sexta-feira, 24 de maio de 2024

O que ganhamos com o Brics?, Rodrigo Zeidan , FSP (definitivo)

Um idiota útil é quem faz algo que o prejudica autonomamente, ajudando outrem, sem nenhum incentivo para isso. Seria uma enfermeira bolsonarista, que compartilhava fervorosamente vídeos do presidente à época, mas que morreu de Covid pela recusa a se vacinar, uma idiota útil? Provavelmente não, era só alguém lutando fervorosamente pelo que acreditava, disposta a pagar com a própria vida.

Um caso mais concreto é de parte da direita americana que escolheu Putin como herói. Lutam pela eleição de Trump espalhando mentiras a torto e a direito, beneficiando os russos. Putin deve dar gargalhadas ao ler sobre os americanos de direita que acham os russos exemplos a serem seguidos, espalhando propaganda russa de graça pelas redes.

É um problema ainda maior quando governantes fazem o jogo dos outros, colocando o interesse do país de lado. Por exemplo, seria o próprio Putin um idiota útil da China?

Vladimir Putin e Xi Jinping, em Pequim, em maio - Sergei Bobylev/Sputnik via Reuters

Vamos aos fatos: a economia russa é um décimo da chinesa, que hoje não precisa de quase nada dos russos a não ser alguma tecnologia militar de ponta. A Rússia indiretamente declarou guerra ao Ocidente, arcando com todos os custos sozinha. Tenta a todo custo desestabilizar EUA e Europa, tomando para si o papel de vilão. Coloca seu povo para morrer e vê sua economia receber sanções. Para financiar a guerra, precisa vender gás e petróleo com desconto para os chineses, com demanda cativa por produtos que não consegue mais comprar de ninguém.

Se Xi Jinping quer também desestabilizar o Ocidente, Putin parece o aliado ideal. Todos os custos são do russo. Putin adoraria armas chinesas, mas a China não vai dar, usando a possibilidade de sanções como desculpa. Por que o governo entregaria armas, afinal? Não tem nada a ganhar, a não ser um dinheiro aqui e ali, e muito a perder com sanções ocidentais.

O custo dos russos como aliados para a China é quase zero; a imagem do país no exterior é a única coisa que é afetada, mas Xi Jinping não parece ligar para isso, pois a China parece confortável como adversária (mas não inimiga) ocidental.

E o Brasil? Também estaríamos sendo idiotas úteis nessa história? Nossa posição histórica de neutralidade, se aplicada com consistência, não permitiria resposta afirmativa. Contudo, parece que nossa neutralidade é seletiva. Contra Israel, vale tudo, contra a Rússia, nada. Guerra civil no Haiti, onde tem dedo nosso? Nem um pio. Venezuela? Nada. Pode ser neutralidade esquisita ou pode ser o Brasil pagando de idiota para os seus outros parceiros comerciais.

O mesmo acontece no caso do Brics. Esse é um grupo que hoje é mais um clube de aliados dos chineses do que acordo sofisticado entre países emergentes. Até aí, nada de mais. Mas o Brasil não tem se oposto às principais mudanças significativas no bloco: os novos membros no Novo Banco de Desenvolvimento ou a expansão do próprio grupo —projeto capitaneado pelos chineses. A liderança da resistência é a Índia.

Claro que a China é o maior mercado do Brasil e uma boa relação é fundamental para a nossa prosperidade. Mas isso não requer submissão. Uma coisa é aliança, outra é abaixar a cabeça. Para não sermos idiotas úteis, a principal pergunta deve ser: o que ganhamos nas negociações do Brics? Se não está claro ou os benefícios são vagos e superficiais, é fácil responder à pergunta.

Não seria a primeira vez que seríamos idiotas, mas, se fosse, bem que poderia ser a última, não?

 

João Pereira Coutinho - Com chocolates nos bolsos e a polícia no meu encalço, o teatro espera por mim, FSP

 A balança gemeu: estou acima do peso indicado. Que fazer? Tradicionalmente, dieta. No meu caso, fechar a boca ao chocolate (inimigo nº 1), aos jantares pesados (nº 2), aos almoços idem (nº 3) —e, já agora, abandonar o sedentarismo (nº 4, mas, na verdade, nº 1) e o hábito decadente de usar o táxi para ir do quarto ao banheiro (nº 5).

Fachado do Camden People's Theatre
Fachado do Camden People's Theatre, em Londres - Reprodução

Mas então lemos: não será a gordura uma forma de "identidade"? E não estarei eu pronto a abraçá-la, combatendo o preconceito de uma sociedade que impõe sobre mim seus ideais de beleza inatingíveis? Meu coração hesita (antes do infarto, claro). Por um lado, a obesidade mata; por outro, o estigma associado à gordura pode ser ainda pior. Que fazer?

Com um sorriso largo e os bolsos recheados de chocolatinhos Lindt, pergunto à minha senhora se ela já ouviu falar do "fat acceptance movement" —o movimento pela aceitação de corpos gordos. Ela diz que já: é uma das primeiras causas de divórcio em todo mundo.

Deprimo. Quando finalmente tinha encontrado uma identidade, eis que o matriarcado esmaga Little Couto.
Mas a esperança é a última a morrer, como diria o rei Luís 16 quando contemplava a guilhotina. No Daily Telegraph, leio que um teatro em Londres (o Camden People’s Theatre) procura um novo diretor-executivo. Salário: 50 mil libras por ano. Formação acadêmica: nenhuma.

Em nome da inclusão, basta que o candidato venha das classes "trabalhadora, dependente, criminosa e/ou baixa".

O anúncio de emprego provocou reações ferozes. Desde quando os mais pobres se confundem com os delinquentes?

É uma boa pergunta. Que, aqui entre nós, só revela o nível de alienação das elites "woke" quando olham para o povão cá em baixo. Pobres, dependentes, criminosos —não é tudo a mesma coisa?

Talvez não seja, dementes, mas o que conta é a intenção. Além disso, cadastro pode ser currículo. Depende das necessidades da empresa. Se o objetivo do teatro é ter alguém especializado em contabilidade criativa, alguma experiência na fraude e no trambique pode ser um talento relevante.

Sem falar de trabalhos mais pesados, como quebrar os ossos de críticos hostis às produções da companhia. Uma entrevista de emprego terá sempre de acautelar esses cenários:

"Experiência profissional?"

"Arrombamento e sequestro."

"Lavagem de dinheiro?"

"Faço serviço completo: lavagem, secagem e polimento."

"Investidas ortopédicas?"

"Tíbias e perônios."

"Está contratado."

Maravilha! Compro minha passagem para Londres e, antes de embarcar, assalto a loja do aeroporto. Com chocolates nos bolsos e a polícia no meu encalço, o teatro espera por mim.


Defender os ateus é defender a razão, Mario Sergio Conti, FSP

 Otavio Frias Filho dizia que seria bom ir todos os anos à Grécia. Para ver as paisagens onde alvoreceram a filosofia, o teatro e a arquitetura do Ocidente. Para revisitar as raízes de um modo de ver a vida que os impérios europeus vieram a impor às suas colônias.

O falecido diretor da Folha era avesso a aeroportos, filas e demais chatices inerentes a viagens. Formulava o augúrio impraticável porque fora arrebatado pelo azul safira do Mediterrâneo, o aroma de laranjais que antecede a chegada às ilhas, as ruínas solares dos trabalhos e dos dias de Homero, Sófocles e Aristóteles.

Um lugar especial na Grécia é Delfos, ao pé do Monte Parnaso. Dali se contempla o suave declive, povoado por oliveiras, que desce até o golfo de Corinto. Chegavam ali, ao grande porto, peregrinos vindos de todo canto, da Ibéria ao Helesponto. Iam reverenciar Apolo, o filho de Zeus.

Ficava lá o ônfalo –o umbigo do mundo– onde o oráculo de Delfos dava conselhos no templo de Apolo. O mais famoso deles, "conhece-te a ti mesmo", teria levado Sócrates a dizer "só sei que nada sei". Ao subir a colina, os romeiros deixavam ex-votos e dádivas às divindades olímpicas.

O que encanta em Delfos não são apenas a natureza e os escombros de obras magníficas. É a seguinte constatação: ninguém, no mundo todo, acredita mais em Zeus, Apolo ou outra potestade do Partenon. Não há uma única pessoa que faça hoje libações e sacrifique vestais ou carneiros às deidades gregas, e elas outrora assombraram povos inteiros por séculos.

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A religião helênica está mortinha da silva. Isso permite um vaticínio a este oráculo paulistano: um dia, Meca, o Muro das Lamentações, o Vaticano –e, aqui, o Santuário de Aparecida e o Templo de Salomão, no Brás– só atrairão admiradores do engenho humano, e não crentes no além.

Duvida? Pois vá à Escandinávia. É a região do globo, rezam as pesquisas e estatísticas, mais próspera, igualitária e feliz. Nela se concentra a maior taxa de ateus. Os que não creem em deus são 72% dos noruegueses, 80% dos dinamarqueses e 85% dos suecos.

Ao lado esquerdo manchas em cores azuis e verdes criam formas de duas pessoas rezando. Caminhando para a direita, está desenhada em linha preta uma pequena pessoa de corpo esguio. Da cabeça da pessoa sai um balão de pensamento com gotas de tinta enfileiradas.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 24 de maio de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

Não há relação comprovada entre ateísmo e bem-estar social. Mas dá o que pensar o fato de que, no último Censo, só 8% dos brasileiros tenham dito não ter religião. São 15,4 milhões de pessoas; bem mais que os espíritas (1,4 milhão) e os adeptos do candomblé e da umbanda (588 mil).

Para os 92% religiosos, os 8% descrentes são uma minoria má e perversa. Expressiva em números absolutos, ela é pacífica e passiva. Aceita de cabeça baixa que as instituições e meios de comunicação, a cultura e as artes os discriminem e façam propaganda de crendices continuamente.

Em teoria, o Estado é laico desde 1891, quando a classe proprietária e seus tentáculos armados –Exército, Marinha e polícias– impuseram a primeira Constituição republicana à massa de agregados e ex-escravos. Na prática, a separação entre religiões e Estado é uma farsa.

A Constituição atual anuncia já no preâmbulo que foi feita "sob a proteção de Deus". Entra-se no plenário do STF e se topa com a imagem de um homem exangue, sangrando em troncos transversais. A mesma figura de mau gosto adorna o gabinete do presidente da República. É um abuso.

Está firme na cadeira? Então escuta esta: deus não existe. É uma invenção compensatória. Quando falta o que comer e vestir, onde amar e trabalhar em paz, alguns compatriotas recorrem à entidade que seria capaz, se não de prover suas carências, de ao menos servir de consolo.

Com um mínimo de lógica, contudo, conclui-se que não há uma mísera prova disso. A ideia de deus persiste porque na sociedade de consumo bilhões não consomem. As religiões cumprem nela a função de dar um alívio imaginário a quem não o tem na vida real e material.

Os iluministas do século 18 viram no fim da crença em deuses um passo para que a razão vença os mitos. Com perspectivas diferentes, dois dos seus herdeiros, ambos de origem judaica, defenderam o ateísmo. Para Marx, a religião era o coração de um mundo sem coração, o ópio do povo. Para Freud, uma neurose obsessiva da humanidade.

Os ateus estão acoelhados no Brasil. Silenciam ante o avanço da mescla deletéria de política e religião que tanta destruição causou e causa –vide as guerras entre católicos e protestantes na Europa dos séculos 16 e 17 e o atual morticínio que Israel perpetra em Gaza.

Defender os ateus é defender a razão, a única via para que a humanidade supere as carências que geram a obscuridade religiosa