segunda-feira, 17 de junho de 2024

Plano Real, que chega aos 30 anos em 2024, não escapou de críticas de economistas, FSP

 

SÃO PAULO

Prestes a completar 30 anos, o Plano Real hoje é visto como um grande feito, por ter conseguido retirar o país de uma espiral de descontrole da inflação que marcou diferentes gerações.

Experiências frustradas —como o Plano Cruzado e o Plano Collor— ainda estavam frescas na memória da população, e as desconfianças com aquela nova tentativa de estabilização proposta pelo governo Itamar Franco eram naturais, inclusive por parte dos economistas.

Mesmo os que viam no Plano Real um projeto mais sofisticado do que as tentativas anteriores temiam perdas salariais, instabilidade nos anos seguintes e falta de iniciativa política por um ajuste fiscal.

Um vendedor de mercado observa atentamente enquanto uma cliente, de costas para a câmera, parece fazer um pedido ou uma consulta. Acima deles, um sinal improvisado pendurado diz "Fila para comprar com Cruzeiro Real"
Açougue em São Paulo, no primeiro dia do real - Helcio Nagamine - 1º.jul.94/Folhapress

Ex-ministro da Fazenda durante o governo José Sarney, Luiz Carlos Bresser-Pereira ressaltava que o real tinha mais chances de dar certo do que os planos anteriores —inclusive o seu Plano Bresser, de 1987— pela coordenação prévia dos preços por meio da URV (Unidade Real de Valor), criada para a transição do cruzeiro real para o real.

"É certamente, entre os 13 planos de estabilização tentados no Brasil desde que se iniciou a presente crise, em 1979, o de melhor concepção", escreveu, em artigo na edição de outubro de 1994 da "Revista de Economia Política".

Bresser-Pereira, no entanto, demonstrava preocupação com a âncora cambial adotada pela equipe econômica e apontava para os problemas estruturais da economia brasileira.

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Em artigo publicado na Folha em fevereiro de 1994, ele procurou reduzir as preocupações da época sobre perdas salariais, mas ponderou que o plano deveria ser acompanhado "por um acordo social mínimo", envolvendo governo, empregadores e a estrutura sindical.

"O Plano FHC [...] prevê um mecanismo basicamente de mercado para garantir o equilíbrio dos preços relativos no momento da estabilização —a URV. Mas os mecanismos de mercado jamais são perfeitos. Por isso, além de controlar os monopólios e oligopólios, como, aliás, o governo já está se preparando para fazer, um acordo social mínimo é necessário."

Antes do lançamento da nova moeda, Maria da Conceição Tavares qualificou o plano de "maquiavélico", tecnicamente "imelhorável" e "Cruzado dos ricos", por impedir que os pobres e a classe média soubessem, sequer, a perda que teriam em seus salários.

A "engenhosidade" do plano, segundo a economista, estava centrada em dois artigos: o primeiro, que instituiu a URV (Unidade Real de Valor) exclusivamente como padrão de valor monetário, e o que extinguiu o índice de correção do salário mínimo.

"O plano nos impôs uma perda cavalar que não tem como ser medida", afirmou a economista da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), na época, uma das principais críticas do projeto.

Conhecida por suas intervenções apaixonadas e tendo sido professora de uma legião de economistas, ela, que morreu no último dia 8, costuma ser lembrada também por ter se emocionado com o Plano Cruzado (lançado em 1986 e que acabou fracassando), enquanto guardava profunda desconfiança do Plano Real.

"O elogio que ela fez ao Plano Cruzado foi antes da implementação, porque muitos economistas sugeriam que era necessário fazer junto uma renegociação da dívida externa e não era possível segurar o congelamento de preços por muito tempo", lembra Pedro Paulo Zahluth Bastos, também da Unicamp.

"Essa renegociação da dívida, de fato, só ocorreria depois que ficou claro que ela estava certa ao dizer que sem fazer uma renegociação e simplesmente congelar a taxa de câmbio, você teria uma crise cambial", complementa.

Em 1º de julho, a professora disse à Folha que, no Plano Cruzado, os economistas do governo fizeram "estelionato eleitoral", mas que antes tinham aumentado a capacidade de compra do salário mínimo.

Em uma entrevista antes da eleição daquele ano, ela também disse que Fernando Henrique Cardoso traiu as suas ideias e se transformara no candidato das "elites conservadoras". E chamou a candidatura do tucano de "fraude constrangedora".

Segundo Bastos, uma das preocupações é que, mesmo que o salário mínimo real tenha começado a aumentar durante o novo plano, como o Brasil estava sujeito a uma crise de balança de pagamentos, isso acabaria provocando um empobrecimento posterior.

Bastos lembra que as críticas de Maria da Conceição Tavares em relação ao Plano Real se deram em um contexto de mudanças no cenário internacional.

"Vários outros países na América Latina já tinham executado um programa semelhante, com a diferença da URV. Mas, no fundo, o que garantiu a estabilização monetária foi exatamente ter condições agora, ao contrário do que tinha na época do Plano Cruzado, de refinanciar o balanço de pagamentos, pela entrada de capital externo."

Segundo ele, o que a professora apontava era já havia um processo de elevação da taxa de juros nos Estados Unidos que traria dificuldades. É nesse período que o México começa já a ter problemas, e o Brasil estava seguindo o mesmo tipo de política que tinha provocado a crise lá, diz.

"Maria da Conceição conseguiu influenciar muito o governo Lula no sentido de aumentar a demanda popular, mas por outro lado não conseguiu no sentido de fazer uma política monetária diferente daquela realizada durante o Plano Real, de juros altos e uma moeda com valor muito baixo", completa.

Já o professor Yoshiaki Nakano, que foi diretor da FGV EAESP (Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas), tinha preocupações sobre a sustentabilidade da âncora cambial e os riscos de um ajuste fiscal insuficiente.

"O problema é que o Plano Real interrompeu a inflação, utilizando da âncora cambial, mas manteve intacto todo o regime monetário do período de hiperinflação até hoje. E aquilo que era funcional no período de hiperinflação tornou-se extremamente danoso para a economia brasileira", escreveu, em um artigo de 2012.

O economista, que é um dos mais importantes pensadores da questão da inflação no Brasil, tendo trabalhado em parceria com Bresser-Pereira em um famoso estudo sobre a inflação inercial, pedia reformas estruturais para garantir a estabilidade econômica a longo prazo.

Luiz Gonzaga Belluzzo, também da Unicamp, era outro que demonstrava preocupações com o futuro da nova moeda —apesar de considerá-la um projeto muito mais eficaz do que o Plano Cruzado.

Em um artigo publicado na Folha, em outubro de 1994, ele apontava que a conversão dos salários pela média e a criação da URV foram decisivos, mas que o processo ainda apresentava dúvidas.

Em maio de 1996, uma reportagem com o título de "Real não produzirá estabilidade" trazia outros desses apontamentos. Nela, Belluzzo mostrava preocupação de que o plano não conseguiria gerar uma estabilidade monetária duradoura. Caso desse certo, o resultado seria uma economia "medíocre e sem crescimento".

"É isso mesmo", recorda hoje o economista, no aniversário de 30 anos do plano de estabilização, também apontando os juros reais elevados como um fator de trava para a economia. "Estava preocupado com a Selic [os juros básicos], em uma época de juros reais na casa dos 26%. Evidentemente, é muito difícil que uma economia tivesse um desempenho favorável com essas condições."

Belluzzo reforça que o segundo mandato de FHC, a partir de 1999, se deu em um cenário de crise internacional e no Brasil.

"Quem executou o plano o fez com valorização cambial muito forte e taxa de juros elevadíssima. Em um momento em que a China estava avançando, nós começamos a perder posição no processo de difusão da industrialização. O Brasil ficava para trás."

O professor ponderava na década de 1990 que o governo FHC perdeu a chance de fazer uma reforma fiscal nos primeiros anos do plano.

"Foi um período de baixíssimo crescimento e foi assim que o presidente Lula pegou a economia, em 2003. Na campanha, Lula tinha sido obrigado a fazer a 'carta aos brasileiros', para dizer que não faria nenhuma 'maluquice' e manteve o mesmo rumo. As coisas só melhoraram com o ciclo de commodities."

Bancada tentou esconder PL antiaborto de sua base?, Juliano Spyer, FSP

 É consistente o que dizem e pensam os evangélicos sobre o PL Antiaborto por Estupro (PL 1904), que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio. Reuni suas perspectivas a seguir:

1. Ideologicamente eles são contra a legalização do aborto e muitos argumentam que há uma solução alternativa se a mulher grávida não quer a criança. Ela pode ter o filho e entregá-lo para adoção. Todos vivem.

2. Mas o estupro — assim como a pedofilia— é visto no campo popular, evangélico ou não, como crime hediondo, frequentemente punido com linchamento em comunidades e prisões. Portanto, é ultrajante para qualquer evangélico a ideia de que a mulher, que já é vítima do estuprador e que tenha engravidado nessas condições, seja condenada à prisão.

3. Evangélicos e evangélicas reconhecem o transtorno emocional que tem quem engravida como consequência de estupro. E se essa mulher decide abortar, deverá se acertar com Deus; não é para ela ser julgada pelos homens.

Coletei essas impressões diretamente e a partir de interlocutores. Elas representam uma aferição rápida da perspectiva do grupo mais numeroso e que mais cresce no campo protestante brasileiro: o de evangélicos pobres, periféricos, geralmente pentecostais. E essas respostas nos conduzem a fazer pelo menos uma pergunta nova.

Ato contra o PL Antiaborto por Estupro na avenida Paulista - Tuane Fernandes/Folhapress

É possível que os líderes da bancada evangélica, como o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que estão defendendo o projeto, tenham escondido o assunto de sua base?

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Aborto é algo que mobiliza facilmente o campo evangélico. Mas a notícia não está circulando em grupos de WhatsApp cristãos nem sendo debatida em igrejas. Aqueles que ficaram sabendo do PL chegaram à informação via meios de comunicação ou navegando pelas redes sociais.

Se for esse o caso, esses líderes confiaram que os articuladores de redes online das igrejas e a ação do local de pastores desencorajariam conversas sobre o PL. A blindagem funcionou nesses espaços, mas vazou por outros canais.

Talvez tenha sido a primeira vez que o evangélico comum se percebeu manipulado por seus representantes políticos. E isso aconteceu também pelo amadurecimento da atuação do campo progressista.

É a direita radical que geralmente vence a disputa de narrativas sobre costumes. Age de forma rápida e eficiente para sintetizar uma ideia que pode ser expressa com o mínimo de imagem e texto e, assim, caber no formato de meme de internet. Influenciadores que comandam a atenção de milhões de pessoas fazem a informação circular.

Desta vez, o campo progressista dominou a disputa. Fez isso, por exemplo, ao chamar o projeto de "PL do estuprador". Resultado: a bancada evangélica recuou e fala em adiar votação.

spyer@uol.com.br

Antissemitismo não é antissionismo, Becky S. Korich, FSP

 Todo tipo de preconceito deriva de uma falha cognitiva. Preconceitos sequestram os espíritos, interditam o pensamento, estreitam a visão. Preconceitos não têm lógica, não têm explicação —por isso são difíceis de derrubar. Quanto menos lógica tem uma ideia, mais obsessivamente se tenta justificá-la, mais forte se agarra a ela, mais facilmente se transforma em crença: o imaginário sempre encontra um jeito de racionalizar.

Até 2023 o Brasil era um dos países com o menor índice de antissemitismo. Mas desde os ataques terroristas do Hamas a Israel em 7 de outubro, discursos de ódio estão se disseminando no mundo por uma legião de racistas com suas viseiras ideológicas que só os permitem enxergar o seu próprio umbigo ou o do grupo ao qual pertencem. Isso não demorou a chegar ao Brasil. O mais recente Relatório de Antissemitismo no Brasil, divulgado terça-feira (11) pela Confederação Israelita do Brasil (Conib) e pela Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp), apontou que entre 1º de outubro e 31 de dezembro do ano passado, o Brasil contabilizou 1.119 denúncias de antissemitismo —cerca de 12 por dia—, um aumento de quase 800% sobre as 125 denúncias do mesmo período. O antissemitismo reaparece, repaginado, diante dos nossos olhos.

Caixas de papelão amontoadas, possivelmente contendo votos, com uma bandeira de Israel em destaque, sugerindo um cenário de eleições no país. O foco seletivo na bandeira e a presença de pessoas ao fundo indicam a atividade e a importância do evento.
Placas de madeira com mensagens e orações que foram colocadas por participantes em uma linha férrea que leva ao antigo campo de morte nazista de Auschwitz-Birkenau em Brzezinka (Birkenau), perto de Oswiecim (Auschwitz), Polônia, durante a Marcha Anual da Vida para homenagear as vítimas do Holocausto no Memorial e Museu Auschwitz II-Birkenau - Wojtek Radwanski - 6.mai.2024/AFP

São agressões verbais e físicas contra membros da comunidade judaica nas ruas; vandalismo como pichações antissemitas em estabelecimentos judaicos; distribuição de panfletos e jornais pedindo o fim do Estado de Israel e a "Solução Final"; discursos de ódio e linchamentos nas redes sociais; desprezo à memória do povo e até o negacionismo do Holocausto.

Não é inerentemente antissemita criticar Israel. Os próprios israelenses são os maiores críticos do atual governo. Está sujeito a críticas e acusações legítimas, como qualquer outro governo, e deve se responsabilizar por suas políticas e ações. O problema é quando o antissemitismo disfarçado de antissionismo ganha status de verdade e normaliza a intolerância. Como se bastasse substituir "judeu" por "sionista" para maquiar o antissemitismo.

Exemplos recentes. Em fevereiro uma loja em Arraial d’Ajuda (BA) foi depredada e sua proprietária agredida por ser judia, aos gritos de "assassina de crianças", "eu vou te pegar, maldita sionista". Isso não é antissionismo. Em março seis crianças de 15 anos intimidaram um colega judeu em uma escola de São Paulo, até o aluno ser obrigado a procurar outra escola. Isso não é antissionismo. Em maio um aluno de uma faculdade de São Paulo foi expulso do Centro Acadêmico por ter nascido judeu. Isso não é antissionismo.

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Como uma espécie de vírus que sobrevive por mutação e se adapta a novos tempos e lugares, o antissemitismo é uma febre que enfraquece todo o corpo político e endurece a humanidade. Às vezes latente, guardado em alguma parte do corpo, volta a se manifestar com força de tempos em tempos com novas narrativas, mas sempre contaminadas com os mesmos preconceitos seculares que carregam em si a intolerância. Mensagens criptografadas entram no inconsciente coletivo e instigam o ódio.

O fundamento do novo antissemitismo bate na tecla oprimidos-opressores, tenta fazer crer que os judeus não são um povo historicamente oprimido que procura a autopreservação, mas sim opressores.

Os judeus já foram odiados por vários motivos. Na Idade Média, o eram por sua religião, nos séculos 19 e 20, por causa de sua raça, considerada inferior, uma ameaça à pureza racial. Já foram odiados porque eram pobres e também porque eram ricos; porque eram comunistas e também porque eram capitalistas; porque tinham fortes crenças religiosas e também porque eram ateus; porque se mantinham isolados entre si e também porque se assimilaram. Hoje são odiados por causa do Estado de Israel. São odiados pela extrema direita e pela extrema esquerda. O antissemitismo não é um conjunto coerente de crenças, mas um conjunto de contradições.

Existem judeus conservadores, progressistas, antissionistas, sionistas, ricos, pobres, brancos, pretos, orientais, todas as letras de LGBTQ+, árabes, ortodoxos, reformistas, não observantes. Diferentes. Mas igualmente discriminados.

Por que se preocupar com isso? A intolerância não é apenas uma ameaça aos judeus, é uma ameaça à democracia. O ódio que começa com os judeus, nunca termina com os judeus.

O número de guerras que acontecem ao redor do mundo é o maior desde a Guerra Fria. Além da guerra da Ucrânia que foi ofuscada pelo conflito Israel-Hamas, outras guerras e crises humanitárias foram jogadas para escanteio.

A guerra civil da Etiópia, por exemplo, registrou mais mortes do que a guerra da Ucrânia (600 mil aproximadamente), é uma das piores guerras da atualidade, tanto pelo número de baixas quanto pela brutalidade dos combates.

A guerra da Síria matou mais de 300 mil pessoas nas batalhas entre o governo de Bashar al-Assad e grupos rebeldes.

No Sudão, "a guerra esquecida", milhares de crianças são vítimas de brutalidades, são assassinadas, raptadas e sofrem violências sexuais.

A também esquecida crise humanitária no Iêmen tem mais de 80% da população vivendo abaixo da linha da pobreza que, literalmente, morrem de fome todos os dias.

Aplicar padrões diferentes a Israel —que não luta contra o nacionalismo palestino, mas contra um grupo terrorista—, protestar nas ruas e universidades e exigir do Estado de Israel um comportamento não exigido de qualquer outra nação, é antissemitismo.

O defensor de direitos humanos e dissidente soviético Natan Sharansky, formulou o teste "3 D" para distinguir as críticas legítimas a Israel do antissemitismo. Os três D representam: deslegitimação, demonização e padrões duplos. De acordo com o teste, cada um deles, por si, indica antissemitismo.

Ahmed Fouad Alkhatib, um ativista humanitário palestino aconselhou aos manifestantes que usam violência a não perderem tempo com uma "abordagem extremista, maximalista, inflamatória, irracional e totalmente ilógica que é prejudicial à causa pró-palestina". Em vez disso, pediu que usassem o privilégio ocidental para "promover um caminho pragmático envolvendo Israel e Judeus". Qualquer movimento que seja alimentado pela intolerância, complicará ainda mais essa missão e não nos levará a lugar nenhum.