quinta-feira, 23 de maio de 2024

OS DIAS PERFEITOS DE WIM WENDERS José Benjamim de Lima, Site APMP

 Dias atrás, fui ver o filme “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders, no Belas Artes, em São Paulo. É um filme encantador; aliás, como tudo que esse sensível cineasta alemão produz. Sua simplicidade e beleza são tocantes, sustentadas por um ator, Koji Yakasho (Hirayama, no filme), cuja expressividade despojada emociona. Wim Wenders, diretor que já nos deu obras-primas da sétima arte como “Paris/Texas”, “Asas do Desejo”, “Até o Fim do Mundo” e tantos outros, detém-se, agora, no dia a dia de um limpador de privadas em Tóquio, no Japão. Hirayama vive sozinho num pequeno e modesto apartamento, e passa o dia percorrendo banheiros públicos da cidade, limpando-os com esmero e dedicação. Conforme anota o jornalista Fernando Gabeira, em artigo publicado recentemente no jornal O GLOBO (“Dias Perfeitos e o trabalho modesto” – 29/04/2024), em certos países, como Japão e Suécia, esse tipo de trabalho goza de certo reconhecimento social e é dignamente remunerado. Hirayama quase não tem contato com a sua família rica, que não compreende, nem aceita que tenha uma profissão tão humilde. Todos os dias, ao acordar, faz sua higiene pessoal, veste o uniforme de serviço, prende à roupa seus instrumentos de trabalho, e deixa o prédio onde mora. Ao sair, bem cedinho, olha para o céu, sorridente e feliz, como se estivesse dando bom dia ao mundo e agradecendo a graça de mais um dia de vida. Compra seu café numa máquina eletrônica e segue para o trabalho em sua van, cuidadosamente abastecida com o material de limpeza que utiliza. Enquanto percorre as movimentadas ruas de Tóquio, deslocandose de um para outro sanitário público, aciona seu toca-fitas antiquado e vai ouvindo músicas. Embora o filme se passe na atualidade, Hirayama não curte as modernidades tecnológicas que o cercam; não sabe o que é Spotfy, e não coleciona CDs e sim fitascassete; suas músicas prediletas são aquelas das décadas de 60, 70 e 80 do século passado): The Animals (The House of the Rising Sun), Lou Reed (Perfect Day), Patti Smith (Redondo Beach), The Kinks (Sunny Afternoon) e Nina Simone (Feeling Good), entre outras. As músicas e suas letras desempenham importante funcionalidade no filme, realçando os vários momentos do dia de Hirayama, pontuando, por contraste ou semelhança, os sentimentos que o invadem nesses vários momentos. Assim, “The House of the Rising Sun” fala de um jovem que se perdeu dominado pelas drogas, exatamente o oposto da vida equilibrada do dia a dia vivido pelo personagem. “Perfect Day”, traduz, em parte, o seu modo de viver. “Apenas um dia perfeito / Beber sangria no parque / E então mais tarde, quando escurecer, / Nós vamos para casa”, diz a música. “Redondo Beach” trata de um possível suicídio. “Sunny Afternoon” fala de espreguiçar-se numa tarde ensolarada. Finalmente, a música de encerramento do filme, Feeling Good, interpretada por Nina Simone, é a síntese do sentimento de vida de Hirayama”: “Pássaros voando alto, você sabe como me sinto / Sol no céu, você sabe como me sinto / Brisa passando, você sabe como me sinto”. O refrão da música reafirma o valor que cada dia tem para o personagem do filme: “É um novo amanhecer / É um novo dia / É uma nova vida para mim, é”. Hirayama é pessoa quieta, quase não fala. Seu ensimesmamento, entretanto, nada tem de egoísta; ao contrário, é personagem atento à vidas e aos seus pequenos prazeres e solicitações: o amor solidário à natureza, às plantas e às pessoas. Solidariedade com o colega de serviço, com a sobrinha, que acolhe, com o desconhecido portador de câncer. O trabalho humilde, realizado com prazer e dedicação, é encarado como extensão de sua própria individualidade, não como alienação. Seus hábitos simples e repetitivos jamais se transformam em monótona e cansativa rotina; ao contrário, o gosto e o cuidado com as plantas e a natureza, o banho público diário, o jardim público que costuma frequentar no seu horário de almoço, o bar onde encerra o dia, sempre encarados positivamente, fazem de cada dia uma nova aventura. Seu ensimesmamento e, ao mesmo tempo, sua abertura para as coisas do mundo, lembram o poeta Rilke: “Se o cotidiano te parece pobre, não o culpes. Culpa a ti mesmo que não sabes ser bastante poeta para descobrir nele o que há de maravilhoso”. Além de calado e maravilhado observador silencioso dos seus dias, Hirayama tem também, surpreendentemente, vida intelectual. Visita assiduamente uma livraria e, antes de dormir, lê autores sofisticados como Faulkner (“Palmeiras Selvagens”) ou Patrícia Highsmith. O passeio de bicicleta com a sobrinha Keiko, adolescente rebelde, que fugira de casa por brigas com a mãe e fora passar uns dias com o tio, é uma das cenas mais antológicas do filme. Quando a garota pergunta se poderiam ir ver o mar, ele responde: - Numa próxima vez. E ela: - Quando? Resposta: - A próxima vez será a próxima vez. Agora é agora, a próxima vez será a próxima vez. E os dois continuam o passeio repetindo em voz alta “Agora é agora, a próxima vez será a próxima vez”, o que soa como sendo o mantra que orienta a vida de Hirayama: viver o presente, sem preocupação com o futuro. Outro momento antológico é a cena com o cidadão que o procura para justificar sua conduta em cena assistida por Hirayama, e confessa ser portador de um câncer metastático. Ambos estão à beira do rio, e a luz dos postes projeta suas sombras nas águas. Subitamente, o sujeito pergunta: - As sombras será que ficam mais escuras quando sobrepostas? Hirayama responde talvez, e o chama para fazerem um teste com suas próprias sombras. É um momento lúdico, forma encontrada por Hirayama de mostrar solidariedade e amenizar a situação angustiante de seu interlocutor. Quando sobrepõem as suas sombras, Hirayama acaba convencendo o outro de que as sombras sobrepostas ficam mais escuras. A cena parece conter a mensagem de que se os seres humanos se unirem ficarão mais fortes. Sem ser um filme cabeça, “Dias Perfeitos” além do valor intrínseco de suas imagens e cenas, deixa latentes muitas mensagens. Sem querer reduzir a grande riqueza plástica e humana do filme, podese concluir que Wim Wenders parece estar querendo nos dizer que fora de uma vida simples e equilibrada, sem excesso de paixões e ambições, conectada com nossos semelhantes e com a natureza, não há salvação para os humanos. Solidariedade, mais pelos gestos do que pelas palavras (esse o sentido, talvez, do mutismo do personagem), compreensão, paciência e tolerância, são os mantras da continuidade da vida em nosso planeta. “Agora é agora, a próxima vez será na próxima vez”. “Sombras sobrepostas ficam mais escuras”. (limajb48@gmail.com)

quarta-feira, 22 de maio de 2024

BONS DIAS!, Machado de Assis


(publicada em 21 de janeiro de 1889)

Vi não me lembra onde...
É meu costume; quando não tenho que fazer em casa, ir por esse mundo de Cristo, se assim se pode chamar à cidade de São Sebastião, matar o tempo.

Não conheço melhor ofício, mormente se a gente se mete por bairros excêntricos; um homem, uma tabuleta, qualquer coisa basta a entreter o espírito, e a gente volta para casa "lesta e aguda", como se dizia em não sei que comédia antiga.

Naturalmente, cansadas as pernas, meto-me no primeiro Bond, que pode trazer-me à casa ou à Rua do Ouvidor, que é onde todos moramos. Se o Bond é dos que têm de ir por vias estreitas e atravancadas, torna-se um, verdadeiro obséquio do céu. De quando em quando, pára diante de uma carroça que despeja ou recolhe fardos. O cocheiro trava o carro, ata as rédeas, desce e acende um cigarro: o condutor desce também e vai dar uma vista de olhos ao obstáculo. Eu, e todos os veneráveis camelos da Arábia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma coisa, calamo-nos para ruminar e esperar.

Ninguém sabe o que sou quando rumino. Posso dizer, sem medo de errar, que rumino muito melhor do que falo. A palestra é uma espécie de peneira, por onde a idéia sai com dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera. Ruminando, a idéia fica integra e livre. Sou mais profundo ruminando; e mais elevado também.

Ainda anteontem, aproveitando uma meia hora de Bond parado, lembrou-me não sei como o incêndio do club dos Tenentes do Diabo. Ruminei os episódios todos, entre eles os atos de generosidade tia parte das sociedades congêneres; e fiquei triste de não estar naquela primeira juventude, em que a alma se mostra capaz de sacrifícios e de bravura. Todas essas dedicações dão prova de uma solidariedade rara, grata ao coração.

Dois episódios, porém, me deram a medida do que valho, quando rumino. Toda a gente os leu separadamente; o leitor e eu fomos os únicos que os comparamos. Refiro-me, primeiramente, à ação daqueles sócios de outro club, que correram à casa que ardia, e, acudindo-lhes à lembrança os estandartes, bradaram que era preciso salvá-los. "Salvemos os estandartes!", e tê-lo-iam feito, a troco da vida de alguns, se não fossem impedidos a tempo. Era loucura, mas loucura sublime. Os estandartes são para eles o símbolo da associação, representam a honra comum, as glórias comuns, o espírito que os liga e perpetua.

Esse foi o primeiro episódio. Ao pé dele temos o do empregado que dormia, na sala. Acordou este, cercado de fumo, que o ia sufocando e matando. Ergueu-se, compreendeu tudo, estava perdido, era preciso fugir. Pegou em si e no livro da escrituração e correu pela escada abaixo. Comparai esses dois atos, a salvação dos estandartes e a salvação do livro, e tereis uma imagem completa do homem. Vós mesmos que me ledes sois outros tantos exemplos de conclusão. Uns dirão que o empregado, salvando o livro, salvou o sólido; o resto é obra de sirgueiro. Outros replicarão que a contabilidade pode ser reconstituída, mas que o estandarte, símbolo da associação, é também a sua alma; velho e chamuscado, valeria muito mais que o que possa sair agora' novo, de uma loja. Compará-lo-ão à bandeira de uma nação, que os soldados perdem no combate, ou trazem esfarrapada e gloriosa.

E todos vós tereis razão; sois as duas metades do homem formais o homem todo... Entretanto, isso que aí fica dito está longe da sublimidade com que o ruminei. Oh! Se todos ficássemos calados! Que imensidade de belas e grandes idéias! Que saraus excelentes! Que sessões de Câmara! Que magníficas viagens de bond!

Mas por onde é que eu tinha principiado? Ah! Uma coisa que vi, sem saber onde... Não me lembro se foi andando de bond; creio que não. Fosse onde fosse, no centro da cidade ou fora dela. Vi, à porta de algumas casas, esqueletos de gente postos em atitudes joviais. Sabem que o meu único defeito é ser piegas; venero os esqueletos, já porque o são, já porque o não sou. Não sei se me explico.

Tiro o chapéu às caveiras; gosto da respeitosa liberdade com que Hamlet fala à do bobo Yorick. Esqueletos de mostrador, fazendo guifonas, sejam eles de verdade ou não, é coisa que me aflige. Há tanta coisa gaiata por esse mundo, que não vale a pena ir ao outro arrancar de lá os que dormem. Não desconheço que esta minha pieguice ia melhor em verso, com toada de recitativo ao piano: Mas é que eu não faço versos; isto não é verso: Venha o esqueleto, mais tristonho e grave Bem como a ave, que fugiu do além...

Sim, ponhamos o esqueleto nos mostradores, mas sério, tão sério como se fosse o próprio esqueleto do nosso avô, por exemplo... Obrigá-lo a uma polca, habanera, lundu ou cracoviana... Cracoviana? Sim, leitora amiga, é uma dança muito antiga, que o nosso amigo João, cá de casa, executa maravilhosamente, no intervalo dos seus trabalhos. Quando acaba, diz-nos sempre, parodiando um trecho de Shakespeare:

"Há entre a vossa e a minha idade, muitas mais coisas do que sonha a vossa vã filosofia."

Boas noites.

Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br
Permitido uso para fins educacionais.

Como conter enchentes no Brasil, segundo criador das 'cidades-esponja': 'Barragens estão fadadas ao fracasso', BBC News, FSP

 Julia Braun

BBC BRASIL EM LONDRES

Eventos atmosféricos extremos com períodos prolongados de fortes chuvas e inundações, como as ocorridas no Rio Grande do Sul nas últimas semanas, se tornarão cada vez mais comuns e intensos, segundo os cientistas.

Mas o que as cidades podem fazer para evitar ou mitigar esse tipo de tragédia?

Para o criador do conceito de cidades-esponja, o arquiteto chinês Kongjian Yu, a resposta está em parar de "lutar contra a água" e investir em soluções duradouras e baseadas na natureza.

"Temos uma escolha a fazer: investir em grandes barragens e diques que estão fadados a fracassar ou apostar em algo que é duradouro, sustentável e ainda bonito e produtivo", questionou o decano da faculdade de Arquitetura e Paisagismo da Universidade de Pequim em entrevista à BBC News Brasil.

O Parque Sanya Mangrove em Hainan, na China - TURENSCAPE via BBC

Para Yu, as soluções tradicionais baseadas em barragens de cimento e tubulações impermeáveis já se mostraram incapazes de acompanhar os efeitos das mudanças climáticas, já que as chuvas são cada vez mais intensas e o nível da água de rios e mares não para de subir.

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Como alternativa, o arquiteto propõe adotar uma infraestrutura verde, baseada em um balanço hídrico artificial que seja o mais parecido possível com o natural e dê espaço e tempo para que a água seja absorvida pelo solo.

Em outras palavras, criar espaços e infraestruturas capazes de absorver, reter e liberar a chuva de forma que ela retorne ao ciclo natural da água sem causar estragos.

O conceito já foi aplicado pela equipe de Yu em diversas cidades na China e também na Tailândia, Indonésia e Rússia — e por outros arquitetos em todo o mundo.

Segundo o chinês, ele pode ser reproduzido em qualquer lugar, inclusive no Brasil.

"Funciona em qualquer lugar. As cidades-esponja são uma solução para climas extremos, onde quer que eles estejam", diz.

"E o Brasil pode se dar muito bem com elas, porque tem muitas áreas naturais, o que dá mais espaço para a água escoar."

De acordo com o arquiteto, além de impedir inundações, o modelo também pode ser útil durante os períodos de seca, já que a água armazenada pode ser utilizada para irrigação e para manter as árvores e plantas da cidade em boas condições.

Além das fortes chuvas, períodos mais prolongados de seca também são efeitos das mudanças climáticas.

Antes de sofrerem com as inundações, muitos produtores gaúchos já haviam sido castigados pela falta de água no ano safra de 2021/22.

Mas para que o conceito das cidades-esponja funcione, ele deve se basear em três grandes estratégias, segundo Kongjian Yu.

Kongjian Yu, que já ganhou diversos prêmios internacionais por seus projetos - Turenscape via BBC

CONTENÇÃO DA ÁGUA

O primeiro princípio adotado nos projetos do chinês é reter a água assim que ela toca o solo. Segundo Yu, isso pode ser alcançado por meio de grandes áreas permeáveis e porosas, não pavimentadas.

Da mesma forma que uma esponja com muitos orifícios, a cidade deve conter a chuva com lagos artificiais e áreas de açude alimentados naturalmente ou por canos que ajudam a escoar a água de rios e represas.

Telhados e fachadas verdes, assim como valas com áreas verdes com camadas de solo permeáveis por baixo também são usadas para esse propósito.

Kongjian Yu explica que, em áreas cultiváveis, reservar 20% do terreno para operar como um sistema de açude é suficiente para impedir que o restante do lote seja inundado. Essa área pode ainda ser adaptada para colheitas resistentes à umidade e para posteriormente abastecer o restante das plantações em épocas de seca.

Apesar de ser algo recente, a base teórica na qual as cidades-esponja resgata as antigas tradições chinesas da agricultura e da gestão da água.

"Temos que aprender com a aquacultura como fazer essa terra fértil, quais culturas podem sobreviver e usar essas áreas para isso", diz. "O arroz é um exemplo de uma plantação que pode funcionar."

REDUÇÃO DA VELOCIDADE

Em seguida, o arquiteto aconselha pensar no manejo da água coletada. Isto é, desacelerar o fluxo d'água.

Em vez de tentar canalizar a água rapidamente para longe em linhas retas, rios tortuosos com vegetação ou várzeas reduzem a velocidade da água.

Eles oferecem mais um benefício, que é a criação de áreas verdes, parques e habitats para animais, purificando a água escoada na superfície com plantas que removem toxinas poluentes e nutrientes.

Yu conta que se interessou pelo tema da urbanização e da contenção das águas após vivenciar uma experiência com inundações durante a infância.

Na época com apenas 10 anos, o chinês vivia em uma fazenda na Província de Zhejiang, perto de Hangzhou. Durante um período de fortes chuvas, o córrego da região inundou os campos de arroz da comunidade agrícola e Yu foi pego pelas águas, carregado pela enchente.

Mas as plantas, troncos e salgueiros ao longo do córrego reduziram a velocidade do fluxo do rio, permitindo que ele se agarrasse à vegetação e saísse das águas.

"Se o rio fosse como muitos são hoje, nivelados com paredes de concreto, certamente eu teria me afogado", contou Yu à BBC.

As técnicas usadas pelo arquiteto em seus projetos atuam da mesma forma que a vegetação no córrego na fazenda de Yu, desacelerando a água.

O rio Wujiang em Zhejiang, a Província natal de Yu, foi recentemente remodelado - TURENSCAPE via BBC

ESCOAMENTO E ABSORÇÃO

A terceira estratégia é adaptar as cidades para que elas tenham áreas alagáveis, para onde a água possa escorrer sem causar destruição.

"Em vez de construir barragens e ir acumulando a água em áreas de cimento, precisamos nos adaptar à água, deixa a cidade lidar com a água de forma saudável", diz Yu.

A principal forma de fazer isso é criar grandes estruturas naturais alagáveis para que a água possa ser contida por um tempo e, depois, absorvida pelo lençol freático.

Yu defende que essas áreas alagáveis permaneçam desocupadas, evitando-se construções nas áreas baixas.

Nos casos de infiltração, podem ser feitas caixas infiltrantes, que facilitam a entrada da água no solo.

Algumas cidades usam "jardins de chuva" que armazenam o excesso de chuva em tanques subterrâneos e túneis. A água só é descartada nos rios depois que os níveis diminuem.

Plantas que absorvem água também podem ser usadas para dar conta do alto volume de chuvas.

"A natureza se adapta. O conceito de cidade-esponja é baseado no princípio de que a natureza regula a água", diz o arquiteto. "Não é apenas a natureza em si. Sistemas feitos pelo homem devem ser certamente usados, mas a natureza deve ser dominante."

Yu afirma ainda que, para conter as grandes inundações previstas para os próximos anos, é preciso expandir essa estratégia por várias regiões e criar um "planeta-esponja" onde a força das águas possa ser dissipada e desacelerada aos poucos.

Ainda na visão do chinês, além de parques adaptados e áreas cultiváveis capazes de absorver mais água, lagoas e pântanos podem coexistir com rodovias e arranha-céus.

Parque Florestal Benjakitti, na Tailândia - Turenscape via BBC

EXPERIÊNCIAS

Em 2015, o presidente chinês, Xi Jinping, inaugurou oficialmente o "Programa Cidade-Esponja", que incentivava as cidades a adotar uma infraestrutura verde para conter a água, ao invés das estratégias cinza comuns (feitas com cimento, concreto, aço e asfalto).

Yu é consultor da iniciativa e ajudou a construir centenas de "parques-esponja" na China.

Um deles é o Houtan Park, em Xangai. A faixa verde de quase 2 quilômetros de extensão ao longo do rio Huangpu foi projetada em uma antiga área industrial.

Terraços plantados com bambu, ervas e gramíneas nativas são cortados por passarelas de madeira instaladas entre lagoas e pântanos.

As zonas úmidas filtram a água, retardam o fluxo do rio e criam um ambiente propício para aves aquáticas e peixes.

Mas o conceito de cidade-esponja não é exclusivo da China. Um dos projetos supervisionados por Yu fora do país foi nomeado Parque Florestal Benjakitti.

Em Bangkok, na Tailândia, o parque possui um labirinto de lagos, árvores e pequenas ilhas. Inaugurado em 2022, ocupa mais de 400 mil metros quadrados e foi construído no lugar de uma antiga fábrica de tabaco.

SOLUÇÃO MÁGICA?

Em todo o mundo, cada vez mais lugares estão enfrentando dificuldades com o aumento das chuvas, um fenômeno que os cientistas relacionam às mudanças climáticas.

À medida que as temperaturas se elevam com o aquecimento global, cada vez mais umidade evapora na atmosfera, causando chuvas mais fortes.

E os cientistas afirmam que essa situação só irá piorar. No futuro, as chuvas serão mais intensas que o normal.

Com tempestades cada vez mais fortes, especialistas questionam se as cidades-esponja serão capazes de conter inundações.

Pesquisadores do tema analisaram os resultados das cidades que receberam os projetos incentivados pelo governo chinês desde 2015.

Muitas das iniciativas-piloto tiveram um efeito positivo, com projetos de baixo impacto, como telhados verdes e jardins de chuva, desacelerando o escoamento.

Uma das cidades que demonstraram mais entusiasmo em relação ao projeto, Zhengzhou, na província de Henan, recebeu 60 bilhões de yuans (cerca de R$ 42 bilhões).

Ainda assim, após a cidade ser atingida por uma das chuvas mais fortes da sua história em 2021, as ruas ficaram inundadas e mais de 70 pessoas morreram.

Mas Yu insiste que a sabedoria da China antiga não pode estar errada e essas falhas são causadas pela execução inadequada ou fragmentada da sua ideia pelas autoridades locais.

A enchente em Zhengzhou, segundo ele, foi um exemplo clássico. A cidade pavimentou seus lagos, de forma que não houve retenção de água suficiente quando a chuva começou.

O rio principal havia sido canalizado com drenagens de concreto, fazendo com que a água fluísse com a velocidade "de uma descarga de vaso sanitário", segundo o arquiteto. Além disso, construções importantes como hospitais foram construídas sobre terras baixas.

Yu afirma ainda que as soluções podem ser combinadas: manter as estruturas de contenção que já existem e implementar os elementos das cidades-esponja ao mesmo tempo.

O chinês, porém, não vê vantagem em continuar construindo novas barragens que em alguns anos se tornarão obsoletas.

"Se [as cidades] já vão investir dinheiro, que seja em um projeto baseado na natureza", diz. "Meus projetos demoram em torno de 1 a 3 anos e podem ajudar as cidades a lidar com a água por muito tempo."

Yu diz ainda que os próprios moradores podem usar seus jardins, terraços e telhados como "esponjas" para ajudar a absorver a água das chuvas.

"Não estou dizendo que vamos solucionar o problema completamente dessa forma, mas vamos certamente mitigar as consequências.

Este texto foi publicado originalmente aqui.

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