Dias atrás, fui ver o filme “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders, no Belas Artes, em São Paulo. É um filme encantador; aliás, como tudo que esse sensível cineasta alemão produz. Sua simplicidade e beleza são tocantes, sustentadas por um ator, Koji Yakasho (Hirayama, no filme), cuja expressividade despojada emociona. Wim Wenders, diretor que já nos deu obras-primas da sétima arte como “Paris/Texas”, “Asas do Desejo”, “Até o Fim do Mundo” e tantos outros, detém-se, agora, no dia a dia de um limpador de privadas em Tóquio, no Japão. Hirayama vive sozinho num pequeno e modesto apartamento, e passa o dia percorrendo banheiros públicos da cidade, limpando-os com esmero e dedicação. Conforme anota o jornalista Fernando Gabeira, em artigo publicado recentemente no jornal O GLOBO (“Dias Perfeitos e o trabalho modesto” – 29/04/2024), em certos países, como Japão e Suécia, esse tipo de trabalho goza de certo reconhecimento social e é dignamente remunerado. Hirayama quase não tem contato com a sua família rica, que não compreende, nem aceita que tenha uma profissão tão humilde. Todos os dias, ao acordar, faz sua higiene pessoal, veste o uniforme de serviço, prende à roupa seus instrumentos de trabalho, e deixa o prédio onde mora. Ao sair, bem cedinho, olha para o céu, sorridente e feliz, como se estivesse dando bom dia ao mundo e agradecendo a graça de mais um dia de vida. Compra seu café numa máquina eletrônica e segue para o trabalho em sua van, cuidadosamente abastecida com o material de limpeza que utiliza. Enquanto percorre as movimentadas ruas de Tóquio, deslocandose de um para outro sanitário público, aciona seu toca-fitas antiquado e vai ouvindo músicas. Embora o filme se passe na atualidade, Hirayama não curte as modernidades tecnológicas que o cercam; não sabe o que é Spotfy, e não coleciona CDs e sim fitascassete; suas músicas prediletas são aquelas das décadas de 60, 70 e 80 do século passado): The Animals (The House of the Rising Sun), Lou Reed (Perfect Day), Patti Smith (Redondo Beach), The Kinks (Sunny Afternoon) e Nina Simone (Feeling Good), entre outras. As músicas e suas letras desempenham importante funcionalidade no filme, realçando os vários momentos do dia de Hirayama, pontuando, por contraste ou semelhança, os sentimentos que o invadem nesses vários momentos. Assim, “The House of the Rising Sun” fala de um jovem que se perdeu dominado pelas drogas, exatamente o oposto da vida equilibrada do dia a dia vivido pelo personagem. “Perfect Day”, traduz, em parte, o seu modo de viver. “Apenas um dia perfeito / Beber sangria no parque / E então mais tarde, quando escurecer, / Nós vamos para casa”, diz a música. “Redondo Beach” trata de um possível suicídio. “Sunny Afternoon” fala de espreguiçar-se numa tarde ensolarada. Finalmente, a música de encerramento do filme, Feeling Good, interpretada por Nina Simone, é a síntese do sentimento de vida de Hirayama”: “Pássaros voando alto, você sabe como me sinto / Sol no céu, você sabe como me sinto / Brisa passando, você sabe como me sinto”. O refrão da música reafirma o valor que cada dia tem para o personagem do filme: “É um novo amanhecer / É um novo dia / É uma nova vida para mim, é”. Hirayama é pessoa quieta, quase não fala. Seu ensimesmamento, entretanto, nada tem de egoísta; ao contrário, é personagem atento à vidas e aos seus pequenos prazeres e solicitações: o amor solidário à natureza, às plantas e às pessoas. Solidariedade com o colega de serviço, com a sobrinha, que acolhe, com o desconhecido portador de câncer. O trabalho humilde, realizado com prazer e dedicação, é encarado como extensão de sua própria individualidade, não como alienação. Seus hábitos simples e repetitivos jamais se transformam em monótona e cansativa rotina; ao contrário, o gosto e o cuidado com as plantas e a natureza, o banho público diário, o jardim público que costuma frequentar no seu horário de almoço, o bar onde encerra o dia, sempre encarados positivamente, fazem de cada dia uma nova aventura. Seu ensimesmamento e, ao mesmo tempo, sua abertura para as coisas do mundo, lembram o poeta Rilke: “Se o cotidiano te parece pobre, não o culpes. Culpa a ti mesmo que não sabes ser bastante poeta para descobrir nele o que há de maravilhoso”. Além de calado e maravilhado observador silencioso dos seus dias, Hirayama tem também, surpreendentemente, vida intelectual. Visita assiduamente uma livraria e, antes de dormir, lê autores sofisticados como Faulkner (“Palmeiras Selvagens”) ou Patrícia Highsmith. O passeio de bicicleta com a sobrinha Keiko, adolescente rebelde, que fugira de casa por brigas com a mãe e fora passar uns dias com o tio, é uma das cenas mais antológicas do filme. Quando a garota pergunta se poderiam ir ver o mar, ele responde: - Numa próxima vez. E ela: - Quando? Resposta: - A próxima vez será a próxima vez. Agora é agora, a próxima vez será a próxima vez. E os dois continuam o passeio repetindo em voz alta “Agora é agora, a próxima vez será a próxima vez”, o que soa como sendo o mantra que orienta a vida de Hirayama: viver o presente, sem preocupação com o futuro. Outro momento antológico é a cena com o cidadão que o procura para justificar sua conduta em cena assistida por Hirayama, e confessa ser portador de um câncer metastático. Ambos estão à beira do rio, e a luz dos postes projeta suas sombras nas águas. Subitamente, o sujeito pergunta: - As sombras será que ficam mais escuras quando sobrepostas? Hirayama responde talvez, e o chama para fazerem um teste com suas próprias sombras. É um momento lúdico, forma encontrada por Hirayama de mostrar solidariedade e amenizar a situação angustiante de seu interlocutor. Quando sobrepõem as suas sombras, Hirayama acaba convencendo o outro de que as sombras sobrepostas ficam mais escuras. A cena parece conter a mensagem de que se os seres humanos se unirem ficarão mais fortes. Sem ser um filme cabeça, “Dias Perfeitos” além do valor intrínseco de suas imagens e cenas, deixa latentes muitas mensagens. Sem querer reduzir a grande riqueza plástica e humana do filme, podese concluir que Wim Wenders parece estar querendo nos dizer que fora de uma vida simples e equilibrada, sem excesso de paixões e ambições, conectada com nossos semelhantes e com a natureza, não há salvação para os humanos. Solidariedade, mais pelos gestos do que pelas palavras (esse o sentido, talvez, do mutismo do personagem), compreensão, paciência e tolerância, são os mantras da continuidade da vida em nosso planeta. “Agora é agora, a próxima vez será na próxima vez”. “Sombras sobrepostas ficam mais escuras”. (limajb48@gmail.com)
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