandir, em vez do combustível fóssil, a produção de energia renovável –lembrando que, entre 2018 e 2022, os subsídios aos fósseis cresceram 124%, ante 52% para fontes renováveis.

Como justificar, para o Brasil e para o mundo, que o país-sede da COP na Amazônia seguirá nesse investimento de longo prazo com tantas incertezas e consequências sociais e ambientais negativas documentadas em uma das regiões mais vitais e vulneráveis do planeta?

Não se justifica. A resposta é não, o Brasil não precisa do petróleo da Foz do Amazonas.

Precisa, sim, deslanchar a transição ecológica –mostrando coerência com a decisão de não cruzar essa linha–, aproveitar os ganhos reputacionais da decisão acertada e alavancar recursos para um projeto econômico que abrace e proteja a nossa biodiversidade.

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Humilhação no trabalho, uma realidade feminina, Joanna Moura, FSP

 Eu tinha 22 anos na primeira vez que fui humilhada no trabalho. Eu trabalhava numa dessas agências de publicidade grandes e metidas a legaizonas, com salas de vidro e vista para o mar, e um chefe divertido que faz piada em reunião, pede pizza para todo mundo às 22h e te deixa pegar reembolso de táxi quando você trabalha no fim de semana. A rotina era intensa e sem hora, mas eu trabalhava feliz porque era uma agência famosa e eu estava apenas começando.

Até que um dia o dono da agência, que nunca aparecia no escritório, baixou por lá preocupado com uma grande conta que estava ameaçando ir embora. Foi um dia particularmente estressante para mim. Meu computador (um trambolho enorme e lento desses que não se vê mais nem nos escritórios mais antiquados) resolveu desistir da vida, me deixando na mão justamente na reta final da entrega de uma campanha. Impossibilitada de mandar mensagens ou emails, andei de um lado para o outro da agência resolvendo pepinos à moda antiga, debruçada sobre mesas e computadores alheios.

A imagem mostra uma mulher sentada em uma mesa, usando um laptop. A tela do laptop exibe gráficos e dados. A pessoa está segurando um celular com a mão direita e tem um copo de café ao lado, em uma mesa de madeira. Há um caderno e uma caneta sobre a mesa, além de plantas ao fundo.
Apesar da minha pouca idade e experiência, eu não chorei. Enquanto ele proferia seu discurso supostamente motivacional, me concentrei nos rostos da plateia - foxyburrow /Adobe Stock

O dono, sentado em sua redoma de vidro, me observava à distância sem que eu desse importância. Ao final do dia, sentada na minha baia, com o problema do meu computador jurássico momentaneamente resolvido, fui surpreendida pelo tal dono em pé ao meu lado. O homem alto e corpulento gesticulou para que todos se aproximassem. Eu fiz menção de me levantar para me juntar ao grupo em sua frente, mas ele tocou meu ombro indicando que eu deveria permanecer sentada.

Nos quinze minutos que se seguiram, ele falou, aos gritos, sobre como a agência não ia bem por causa de gente como eu.

"Eu te vi hoje, menina, andando de um lado para o outro, conversando aqui e ali. Não sentou a bunda na cadeira cinco minutos! Para trabalhar aqui não adianta ser só bonitinha não, viu? Tem que dar duro!"

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Apesar da minha pouca idade e experiência, eu não chorei. Enquanto ele proferia seu discurso supostamente motivacional, me concentrei nos rostos da plateia, um grupo de homens e mulheres, todos mais velhos e experientes do que eu, com melhores salários e mais responsabilidade. Em suas expressões, detectei um misto de pena e alívio. Pena pela ciência da injustiça em andamento, alívio por não serem eles os escolhidos como bode expiatório da vez.

Meu chefe legalzão, aquele das piadas e da pizza, foi demitido uma semana depois. Mas sua saída da agência não envolveu nenhuma humilhação. Eu permaneci por lá mais seis meses, trabalhando na mesma intensidade e sofrendo com frequentes intimidações, comentários irônicos e constrangimentos vindos desse dono que, dada a situação financeira da agência, passou a aparecer com mais frequência.

Quando entreguei minha carta de demissão, porque tinha arrumado um emprego em outro lugar, me ofereceram um aumento de salário para que eu ficasse. Agradeci e recusei. Não era muito, mas mesmo que fosse, não valia a pena.

Eu adoraria dizer que essa foi a única vez que me senti diminuída e perseguida no ambiente de trabalho. Alguns anos depois, porém, me vi na mesma situação. Com um cliente absolutamente descontrolado, gritando e gesticulando numa sala de reunião lotada. Eu queria responder, defender o trabalho que tantas pessoas tinham participado para entregar, mas minha chefe —também mulher— me aconselhou do contrário. "Deixa ele. Ele precisa dar o show dele. Depois passa."

Quando mudei para a Inglaterra, a terra da polidez, achei que estaria livre desse tipo de comportamento. Ledo engano. Com vinte anos de carreira nas costas, me vi novamente sentada diante de homem de meia idade, numa posição de poder, com um ego enorme e uma insegurança maior ainda, procurando um culpado para suas falhas e encontrando na mulher à sua frente um alvo fácil.

De acordo com uma pesquisa, mulheres são 41% mais propensas a vivenciar uma cultura corporativa tóxica do que os homens. E isso não diminui com o aumento do nível de senioridade. Ao alcançar o C-level (cargos de chefia), mulheres têm 53% mais chances de passarem por situações tóxicas no ambiente de trabalho. Os dados, apesar de me mostrarem que não estou sozinha, não servem de consolo. Pelo contrário, provavelmente indicam que o que vivi tende a se repetir.


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