Apesar de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) eliminar diversas distorções do nosso atual regime de tributação sobre consumo —e de ser uma mudança que promete trazer enormes ganhos de produtividade para a economia—, ele sofre a crítica de ser um tributo regressivo, já que indivíduos de baixa renda direcionam maior proporção de sua renda ao consumo.
Uma forma de corrigir essa distorção é fazer a devolução do imposto para as pessoas de acordo com algum critério, o que está previsto na reforma que foi aprovada no ano passado. Mas foi apenas recentemente —na proposta de regulamentação da reforma— que a forma da devolução do imposto ficou conhecida: um cashback para as famílias pobres —com renda per capita de até meio salário mínimo— que integram o CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais), do governo federal.
Se de um lado pode-se argumentar que o foco nessa população corresponde a um direcionamento de recursos para os mais pobres, de outro é importante ponderar que a qualidade das informações que constam nesse registro não é invariante às políticas que são implementadas através dele, já que muitas dessas informações são autodeclaradas.
Estudo recente do Insper mostra que há 6,6 milhões de famílias vulneráveis a mais nos registros do CadÚnico em comparação ao número de famílias pobres encontradas nos dados da PnadC, a pesquisa domiciliar de cobertura nacional realizada pelo IBGE. Ou seja, o número de famílias pobres no cadastro é 29% maior do que na PnadC. Ainda que a compatibilização de conceitos entre o CadÚnico e a PnadC não seja perfeita, essa é uma discrepância elevada, que pode alcançar diferença de até 9,7 milhões de famílias em razão do conceito de renda utilizado.
O diagnóstico do estudo é que há falhas nos registros do CadÚnico e, portanto, também na focalização de programas sociais que utilizam o cadastro como referência, a exemplo do Bolsa Família. As razões por trás da recente perda de qualidade desses registros podem ser inúmeras, mas é razoável esperar que as informações declaradas no CadÚnico estejam respondendo às regras que determinam a concessão dos benefícios de programas sociais.
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Desde a pandemia, o Bolsa Família passou por duas importantes mudanças: o aumento do valor dos benefícios concedidos e o estabelecimento de um valor mínimo para as transferências. Essas mudanças foram introduzidas no auxílio emergencial, mas passaram a ser incorporadas de forma permanente no novo Bolsa Família.
Dyane Ayala tem 41 anos, é beneficiária do Bolsa Família, sem emprego nem renda, montou uma ONG na pandemia de Covid, em comunidade no extreBruno Santos/Folhapress
Sabe-se que o valor mínimo estimula a declaração de famílias menores ou unipessoais, ao passo que o valor da transferência cria incentivos para subdeclaração da renda. À medida que o CadÚnico passa a subsidiar novos programas sociais e de redistribuição de renda, eventuais perdas de qualidade dos registros também se aplicarão a eles.
Ainda mais preocupante é a possibilidade de as regras desses novos programas reduzirem ainda mais a qualidade das informações do CadÚnico. O Pé de Meia, que prevê o pagamento de bolsas a jovens de baixa renda inscritos no Bolsa Família, é um exemplo. Será que esse novo programa irá gerar incentivos para que jovens declarem estar em famílias unipessoais?
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De volta ao cashback, os ganhos em progressividade precisam ser ponderados em relação aos custos de perenizar uma devolução de impostos em base fluida, que pode mudar ao longo do tempo e que responde aos incentivos de demais políticas sociais. Alternativamente, pode-se alcançar progressividade de outras formas, sem nenhum critério de renda, conforme se considera em Da Costa e Santos (2023).
Quando a qualidade do CadÚnico não é invariante às regras das políticas redistributiva implementada através dele, perenizar novos programas a ele pode vir a um elevado custo fiscal.
A Bossa Nova surgiu no Rio de Janeiro, mas seu principal mercado desde os primórdios do movimento musical foi São Paulo. Havia por aqui uma rede com cerca de dez bares em torno da rua da Consolação, no Centro, que abrigavam os principais músicos da época e tinham um público cativo.
Havia também o teatro Paramount, atualmente teatro Renault, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, que recebeu vários espetáculos promovidos por centros acadêmicos de faculdades, quase sempre sob a batuta do radialista e produtor musical Walter Silva, uma espécie de embaixador da Bossa Nova em São Paulo.
Outra referência do movimento foi o teatro Cultura Artística, na rua Nestor Pestana, arrendado para a TV Excelsior a partir de 1960. Ali aconteceram shows memoráveis de Elizeth Cardoso, Sylvia Telles, Alaíde Costa, Odete Lara e Lúcio Alves.
Para os artistas cariocas os palcos paulistanos eram um caminho para aumentar seu prestígio e suas remunerações. Como disse o escritor Ruy Castro em seu livro "Chega de Saudade", "São Paulo era a única cidade a pagar pelo que o Rio de Janeiro achava que devia ter de graça". A partir do começo dos anos 60, houve uma febre bossa-novista no lado paulista da ponte aérea.
Entre os bares e boates que brilhavam na cidade estavam o A Baiúca, o Cave, o Farney's (depois chamado de Djalma's), o João Sebastião Bar, o Bon Soir, o bar do Hotel Cambridge, o Sem Nome, o Chicote e o Michel. Surgido em 1957, o A Baiúca, na Praça Roosevelt, cujo prédio é hoje ocupado por um supermercado Extra, tinha como grande estrela o pianista Johnny Alf e foi lá que nasceu o Zimbo Trio.
Na boate Cave, em um show do mesmo Alf, Vinicius de Moraes teria dito para o pianista: "Pegue sua mala e se mande para o Rio de Janeiro, porque São Paulo é o túmulo do samba", incomodado com a barulheira que alguns grã-finos faziam durante o espetáculo. Lá se apresentava também Alaíde Costa. O bar Michel, onde hoje funciona a pizzaria Braz Elettrica, foi um palco frequente da cantora Maysa.
No Farney's, que pertencia ao cantor Dick Farney, tocaram João Gilberto e João Donato e, quando já se havia convertido em Djalma's, Elis Regina fez lá sua primeira apresentação em São Paulo. O João Sebastião Bar, atualmente endereço da Veridiana Pizzaria, reuniu gente como Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra, Claudete Soares e Chico Buarque.
A partir de 1964, com o incentivo ou sob a direção de Walter Silva vários espetáculos aconteceram no teatro Paramount, que passou a ser um reduto bossa-novista. O primeiro show no local foi no dia 25 de maio de 1964 e se chamou "O fino da bossa", promovido pela Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), segundo artigo de Bia Paes Leme publicado no site do Instituto Moreira Salles.
Apresentaram-se a violonista Rosinha de Valença, Wanda Sá, Paulinho Nogueira, Jorge Ben e Nara Leão. Silva não participou diretamente da organização desse espetáculo, mas, a partir dele, percebeu que havia um filão para se explorar no Paramount e, nos meses seguintes, aconteceriam mais cinco shows no local, agora sob seu comando.
Em agosto, seria a vez de "Boa Bossa", promovido pela Associação Beneficente de Moças da colônia sírio-libanesa de São Paulo, que teve como atrações Elis Regina e Silvio César. Em outubro foi organizado "O remédio é bossa", show de formatura da Escola Paulista de Medicina, produzido por Silva. Nele se apresentaram Tom Jobim, Vinicius, Elis, Os Cariocas, Sylvia Telles, Carlos Lyra, Marcos Valle, entre outros.
Em novembro aconteceram dois espetáculos no Paramount. O primeiro, no dia 16, foi "Mens sana in corpore samba", iniciativa dos alunos da Escola de Educação Física da USP, com Toquinho, Taiguara e Chico Buarque. O outro, no dia 23, foi a "1aDenti-Samba", da Faculdade de Odontologia da USP, que levou ao palco do teatro nomes como Walter Santos, Geraldo Vandré e Alaíde Costa. Nessa altura, São Paulo se havia consolidado como o grande mercado da Bossa Nova.
ENVIADA ESPECIAL A LVIV, UCRÂNIA* - Em Lviv, cidade do oeste da Ucrânia perto da fronteira com a Polônia e chamada de “a Paris ucraniana” por sua intensa vida cultural, os únicos sinais da guerra deflagrada por Vladimir Putin há mais de dois anos são as constantes sirenes de ataques aéreos que ressoam a todo instante, e o trânsito carregado de veículos no centro histórico da cidade em pleno domingo à tarde.
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A superlotação de carros é resultado da chegada de quase 2,5 milhões de refugiados ucranianos de regiões próximas no sul e no leste, que fez dobrar a população de Lviv desde fevereiro de 2022. Ainda assim, o conflito parece distante, a mil quilômetros de Lviv, no novo front que a Rússia abriu no nordeste do país. Mas a vida pacata das ruas cheias de moradores e turistas, com bares e restaurantes lotados, é interrompida pelas constantes sirenes do alarme antiaéreo da cidade.
As sirenes se tornaram mais raras conforme os dois anos de guerra se passaram. Mas agora, com a nova ofensiva em Kharkiv, especialmente a estratégia russa de atacar infraestruturas essenciais da Ucrânia, o alarme voltou a soar com mais frequência para os temidos drones kamikaze que a Rússia adquire do Irã.
Durante a madrugada, duas sirenes avisaram que era melhor se refugiar em um bunker por causa de drones que sobrevoavam a região. Ambos foram abatidos. Para quem não está habituado, o som desperta o instinto de correr e se refugiar. Para os ucranianos de Lviv, porém, depois de dois anos de conflito, o barulho se tornou habitual e só força uma corrida ao abrigo antiaéreo quando os sons das explosões alcançam os ouvidos.
As consequências, porém, aparecem na forma de trauma dos que foram ao front ou perderam alguém, além da eterna incerteza do que esperar do futuro para os milhões de ucranianos que se mudaram para Lviv.
Em todo o Oblast de Lviv, como é chamada a região que abriga a cidade de mesmo nome, a população pré-guerra era de 2,5 milhões de pessoas. O número praticamente dobrou já nos primeiros meses do conflito “Foi um tempo muito curto para uma população crescer tão rápido”, afirmou o governador da região, Maksim Kozitski, em entrevista a uma delegação de jornalistas latino-americanos do qual o Estadão faz parte. “Nossa região se tornou um corredor para pessoas que fugiam da guerra com rumo à Europa”.
Lviv foi palco do maior fluxo de refugiados já registrado em um curto espaço de tempo. Em um ano, mais mais de 5 milhões de ucranianos fugiram do país.
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A imagem emblemática do início da guerra foi a de milhares de ucranianos cruzando checkpoints até chegar à estação de trem e finalmente embarcar para a União Europeia. Mais de dois anos depois, o oeste parece alheio à guerra que se desenvolve no Donbass, na Crimeia e, agora, na nova frente de batalha em Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia.
O ápice do fluxo foi nos primeiros três meses de guerra, quando a tomada de Kiev ou até de toda a Ucrânia parecia uma questão de tempo. Conforme o tempo passava, muitos retornaram às suas cidades, especialmente Kiev e Kharkiv. Mas outros ficaram e hoje Lviv abriga milhões de deslocados internos.
Até julho de 2022, o número de pessoas que permaneceram em Lviv foi de 650.000, relata Kozitski, impondo enorme pressão aos serviços e comércios da região, mas principalmente à moradia e acesso à saúde. Com o avanço russo sobre Kharkiv, espera-se que mais pessoas cheguem à cidade, embora em números menores.
Liubov, 66, é uma das deslocadas que hoje vive em um assentamento nos subúrbios de Lviv. Ela e sua filha, que tem o diagnóstico de epilepsia, fugiram da região de Luhansk nos primeiros meses da guerra em 2022 e desde então permanecem ali. “Aqui tenho paz, tenho sossego, não fico escutando os bombardeios o tempo todo”, desabafa a ucraniana que não quis fornecer o sobrenome.
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Luhansk foi uma das regiões reivindicadas pela Rússia nos primeiros dias da invasão, juntamente com Donetsk. Ambas estão na região do Donbass. Hoje o local está sob ocupação russa e uma recuperação pela Ucrânia parece improvável. Liubov diz não ter esperanças de retornar à sua casa, porque já não sabe se a encontrará. Mas deseja poder rever os irmãos que se espalharam pelo país. Ela se emociona ao imaginar se encontrar com os irmãos.
“Além disso, lá eu não conseguiria o tratamento correto para a minha filha e aqui, já nos primeiros dias que cheguei, ela foi atendida por um médico especialista”, completa.
“Lviv foi uma das poucas regiões da Ucrânia que continuou recebendo deslocados de regiões consideradas hot-spots”, lembra o governador. “Continuamos recebendo refugiados de Kharkiv e da região de Dnipro. Mas hoje os fluxos são incomparáveis com os de 2022.”
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Os mais afetados, segundo o governador, são famílias compostas por mulheres e crianças, já que os homens acima de 25 anos são obrigados a lutar na guerra, além de idosos, pessoas com deficiência e aquelas com traumas psicológicos. “Tivemos que criar instituições para acolhimento psicológico, além de orfanatos e casas de repouso para idosos”, disse.
O outro lado dessa moeda, porém, é a chegada de novos empreendimentos à toda a região de Lviv daqueles que já não viam possibilidade de tocar sua empresa em um área sob ataque. “Hoje temos mais 240 empresas que se deslocaram do leste para o oeste da Ucrânia, cerca de 500 postos de trabalho”, informa Kozitski. A cidade também se tornou uma importante rota de logísticas e escoamento de mercadorias.
Uma vida apesar da guerra
Mas para quem observa a cidade de fora, mal há sinais da guerra. Nem a sirene alertando um possível ataque aéreo que soa em toda a cidade e nos celulares da população afeta a vida cotidiana.
Em um domingo ensolarado na primavera ucraniana, em 19 de maio, ninguém sai das ruas nem dos restaurantes e dos bares - lotados - por causa de um bombardeio na distante Odessa. A vida segue agitada até o toque de recolher à meia noite, quando as conversas nas ruas e as músicas cessam. Na segunda, 20, os alertas, seguidos por uma voz ressoante passando instruções em ucraniano, não afetaram o dia útil.
À reportagem, ucranianos que vivem em Lviv relataram uma aceitação de seu destino. “Se eu tiver que morrer atingido por um míssil, não há o que possa evitar”, disse um deles, justificando a falta de urgência em correr até o abrigo antiaéreo mais próximo.
Se as sirenes não alteram a vida das pessoas, o que de fato assusta os homens ucranianos é a nova regra de recrutamento do governo, iniciada no dia anterior: a exigência de que todos os jovens acima de 18 anos até os 24 atualizem suas informações junto ao Exército em uma espécie de “reserva” - na Ucrânia a idade mínima para servir é 25 - com risco de punições como bloqueio de contas.
Outras lembranças da guerra estão nas estátuas e igrejas históricas fortemente protegidas para o caso de bombardeios. Nas estátuas, fotos dos monumentos cobertos são coladas em fortes estruturas de ferro, apenas para lembrar a população e turistas qual é o símbolo que está ali. Em vidraças antigas, tapumes para evitar que se quebrem.
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Em 2023, a Unesco colocou os locais culturais e históricos de Lviv, considerados patrimônios da humanidade, em alerta de perigo para destruição.
No fim, os resquícios mais insuportáveis da guerra, afirma o governador, estão no trauma desenvolvido por todos os ucranianos. “Todo mundo perdeu alguém ou algo”, desabafa, mesmo a população do oeste.
O cemitério aos “heróis” da guerra ganhou um espaço ao lado do antigo cemitério da cidade. O local se tornou um memorial para recordar que, embora a vida continue apesar da guerra, alguém sempre estará enterrando um ente querido.
*A repórter viajou a convite da Fundação Gabriel García Marquez, da Colômbia, em parceria com a organização Ukraine Crisis Media Center, da Ucrânia