segunda-feira, 17 de junho de 2024

Antissemitismo não é antissionismo, Becky S. Korich, FSP

 Todo tipo de preconceito deriva de uma falha cognitiva. Preconceitos sequestram os espíritos, interditam o pensamento, estreitam a visão. Preconceitos não têm lógica, não têm explicação —por isso são difíceis de derrubar. Quanto menos lógica tem uma ideia, mais obsessivamente se tenta justificá-la, mais forte se agarra a ela, mais facilmente se transforma em crença: o imaginário sempre encontra um jeito de racionalizar.

Até 2023 o Brasil era um dos países com o menor índice de antissemitismo. Mas desde os ataques terroristas do Hamas a Israel em 7 de outubro, discursos de ódio estão se disseminando no mundo por uma legião de racistas com suas viseiras ideológicas que só os permitem enxergar o seu próprio umbigo ou o do grupo ao qual pertencem. Isso não demorou a chegar ao Brasil. O mais recente Relatório de Antissemitismo no Brasil, divulgado terça-feira (11) pela Confederação Israelita do Brasil (Conib) e pela Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp), apontou que entre 1º de outubro e 31 de dezembro do ano passado, o Brasil contabilizou 1.119 denúncias de antissemitismo —cerca de 12 por dia—, um aumento de quase 800% sobre as 125 denúncias do mesmo período. O antissemitismo reaparece, repaginado, diante dos nossos olhos.

Caixas de papelão amontoadas, possivelmente contendo votos, com uma bandeira de Israel em destaque, sugerindo um cenário de eleições no país. O foco seletivo na bandeira e a presença de pessoas ao fundo indicam a atividade e a importância do evento.
Placas de madeira com mensagens e orações que foram colocadas por participantes em uma linha férrea que leva ao antigo campo de morte nazista de Auschwitz-Birkenau em Brzezinka (Birkenau), perto de Oswiecim (Auschwitz), Polônia, durante a Marcha Anual da Vida para homenagear as vítimas do Holocausto no Memorial e Museu Auschwitz II-Birkenau - Wojtek Radwanski - 6.mai.2024/AFP

São agressões verbais e físicas contra membros da comunidade judaica nas ruas; vandalismo como pichações antissemitas em estabelecimentos judaicos; distribuição de panfletos e jornais pedindo o fim do Estado de Israel e a "Solução Final"; discursos de ódio e linchamentos nas redes sociais; desprezo à memória do povo e até o negacionismo do Holocausto.

Não é inerentemente antissemita criticar Israel. Os próprios israelenses são os maiores críticos do atual governo. Está sujeito a críticas e acusações legítimas, como qualquer outro governo, e deve se responsabilizar por suas políticas e ações. O problema é quando o antissemitismo disfarçado de antissionismo ganha status de verdade e normaliza a intolerância. Como se bastasse substituir "judeu" por "sionista" para maquiar o antissemitismo.

Exemplos recentes. Em fevereiro uma loja em Arraial d’Ajuda (BA) foi depredada e sua proprietária agredida por ser judia, aos gritos de "assassina de crianças", "eu vou te pegar, maldita sionista". Isso não é antissionismo. Em março seis crianças de 15 anos intimidaram um colega judeu em uma escola de São Paulo, até o aluno ser obrigado a procurar outra escola. Isso não é antissionismo. Em maio um aluno de uma faculdade de São Paulo foi expulso do Centro Acadêmico por ter nascido judeu. Isso não é antissionismo.

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Como uma espécie de vírus que sobrevive por mutação e se adapta a novos tempos e lugares, o antissemitismo é uma febre que enfraquece todo o corpo político e endurece a humanidade. Às vezes latente, guardado em alguma parte do corpo, volta a se manifestar com força de tempos em tempos com novas narrativas, mas sempre contaminadas com os mesmos preconceitos seculares que carregam em si a intolerância. Mensagens criptografadas entram no inconsciente coletivo e instigam o ódio.

O fundamento do novo antissemitismo bate na tecla oprimidos-opressores, tenta fazer crer que os judeus não são um povo historicamente oprimido que procura a autopreservação, mas sim opressores.

Os judeus já foram odiados por vários motivos. Na Idade Média, o eram por sua religião, nos séculos 19 e 20, por causa de sua raça, considerada inferior, uma ameaça à pureza racial. Já foram odiados porque eram pobres e também porque eram ricos; porque eram comunistas e também porque eram capitalistas; porque tinham fortes crenças religiosas e também porque eram ateus; porque se mantinham isolados entre si e também porque se assimilaram. Hoje são odiados por causa do Estado de Israel. São odiados pela extrema direita e pela extrema esquerda. O antissemitismo não é um conjunto coerente de crenças, mas um conjunto de contradições.

Existem judeus conservadores, progressistas, antissionistas, sionistas, ricos, pobres, brancos, pretos, orientais, todas as letras de LGBTQ+, árabes, ortodoxos, reformistas, não observantes. Diferentes. Mas igualmente discriminados.

Por que se preocupar com isso? A intolerância não é apenas uma ameaça aos judeus, é uma ameaça à democracia. O ódio que começa com os judeus, nunca termina com os judeus.

O número de guerras que acontecem ao redor do mundo é o maior desde a Guerra Fria. Além da guerra da Ucrânia que foi ofuscada pelo conflito Israel-Hamas, outras guerras e crises humanitárias foram jogadas para escanteio.

A guerra civil da Etiópia, por exemplo, registrou mais mortes do que a guerra da Ucrânia (600 mil aproximadamente), é uma das piores guerras da atualidade, tanto pelo número de baixas quanto pela brutalidade dos combates.

A guerra da Síria matou mais de 300 mil pessoas nas batalhas entre o governo de Bashar al-Assad e grupos rebeldes.

No Sudão, "a guerra esquecida", milhares de crianças são vítimas de brutalidades, são assassinadas, raptadas e sofrem violências sexuais.

A também esquecida crise humanitária no Iêmen tem mais de 80% da população vivendo abaixo da linha da pobreza que, literalmente, morrem de fome todos os dias.

Aplicar padrões diferentes a Israel —que não luta contra o nacionalismo palestino, mas contra um grupo terrorista—, protestar nas ruas e universidades e exigir do Estado de Israel um comportamento não exigido de qualquer outra nação, é antissemitismo.

O defensor de direitos humanos e dissidente soviético Natan Sharansky, formulou o teste "3 D" para distinguir as críticas legítimas a Israel do antissemitismo. Os três D representam: deslegitimação, demonização e padrões duplos. De acordo com o teste, cada um deles, por si, indica antissemitismo.

Ahmed Fouad Alkhatib, um ativista humanitário palestino aconselhou aos manifestantes que usam violência a não perderem tempo com uma "abordagem extremista, maximalista, inflamatória, irracional e totalmente ilógica que é prejudicial à causa pró-palestina". Em vez disso, pediu que usassem o privilégio ocidental para "promover um caminho pragmático envolvendo Israel e Judeus". Qualquer movimento que seja alimentado pela intolerância, complicará ainda mais essa missão e não nos levará a lugar nenhum.


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